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Oinc! Oinc!

“Confio mais na Elma Chips do que em mim.” Foi após esta frase, disparada pelo mais “forte” do grupo, que o quarteto mereceu atenção. Eram barbados de camisetas pretas, primeiro falando sobre um amigo que havia morrido recentemente e depois sobre comida. “O bróder empacotou por causa daquela mulher”, concordaram. Conseguiam emendar assuntos aparentemente bastante distintos. Cerveja sempre ajuda, em casos assim. Depois de falarem do falecido, por exemplo, explicaram por que — tirando o “mais forte” — precisavam fazer batata palha em casa: queriam, vejam só, que nas noites de estrogonofe os filhos tivessem uma experiência mais especial.

Comiam empadas como porcos. Era farelo para tudo quanto era lado. As barbas ficavam horríveis, fazendo a gente da plateia pensar como ficariam, também, nas noites de estrogonofe, as tais reservadas para experiências mais especiais. Cerveja pode piorar as coisas, em casos assim. Ao menos, eram porcos solidários. Sujavam-se juntos e pareciam capazes de engordurar, sem muita cerimônia, quem estivesse próximo. No balaio de pautas, pegavam e devolviam histórias, mas voltavam sempre à morte daquele sujeito. Era de se esperar que estivessem tocados com a perda do amigo. Repetiam informações, reafirmavam as teorias. Havia um discurso digamos afinado sobre o que havia sido a pedra no caminho do falecido: “A companheira dele.” A insistência nisso podia alimentar a curiosidade de quem estava perto.

Pegando esta trilha, naquele volume, dava para desconfiar que de alguma maneira queriam envolver toda a calçada na história. Com cerveja ou sem cerveja, pareciam confortáveis no papel, isto é, diante do risco de serem apontados não apenas como porcos, mas como “porcos escrotos”. “Ela parecia a mulher ideal. Os dois eram baixinhos, como personagens de ‘O Senhor dos Anéis’. Depois, cara, ela virou um monstro.” Lá pelas tantas, tiraram lenha da fogueira da encenação, como que cansados de esperar por aplausos. Indicavam o fim do espetáculo. Pareciam assim reduzir a sugestão de castigo que certamente viria após a descida das cortinas e o abandono do palco. Nas naquela altura, era já certo que a condenação viria, indiscutível, provavelmente anunciada com caras enfezadas pelo tribunal de beira de rua. Não dava mais tempo de amenizar nada, nem com a frase final sobre o caso, esclarecendo que a vítima “já tinha trombose, desde cedo”.

Pagar a conta, ao contrário da performance, foi um detalhe que protagonizaram quase em silêncio absoluto, como se alguma “consciência” ou “culpa” tivesse passado a dominar o chiqueiro virtual deles. Apontaram para as maquininhas de cartões, indicando que era daquela maneira que acertariam as coisas. “Crédito ou débito, hein?” Foi quase engraçado ouvir cada um deles respondendo secamente sobre a transação… “Crédito.” “Crédito.” “Crédito.” “Crédito.” Porcos unidos jamais serão vencidos?

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A gente que desenha #3

Aquele papo de Natal e fim de ano. Festa, festa, festa. Inclui fácil, fácil, uma última aula. Um último chocolate. Peraí, vamos nos resguardar com as aspas: “último”. Em meses como dezembro, a gente tende a não lembrar de começos. Quando despertou o interesse pelo desenho, pelo café, pelo chocolate, pela…? Não. A gente só sente o tempo passando, chances — se é que podemos chamar assim — escapando. Um tantinho de aprendizagem. Num grupo de estudos, o sujeito é capaz de sentir também que algumas “verdades” flertam com o “absoluto”. A hora de parar, por exemplo. De considerar o troço pronto. Serve tanto para texto quando para desenho.

Nem sempre é fácil, ou mesmo possível, decidir isso. Aí, vem o outro lado da moeda. Ou mesmo outra moeda. Alguém sugerindo que se revisite um determinado trabalho, que ali ainda há (n)o que mexer. Qualquer estômago embrulhado, ar de dor de cabeça, desconforto-sem-nome pode surgir daí. A existência de uma hora “certa” para terminar alguma coisa não significa que todo mundo vai concordar com o momento em que essa necessidade surge.

