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Boteco Connection #13 — Ano que vem, quem sabe

A gente não pode ficar vivendo de lembranças de comédias românticas. Ainda mais quando elas têm duas décadas de lançamento e deixam claro que envelhecem num ritmo diferente do nosso. Nós, os eternos personagens. Os filmes, sejam de que estilo for, parecem sempre ter alguma vantagem em relação a isso que chamam de vida real. A gente, na busca por uma “saída”, talvez possa viver de aniversários em bares. Porque se as mesas e calçadas desses lugares são capazes às vezes de servirem de palco para — em vez de filmes — verdadeiras novelas mexicanas, esta programação, em datas comemorativas, periga virar tipo um capítulo especial. A quem não gosta de um frisson acima da média?

Outro dia na Marlene foi assim. O aniversariante, pra começar, viu acontecerem encontros que não estavam na programação. A data de nascimento é mesmo um bom dia para concluir de vez que não é possível controlar tudo. Uma desconhecida comentou que ao falar com uma amiga tinha ouvido, desta, que ia a um aniversário na São Salvador. “Ah, aniversário, só pode ser na Marlene.” E era mesmo. Junte um bar e uma data comemorativa e você terá não um filme, não uma novela mexicana roots mas, quem sabe, um seriado.

Professores de desenho fazendo sucesso entre um pessoal que talvez não consiga rabiscar nem um boneco-palito. Quer dizer, podem haver surpresas agradáveis, em encontros imprevistos. Aniversário em bar não é uma faca de dois gumes. É um exercício de digestão. Como digerir um encontro inesperado? Como suportar um desencontro? E um segundo desencontro, numa mesma noite, sendo que é uma noite de capítulo especial? Cenas marcadas, bem marcadas. Cartas marcadas. Mensagens na parede do banheiro. Marcas do tempo, um tempo que é de outro estilo; diferente do das comédias românticas. Sem chegar a ser filme de terror, porque cachaça e cerveja deixam todo mundo alegre.

Repetecos. Com novos personagens. Casais brigando, baixinho, porque é aniversário, demonstrando consideração com o comando da festa. Pessoas que estiveram naquele mesmo pico, um ano antes, sem serem convidadas, e numa coincidência cinematográfica ou musical, reaparecem para… para sumirem, logo em seguida, deixando o comando da festa atordoado. Além de entender que não dá para controlar tudo, aniversário é bom para sacar que não existe coincidência. Complicado? Quem sabe no ano que vem você entende.

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Boteco Connection #11 — O monstro e o lago

Parecia perdida, ela. Olhos arregalados. Ofegante, sim; ofegante mesmo. Sem saber para onde ir e algo exausta. Suada. A calçada, que se lhe apresentava meio como um labirinto, carregava também traços bastante familiares: os poucos pinos perto do meio-fio, que estavam ali para inibir os motoristas de táxi em seus devaneios secundaristas, faziam o papel de pilastras, de tão grandes que tinham ficado. Tudo isso, sob o olhar da moça; antes de ela investir no primeiro gole de cachaça. Com as unhas dos pés e das mãos bem pintadas de vermelho, olhava para os lados como se aguardasse o Minotauro, que apareceria para gritar “Bu!”. Como que numa tentativa de manter-se lúcida, fez a piada: “Será que o Minotauro faz ‘Bu!’ ou será que faz ‘Mu!’?” Estava falando consigo mesma, mas no esquema voz-alta-mode-on. Foi a chance que o maluco do lado esperava para tentar engatar uma conversa: “Me dá também uma cachaça dessa, dona Marlene! Igual à da moça…”

Vera respirou aliviada. “É só um mané, não é o Minotauro”, comentou, depois de mexer rapidamente no painel e garantir voz-alta-mode-off. Na avaliação cordial dela, estava lidando com alguma espécie de monstrinho. Mas não teve medo. E resolveu jogar. Deu ao boy uma chance, revisitando uma gracinha antiga, apostando que assim assustaria o cara: “Oi, eu sou a Vera. Estou aqui à vera.” A parada era dizer isso bem rápido, meio que se fazendo de bêbada, meio que disparando um teste. O cara não mordeu a isca. Respondeu com um pobre “Nino. Prazer.”