Você está preparado para uma sentença/sugestão como “Vamos refinar as coisas, hoje… Nesse antigo mesmo… Em vez de começar um novo…”?

Para o que você se preparou? Está tudo OK para participar da foto da turma, com iluminação dirigida por alguém que se preocupa com luzes e sombras? Está relax para deixar os cliques acontecerem? Será capa de sorrir? Numa sala repleta de artistas e observadores natos, o que ficará evidente na pose da turma? Os que os sorrisos dirão? O que a luz dirá? O que as sombras dirão? Apertos de mão fortes. Sorrisos repetidos e ao mesmo tempo ímpares. Abraços. A lembrança de um desenho que representa uma vitória, ou, ao menos, um passo dado.

Ah, as sombras. Fim de ano é dia de lembrar de frases marcantes. Tipo “Core shadow é onde a sombra canta”. É dia de rir com piadas toscas: “A pessoa se mexe porque é aula de modelo vivo… Se não mexesse, seria modelo morto…” É tempo de esperar que as informações se assentem, que deixas ganhem corpo, que vibes circulem. Que chocolates estejam sempre presentes. É dia de no caminho procurar novos sentidos para o que está rabiscado ali nos velhos sobrados da Gamboa: “Vento / Vem me trazer / Boas novas”.

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Boteco Connection #13 — Ano que vem, quem sabe

A gente não pode ficar vivendo de lembranças de comédias românticas. Ainda mais quando elas têm duas décadas de lançamento e deixam claro que envelhecem num ritmo diferente do nosso. Nós, os eternos personagens. Os filmes, sejam de que estilo for, parecem sempre ter alguma vantagem em relação a isso que chamam de vida real. A gente, na busca por uma “saída”, talvez possa viver de aniversários em bares. Porque se as mesas e calçadas desses lugares são capazes às vezes de servirem de palco para — em vez de filmes — verdadeiras novelas mexicanas, esta programação, em datas comemorativas, periga virar tipo um capítulo especial. A quem não gosta de um frisson acima da média?

Outro dia na Marlene foi assim. O aniversariante, pra começar, viu acontecerem encontros que não estavam na programação. A data de nascimento é mesmo um bom dia para concluir de vez que não é possível controlar tudo. Uma desconhecida comentou que ao falar com uma amiga tinha ouvido, desta, que ia a um aniversário na São Salvador. “Ah, aniversário, só pode ser na Marlene.” E era mesmo. Junte um bar e uma data comemorativa e você terá não um filme, não uma novela mexicana roots mas, quem sabe, um seriado.

Professores de desenho fazendo sucesso entre um pessoal que talvez não consiga rabiscar nem um boneco-palito. Quer dizer, podem haver surpresas agradáveis, em encontros imprevistos. Aniversário em bar não é uma faca de dois gumes. É um exercício de digestão. Como digerir um encontro inesperado? Como suportar um desencontro? E um segundo desencontro, numa mesma noite, sendo que é uma noite de capítulo especial? Cenas marcadas, bem marcadas. Cartas marcadas. Mensagens na parede do banheiro. Marcas do tempo, um tempo que é de outro estilo; diferente do das comédias românticas. Sem chegar a ser filme de terror, porque cachaça e cerveja deixam todo mundo alegre.

Repetecos. Com novos personagens. Casais brigando, baixinho, porque é aniversário, demonstrando consideração com o comando da festa. Pessoas que estiveram naquele mesmo pico, um ano antes, sem serem convidadas, e numa coincidência cinematográfica ou musical, reaparecem para… para sumirem, logo em seguida, deixando o comando da festa atordoado. Além de entender que não dá para controlar tudo, aniversário é bom para sacar que não existe coincidência. Complicado? Quem sabe no ano que vem você entende.

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Não chega a ser uma conexão

As manobras que a gente precisa fazer às vezes para não apertar a mão de alguém, né? Mesmo que às vezes nem haja nesta escolha tanta certeza. O cara pode ficar perdido entre aqueles dois caminhos: um que a placa descreve como certa a opção de tocar outrem. Um segundo, uma outra placa, ali, bem do lado, que avisa sobre o risco do que será absorvido mesmo que o toque seja acidental. É muita coisa para a gente decidir, o tempo todo.

O que faz uma pessoa colar um adesivo num banheiro público? O que faz alguém remover de um banheiro um sticker que estava lá, muito de bobeira mas com o compromisso, talvez, de animar mijões e mijonas das mais diversas origens. É mais fácil a gente perdoar quem coloca ou quem tira? Perdoar é fácil? O que é o perdão? Gente que cola pedaços de papel ou plástico por aí não deve estar preocupada com o perdão de ninguém. É intrigante tentar achar motivos que fazem alguém colar um troço numa caixa de metal que fica bem no alto de um poste. Mijões e mijonas não devem se divertir com aquilo porque fica muito no alto.

A falta que pode fazer, veja só, não só um adesivo mas, também, o contato com o pessoal que te vende aquele café especial. Um pacote se esvaziando pode ser o gatilho para alguém pensar na relação que se forma, depois de alguns anos, entre duas pessoas, mesmo que os encontros se limitem a dar-o-dinheiro-pegar-o-pó. Às vezes, dá para subverter o protocolo. Como quando a entregadora, em pé num balcão de bar onde marcou o encontro com o cliente, fala sobre uma cerveja escura que está vendo na geladeira e que a faz lembrar-se de uma irmã mais velha. Um rolé que começa com uma promessa de pó de café pode render uma cerveja, uma descoberta, uma história de família. Sem esquecer de olhar a porcaria do Instagram, que ninguém é de ferro.

Um aviso que chega muito em cima da hora, no laço, e por isso — mais do que matar uma vontade — faz a gente querer ainda mais alguma coisa. Uma ampulheta em que a areia escorre tão rapidamente que o observador pode chegar a visualizar, na parte inferior, uma espécie de aspirador de pó. Não de pó de café. De pó rosado, que é a cor da areia que passa pela cabeça no escriba, no momento em que a frase é montada. Areia cor-de-rosa, ampulheta com duração de seis minutos. Meia dúzia de minutos. Meia dúzia de frustrações, de encontros que não se confirmam. Porque o tempo é curto. De quanto tempo a gente precisa para tomar um café? Quando você fala “Vamos tomar um café?”, está pensando em quanto tempo?

O moleque pede água. Não se bebe adesivo. Ainda. Do lado de dentro do balcão, o atendente do bar finge não perceber a mão que estava esticada, buscando um aperto, uma saudação. Ao menos, rolou a água. Uma sede chegou ao fim. Para bom amarelador, meio sorriso amarelo basta.  Para bom corredor, meio café basta. Para quem está atrasado, meia corrida não resolve. Para quem entende a mão e não recebe uma mão de volta, um copo d’água pode virar um balde de água fria. Em dias de chuva, a água fica ainda mais gelada. Em cada curva, um adesivo que a gente não esperava.

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Chocolate para todes

“De doce, basta a vida.” Estava aí uma provocação com a qual havia se acostumado. Pensava frequentemente no que motivava e tornava tão recorrente aquela zoação. E — sempre! — antes de concluir qualquer coisa, estava abrindo um novo tablete de chocolate com pelo menos 65% de cacau. Tinha que ser com mais de 65% de cacau. Eram constantes, as idas ao mercado, em busca daquelas belezinhas. Ria com a satisfação de quem não precisa de muito trabalho para livrar-se de uma chacota. Depois, ria por ter esquecido de trazer arroz e batatas. Em seguida, ria ao olhar para os chocolates. Sim, de doce, bastava a vida. De amargos, os chocolates.