A tiazinha que controlava o outro lado do balcão fingiu não ouvir o pedido do rapaz. Porque ela sabia que era cliente de gelada e não de quente. Queria evitar problemas. Vera, por sua vez, começou a falar num “lago escuro”, onde ela não tinha certeza se “pulava ou não”. Foram uns bons 15 segundos de silêncio, depois daquilo. Até que sob a sombra de um certo juízo o rapaz retomou suas práticas mais tradicionais: “Dá uma cerveja, dona Marlene. Bem gelada.” Ele e a tiazinha se entreolharam e trocaram um breve sorriso, e, estando ambos calibrados para voz-alta-mode-off, trocaram também uma frase que parecia ensaiada: “Não pode mais chamar de canela de pedreiro…” Riram alto, como se às vezes esquecessem das regulagens que fazem em seus painéis.

Cada um com seu goró. Como tinha que ser. Minotauro ia, à-vera vinha, taxistas iam, taxistas vinham e… o lago escuro não saía da pauta. Ela insistia no assunto. Falava de mergulhos. Citava encruzilhadas e igrejas. Apontava dúvidas. Mencionava o pai. Olhava inquisidora para os olhos do rapaz e falava em “transferência”. E quando ele começava qualquer frase ela devagarinho batia palmas, como que conduzindo um samba; sugerindo uma melodia, um andamento. Num primeiro momento, Nino não percebeu aquilo; mas, depois do segundo litrão, muita coisa foi ficando mais clara. Vera no entanto não parecia disposta a abrir mão de controlar o jogo. Na cabeça da moça, era o seguinte: se do outro lado do ringue não estava o Minotauro, não havia o que temer. Ou o que perder.

Em jogos de sedução, com ou sem monstros míticos, chega uma hora em que um dos dois lados pode mudar de estratégia. O que dizer sobre uma brincadeira que ocupa uma preciosa e disputada mesinha de calçada por três horas? Dona Marlene não dizia nada, ainda mais que o casal estava bebendo bem. Já eram vistos como um casal. Compraram amendoins dos moleques que passaram vendendo a iguaria. Investiram em paçoca, gomas de mascar; ajudaram uma mãe que precisava de fraldas para o bebê. O Minotauro estava demorando demais. O monstro estava perdendo. O playboy tinha chances de vencer.

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Boteco Connection #10 — Calçada unida

Dezembro nem começou direito e parece que é a premissa é: “Mês de sentir saudades”. Teria sido a conclusão mais “lógica” de cinco pessoas que se encontraram sem-querer-querendo, numa calçada, ainda agora. Mas cinco cervejas para cada um e os pensamentos acompanham a vibração: começam uns a querer falar mais alto que os outros sobre o que lhes apertava o peito. Não é que pensamento e cerveja não combinem. É que o papo era saudade, não era combinação. O que combina com saudade? Atravessar a rua, rabiscar toda uma parede com o nome de alguém, mensagens que batem recordes de doçura, flores amarelas, café com canela?

Cinco pessoas, isso. Cinco itens, isso, também. Cinco segundos de silêncio e alguém dispara, no embalo de uma conversa que passa a ser temperada por sacanagens diversas: “A Help era o coração do Brasil. Quando fechou aquilo, você matou o Brasil. Por isso é que aquele museu não vai, gente, não vai pra frente, virou tipo um cemitério de índio.” Foi tão bem construído e certeiro, o negócio, que os cinco segundos seguintes pareceram cinco minutos. A resposta, ninguém viu bem de onde veio, mas provocou de xingamentos a risadas, ambas tímidas: “Tá com saudade da putaria, né?”

“As ideias são como um prêmio para quem trabalha. Quem trabalha merece ter ideias. No meio dessa demolição da intelectualidade, o problema é que a gente tá com muito mais trabalho. E poucas ideias…” Frase complexa é assim. Por um lado, pode fazer todo mundo pensar que talvez tenha bebido demais. Por outro, faz todo mundo pensar e isso é bom. Era o caso de aproveitar, ali, naquela assembleia, o fato de que estava todo mundo a fim de pensar. Alguns até sofriam com isso. Para estes, pintou uma frase, mais curta, ainda com tapa-na-cara-mode-on: “Bora! Bora! Bora!” Tipo na academia, isso mesmo.