Revisitava momentos, através de sabores. Era percorrendo estes mesmos caminhos que entendia/tolerava posicionamentos políticos, as declarações da diarista e do tio militar.Talvez pudesse considerar-se um doce. E, como se fosse pouco, experimentava emoções às vezes contraditórias. Sentia-se assim capaz de viajar no tempo e no espaço. Um parágrafo, quer dizer, um minuto depois, sentia o flerte do esgotamento, e aí para refrescar a cabeça duas possibilidades se apresentavam: algum artista espanhol pop e obscuro, como se fosse possível ser as duas coisas ao mesmo tempo, ou, o que era mais confortável, um pouco de Tchaikovsky.

Arriscou levar uma criança da família ao cinema para assistir ao “Wonka”. Férias pedem isso, afinal. Não queria admitir que o tema do filme havia exercido forte atração. Chorou junto com provavelmente 90% da sala escura quando o protagonista sentenciou que o segredo de uma barrinha de sucesso não é o que há na lista de ingredientes e, sim, as pessoas com quem a gente compartilha aquilo.

Enquanto disfarçava lágrimas, Solar e Ascendente trouxeram à pauta uma campanha que talvez acabasse com o império das pipocas nos espaços de exibição de filmes. Era do tipo que elabora muita coisa ao mesmo tempo. Desistiu logo porque os chocolates estava bem, obrigado, não precisavam de campanha nenhuma. E nem dava tempo de levar aquilo adiante porque os frilas da semana tinham sido tantos que haviam posto em xeque a aula de desenho. Uma aula importante, em que estava estudando perspectiva com um Toblerone.

Um intervalo, um gole de água. Porque todos precisam de intervalos. Um rolé numa noite de sábado. Umas batatinhas fritas aqui, uns pastéis de camarão com catupiry ali. Mais água. A melhor coisa para quem vai ter que dirigir. Um passeio que se estende precisa incluir no planejamento uma passagem pelo mercado 24h, porque é lá que se pode encontrar… chocolate. Se não for assim, não tem (tanta) graça.

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Brain Reward System

Pra algumas coisas, não encontrava palavras. Pra certas palavras, o problema era achar coisas, isto é, ouvintes. Via peças de xadrez, do nada, e pensava em jogadas. Adorava ficar à toa. Na praça, observou um casal que já havia enquadrado, num bar da vizinhança: gestos rápidos, promessas e provocações em voz alta, historinhas mirando quem estava em volta. Mal conseguiam dar bicadas nos dois latões de cerveja que, horas antes, talvez estivessem gelados. Sorrisos amarelos, na madrugada. Talvez por esse motivo, pelo adiantado da hora, estivessem ali. Os bares no Rio hoje em dia fecham cedo. Com concentração, como num jogo de tabuleiro, qualquer um podia pescar o que conversavam aqueles dois. Alternavam climas de velório e festa. “Tem um motel, aqui perto”, disse ela. “Prefiro não comer fritura”, respondeu o mané, como que dando continuidade ao assunto anterior, que passava pelos salgadinhos da época em que eram crianças — quando coxinhas, pastéis e empadinhas tinham outra “moral”. Depois de quase rir, o que seria arriscado, o observador achou por bem desistir da tocaia.

Se estivessem numa mesa de madeira, dessas povoadas por guardanapos, palitinhos, sachês de sal e às vezes garrafinhas de azeite, seria a hora de o homem e a mulher pedirem a conta. Costumavam dizer, nestas ocasiões: “Estamos atrasados, moço, pode por favor fechar pra gente?”. O observador condenou-se por não ser capaz, de imediato, de abandonar a cena; porque conhecia de vista a dupla-alvo. Era na verdade um momento de dúvida. Para geral. O espectador não conseguia vazar. E os dois pareciam não saber bem se continuavam na “brincadeira” que, pelas alianças, era coisa “séria”. Era um encontro que parecia traduzir uma crise.

O homem, bem bêbado, fez sinal com a mão pedindo que a mulher aguardasse. Pegou no bolso da calça um papel amassado: “Vamos conferir. Ver se está tudo certo. Eu pago 25. E o que faltar vocês dividem por dois.” Mandou essa e dirigiu o olhar para o observador, num gesto que poderia ser tomado como o de um tonto que não sabe o que está fazendo ou, o que seria surpreendente, de um marido que sabe sim o que está fazendo. O vigilante, na sua pira enxadrista, preferiu não calcular o próximo lance. Levantou-se da muretinha, num pulo, e se afastou dali. A mulher soluçou e levou a mão, em formato de concha, até a boca. Soluçou, de novo, antes de responder: “Melhor dividir logo por quatro. Assim, fica tode munde satisfeite”, disse, zoando com a onda da neutralidade no vocabulário, tão em alta nos botecos frequentados por eles.

O sujeito por algum motivo desandou a falar que as pessoas não se satisfazem dividindo contas no valor correto. Exagerou, na sequência: “Brain Reward System. Bi… ar… ess… Satisfação é outra coisa. Satisfação é quando você encontra água…” Ela se zangou, como sempre se zangava, nos momentos em que o cara tirava aquela onda de professor: “É sábado, porra! Quase domingo…” Depois de uns instantes de silêncios, foram salvos pelo barulho que poderia ser de uma coruja. “Olha o passarinho”, disse ele, soluçando e fazendo com a mão um formato de concha, do mesmo jeito que ela mostrara. Devia ser uma tradição de família. “Você devia esperar para dizer isso quando a gente chegasse ao motel. Eu sei que aqui somos quatro, o público para a piada é maior. Mas você precisa aprender a esperar.” Ela podia estar se vingando do momento-aula sobre Brain Reward System.

Chamava a atenção, o figurino dos dois: muitas peças brancas. Oxalá talvez pudesse explicar aquilo. O vestido dela era justo e estava surpreendentemente limpo para alguém que tropeçava tanto nas palavras. Menos caprichoso, o mané usava uma camiseta meio amassada e amarelada na altura dos sovacos. Cada um tinha uma pequena mochila e levavam, também, sacolas de mercado. Quando saiu do ambiente, instantes antes, o observador havia olhado para aquelas bolsas largadas displicentemente e pensou, quase falando, em voz baixinha: “Tomara que não tenha nada que precise de geladeira…”

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Domingão

Quando você tem cadernos, dá um jeito de esvaziá-los. No caso de possuir “apenas” folhas, pode por exemplo espalhar isso em postes. É muito mais “pessoal” do que aderir às campanhas pela sobrevivência dos livros, deixando exemplares disso ou daquilo perdidos por aí num certo dia do ano. Quando tem gente atrás de coisas para serem lidas, não há o que fazer, é preciso dar alguma coisa a elas. Se estiver lidando com gente esquentadinha (ou com potencial de), vale também tomar cuidado porque chamar uma coisa de “coisa” pode dar problema. Como identificar o tipo em questão? Aí, são outros quinhentos.

Domingo é um bom dia para pedir desculpas. Se houver sol, são ainda melhores as chances de aceitação. Aceitação da vida, no caso, não só do discurso implorando perdão. Porque implorar só à Deusa, né? É assim que é, é assim que está. Não vai adiantar desenhar porque vai ter gente que não entende. Aliás, tem coisa que é para desenhar e não para escrever. Coisa, de novo, né? Isso ainda vai dar problema.

A poesia, coitada, já esteve com os dias contados. Mas toda essa limitação internética, esse varejão de letrinhas amontoadas, com o qual todos nós colaboramos, quebrou o galho dos versos. A música também parece ter tido alguma sorte. Está aí em tudo quanto é publicação, isto é, post. Quando um idioma vindo do outro lado do globo dominar as coisas, qual será o resultado? É de “desespero” que pode(re)mos chamar? É tudo circo. Aliás, o Circo também não morreu. Foi se adequando até ganhar dimensões planetárias. Essa cara de palhaço estampada aí não surgiu à toa.