Foi possível sentir no ar um sopro de confiança. Ou estava todo mundo meio desnorteado mesmo. Talvez alguns até se perguntassem se seria possível retomar o papo, a partir daquele ponto. A autora do veredicto estava quase envergonhada por ter soltado aquilo, como se fosse culpada pelo silêncio que se seguiu. Era o caso de sentir-se orgulhosa. Mas não adiantou aquele outro maluco dizer isso a ela, baixinho. O movimento gerou até desconforto, porque parecia uma divisão do time. Não que a divisão fosse proibida, ali, mas… Ainda estava fresquinho na cabeça de geral aquela vontade de unir. “Calçada! Unida! Jamais será vencida!” Quase dava para imaginar o pessoal saindo com isso aos gritos: “Calçada! Unida! Jamais será vencida!”

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Minguante

Os balcões dão à gente a chance de ouvir muita coisa. Tem muita bobagem. Mas conte também com razoáveis lições de vida. E piadas. De todos os tipos, sendo que a maioria não é razoável, se é que se pode mesmo esperar isso de um chiste. Dava para dispensar as chatices tipo as do pessoal que reclama dos pedintes que “daqui a pouco vão ter máquina de cartão para tirar dinheiro nosso”. Dava também para não ter assim tantas baratas na calçada, porque, ao contrário dos balcões, elas rendem mais gritinhos histéricos do que ensinamentos. Além de quase invariavelmente piorarem o carma da rapaziada que se vale de pesados calçados na condução de esmagamentos atabalhoados e bem pouco cinematográficos.

“É, a gente brigou. É sempre assim, a senhora sabe”, choraminga a moça que, parecendo exausta,  desaba debruçada sobre uma mochila, duas sacolas de mercado e uma quarta bolsa que parece mais pesada do que todas as três primeiras juntas. Quase um acampamento. Ela reclama do marido, numa ladainha que pelo sorriso — debochado? desdenhoso? — a atendente parece reconhecer. E como que para eleger a noite como definitivamente apropriada para a piora dos carmas dos presentes, aquela-que-dá-cervejas-a-quem-pede-desde-que-pague-na-hora coloca uma pilha bem errada: estimula a falação da cliente sofredora. Sob os olhares desaprovadores de todos os outros presentes, que chegam a oito cabeças, porque é um balcão comprido, a reza se estende por uns bons 15 segundos. E, de repente, como acontece nos balcões, o pessoal conseguimos a liberdade, fugindo completamente daquele teaser de novela mexicana.

Nada contra as tramas televisivas daquela nacionalidade. Estão repletas de ensinamentos, assim sem aspas mesmo, e assim como os balcões. Quando acontece de os dois universos se misturarem, aí, olha, aí é um prêmio na loteria. Uma chance de lidar melhor com o desembrulhar do carma. Quer coisa melhor do que perceber o incômodo na voz de um intelectual cachaceiro? Ah, sim, o capítulo que estava em andamento: o beberrão seboso se incomoda com  os movimentos de um outro que, rapidamente, consegue embrenhar-se na prosa de duas moças. Elas, além de darem trela, dão sorrisos, o número do WApp, aceitam cervejas, cobrem de elogios a empadinha já famosa que toparam também como mimo e… E está mexicanizada, a novela do bar. Olhares dos quais escorrem ódios. Falas que desenterram problemáticas antigas. Espetáculos assim não são pra qualquer um. Quem ficou atento ao início mal pode esperar pelas próximas cenas. A noite naquela calçada úmida promete ser quente. O pico deve ficar árido.

Quem está sob a luz da lua, que naquela noite de dança dos agravamentos cármicos é por acaso minguante, tem a chance de perceber a Fiscalização se aproximando. Geral parece saber que é assim, com maiúsculas, que aquele pessoal uniformizado gosta de ser tratado. É quando há uma união, mesmo que rápida, entre o pessoal que acha que está enricando além da conta o dono do bar. Há temor, além de um inexplicável desejo de desafiar a Lei. Referem-se à Lei, assim, com maiúscula, mas com dúvida. E isso aumenta o desejo de pagar para ver. Ainda mais que quem vai pagar mais caro, no fim de tudo, é o proprietário do estabelecimento. Ele preferia que a “brincadeira” ficasse só na questão do carma. Mas nem sempre é assim.