Você sabe que está diante de um compromisso importante quando marca para as 18h e, às 16h, já sente que está no atraso. Pode dar problema na máquina que vende cartões de embarque no metrô, pode não ter motorista de aplicativo querendo aceitar a corrida, pode quase tudo e vai ficar melhor ainda quando isso tudo te ajudar a rir da vida. Nem sempre a cerveja depois do jogo vai garantir que certas verdades sejam ditas, que o sorriso fique invariavelmente amarelo diante do amigo fura-olho. Quando o caô é pregação, você se entrega?

Faltar a uma festa de aniversário e não pedir perdão. Aceitar sorrindo um presente que no fundo é insosso. Perder de propósito um jogo de xadrez para que a criança do outro lado tenha chance de vez em quando de aprender co’a vitória e não co’a derrota. Absolver o vizinho que tira do lugar o tênis que depois da pandemia tu insistes em deixar no corredor. Suportar a morrinha que vem dos cachorros do prédio ao lado. Capinar porque ali há capim; assim como há vida, volta e fim. A estrada é feita de um dia atrás do outro. De desculpas, rezas, e, às vezes, crônicas assim-assim.

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Salve, salve, Chico Chico

Na Grande Bolha Classe-mediana, Subdivisão Metida a Besta a.k.a. Algo Intelectualizada com Pretensões de Descolamento, Microbolha dos que se adiantam para fazer valer a expressão “Sextou!”, só se falava no show do Chico Chico, no Clube Manouche. Em Laranjeiras, nos arredores da São Salvador, um dia antes da apresentação do filho da saudosa Cássia Eller, alguém comentava: “Chicão? Era da sala do meu filho, no CEAT… Fio desencapado, esse moleque. Mas muito talentoso!” Na Tijuca, na São Francisco Xavier, também foi possível pescar comentários a respeito de Francisco Eller: “O show é muito bom. Já vi no Smoking, na Lapa. Agora, acho que só em casas maiores. Tá crescendo. Ninguém segura.” Na noite de sexta (07/07), data em que se celebra(va) entre umbandistas e simpatizantes a força do “malandro” Zé Pilintra, Chico Chico fez bonito. O garoto sabe jogar. Tem que respeitar.

Pessoas de 40 e poucos anos tiraram do armário suas jaquetas de couro e foram até o Jardim Botânico para ver o espetáculo. O ambiente lembrava um pouco o extinto Ballroom. Parecia uma versão reduzida daquele antigo pico do Humaitá, incluindo gente chata às vezes falando alto demais perto do bar. Não chegaram a atrapalhar. Foi divertido ver levarem um susto quando o fio desencapou no entorno, quer dizer, quando Chico Chico desceu do palco e um corredor se abriu para que ele desse uma corridinha, microfone em punho, do palco até os arredores dali de onde se comprava cerveja e outros drinques. Aliás, quantos drinques coloridos, gente; parecia até festa de casamento. Mas o pessoal das jaquetas de couro parecia gostar. Espumante, não, não se via. A cerveja estava bem gelada, pelo menos.

Mas não era só quarentão, na plateia.  Entre os videomakers havia também gente mais nova. E eram estes os que pareciam estar mais afinados com o artista. “Ribanceira” e “O tempo nunca mais firmou” podiam dar a entender que a noite seria de introspecção. Mas “Amarelo amargo” apontava outro caminho. Outros caminhos. Um dos pontos altos da noite. Dava para lembrar um pouco dos primeiros shows do Cordel do Fogo Encantado, no Rival. Não só pela performance do rapaz, mas, também pela poesia — é, poesia — que ele oferecia. Havia firmeza, malandragem e poesia, naquilo que ele entregava ao pessoal que levantava os celulares para registrar o que estava acontecendo.

O momento Chico César  (“Béradêro”) foi outro de arrepiar. Aliás, o garoto soube escolher bem o que levar pros jovens e tiozinhos do Manouche. Tirou onda de grande intérprete com “Norte”, de Carlos Posada. Foi tocante ouvi-lo cantar que “as coisas acontecem / de uma hora pra outra / mesmo que demorem / a vida inteira para acontecer”. Nem precisava daquela coisa de dividir a plateia em duas, durante esta música, para que cada metade repetisse uma parte do refrão. Se houve um vacilo do malandrinho, foi aí.

Chico Chico soube escolher bem as companhias. Caio Prado, uma das participações especiais do show, com sua “Cantiga de Erê” (parceria com Jean Kuperman), estava no palco para um outro grande momento da noite: ajudou o amigo na brincadeira de alternar climas.  Todo mundo gostou. Salve Zé Pilintra. Viva a malandragem. Salve, Chico Chico.

(Foto de Catharina Rocha)

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Mattoso contra as instagra(mes)mices

Tem essa história de os textos curtos  (e vídeos etc na mesma medida) de hoje em dia nos oferecerem/provocarem uma carga dopaminérgica viciante. Que nos torna preguiçosos. Porque a “satisfação” vem rápido. É um engole-e-cospe ou nem-digere-direito-mas-expele-logo de fazer gosto. Glauco Mattoso, no seu recém-lançado “Promptos Ponctos contos” (Editora Casa de Ferreiro, 2023), rema contra esta maré. Não que sejam demasiado longos, os 20 textos do livro. Mas é que aquela história de ele adotar a escrita revogada pelo Estado Novo, de Getúlio Vargas, em 1943, é uma tijolada desaceleradora e provocativa nas nossas fuças acostumadas com as instagra(mes)mices de hoje em dia. E isso é só o começo.

A “Nota introductoria” serve de aquecimento. “Fazer prosa poetica não é difficil para alguem ja callejado no verso decassylabo. (…) Mantenho o meu historico de bardo bastardo, goliardo, obsceno. Pouco me importo com os falsos moralismos. (…). Nossos tempos revivem a barbarie dessas eras antigas e desfazem illusões dum mundo mais humano que, durante algumas phases dictas democraticas, suppunhamos  que fossem ja conquistas da civilização. São peresciveis, contudo (…).” É isso mesmo, tem “y”, tem “ph”, tem “ll” e o diabo. É Mattoso matando a pau, como ele mesmo dirya. Ou Dyria. Dyrya, talvez? Tem coisa que parece que só Glauco Mattoso sabe.

E há tempos é assim. Décadas atrás, quando brincávamos todos de jovens fanzineiros-revolucionários, GM já era um pouco mais cascudo. Reconhecido como baluarte da poesia marginal, bom de lábia, ele (muito respeitosa e educadamente) nos convidava a uma troca. Mandávamos, numa folha de ofício, um contorno de nossos pés e recebíamos, por exemplo, uma edição do “Manual do pedólatra amador”. O livro tinha este título, na primeira edição (1986). Depois, o negócio mudou de nome, a despeito da correção (e “propriedade”, e “inocência”) explicada por ele para o uso daquela palavra na capa. Hoje em dia, é “Manual do podólatra amador”. Tem na Amazon, pra quem quiser ver e comprar. O autor pode ser considerado pervertido, mas não é bobo.

“O Manual…” tinha aquela pegada SM. Porque naquela época só se usava estas duas letras para se falar do que hoje se chama de BDSM. Os livros deste paulistano de 1951 passeiam muito por este tema/universo. E com “Promptos ponctos” não é diferente. “Ponctual caso de Myrlayne”, “Ponctual caso de Heloiza” e “Ponctual caso de Hamilton”, os três primeiros, deixam isso bem claro. “Bem claro” é o jeito de dizer, porque eles deixam é tudo bem sujo, na medida para o leitor apreciador desta estética fetichista. Vamos chamar de “estética fetichista”. Além disso, para quem é fã do Yoda de “Star Wars”, tem ali no miolo da prosa um jeito de escrever que parece trocar a ordem mais corriqueira das palavras, do mesmo jeito que faz aquele feioso mestre Jedi. Divertido fica.

A frequência com que aparecem personagens com deficiência visual faz crer que há algo de autobiográfico na obra. Ou fantasioso, com muito foco do autor no próprio umbigo. O que é bem Mattosiano. Prepare-se para um conteúdo bem XXX. Laranja-mecanicamente falando, um prato cheio. Pode ser que alguém reclame de “muita erudição”. Mas, pô, é o Glauco, e ele está nessa há muito tempo. A erudição, ou o que se pode chamar assim, fica em segundo plano. Em primeirão está a devassidão.

A escrita é um espetáculo à parte. Você tem que ler com calma. “Mandaram-me tirar a roupa toda, aptaram minhas mãos attraz das costas…” Olha esse “aptaram”! Os contos surgem dando a impressão de serem frutos de relatos obtidos pelo autor. Isso traz um verniz de, digamos, formalidade para o que é revelado ali naquelas páginas. Assim como um cheiro de mofo, de antiguidade. E junto vem um cheirinho de verdade. É tudo tão possível que às vezes se torna assustador. É Glauco Mattoso, o bom e velho Glauco Mattoso. Pronto para escandalizar e/ou satisfazer a tradicional família brasileira.

N.E.: @ed.casadeferreiro, no Instagram.

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Segue a, isto é, O Paixão

André parece ter trocado mesmo o Nervoso por Paixão. Pode ser que tenha trocado também o gosto por roupas porque, naquele início de noite, numa sexta que prometia frio mas entregou certo calor, o figurino diferente provocava certa estranheza. Era o lançamento do single “Litoral”, na estação General Osório do metrô, Zona Sul do Rio, e o artista anunciou o início de uma série de apresentações pela cidade. “Litoral” é uma faixa solta, só mesmo um single, mas o artista está na iminência de colocar pra fora um álbum que já há três longos anos lhe dá trabalho. Em clima de celebração, com uma guitarra e um microfone, André Paixão contou com um público formado por passantes e por ilustres amigos, como os músicos Maurício Garcia e Pedro Serra, e a jornalista Catharina Rocha.

Era mesmo verdadeira, a história de turnê. Enquanto esta crônica ganhava vida, dias depois do lançamento, chegava nova mensagem do artista para anunciar uma segunda apresentação nos subterrâneos do Rio. Dia 30, às 19h, na Estação Carioca, Acesso B (Avenida Chile).

Em Ipanema, o show começou com “Só verão”, seguindo o setlist (que foi parar na coleção de dona Cath Rocha). Começou bem. Na verdade, a descontração parecia já estar garantida com o “Segue o líder!” que Paixão, botafoguense de carteirinha e tatuagem, soltou mesmo antes dos primeiros acordes. Vieram “Desencontro marcado” e “Maduro”. A primeira, uma inédita feita em parceria com Bernardo Vilhena. Mas foi em “Um sonho de transatlântico” que mais sorrisos foram vistos. Dentes de todos os tipos apareceram/brilharam, entre as cabeças que emergiam das entranhas da General Osório. Se teve um trem que chegou em boa hora, foi aquele lá.

O velho hit “O bom veneno” deu as caras, anunciado por uma introdução noise-barulhenta. Quase como que um rastro mais nervoso-no-wave em meio a toda aquela paixão. Se houvesse também alguma pequena multidão desembarcando, ali,  naquele instante, teria sido ótimo. Mas tem trem que é daquele jeito: não vem na hora certa. “O bom veneno deve ser assim/ E eu te peço / Sirva uma dose desses pra mim”, diz um trechinho. De um passado menos distante, ressurgiu “Já desmanchei minha relação”, que também caiu muito bem. “Curtindo a solidão… Assoviando essa canção”, lembra? “E é por essas e outras que eu não tenho mais saco pra te servir, meu bem…”, lembra? Os tempos são outros. É tudo líquido, dizem. Mas “Já desmanchei minha relação” tem um potencial radiofônico para todas as épocas.

“Saturation” era a última da lista. Mas houve tempo para mais pérolas. A noite terminou com um repeteco de “Maduro”, que — esta, sim — também fará parte do próximo álbum. “A vida é assim/ Veja as folhas no jardim (…) Todos são bem parecidos/ Quando sentem que o pior está por vir…”