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Haja punk rock

“Aperta aqui. Depois, a gente passa um álcool na mão e tá tudo certo.” Foi assim a tentativa de encerrar uma discussão que começou com futebol e, por causa da cerveja, não terminava. O álcool por dentro talvez tenha estimulado o mais calmo dos dois a sugerir o álcool por fora, isto é, nas mãos, para encerrar e pendenga de maneira que, digamos, nenhum dos dois lados levasse prejuízo para casa. Como os mais civilizados faziam, antigamente. Neste caso, o prejuízo seria o Covid. Mas logo depois de pronunciada a frase… Bom, a coisa acabou, ali, acabou mesmo. Mas com os dois fazendo papel de cara-de-bunda, sem o aperto de mãos. Mesmo quase bêbados, entenderam que o álcool-70% tiraria mais do que os “germes”, como diz a Lucy do desenho dos Peanuts. A moral da história é: álcool por dentro pode estragar tudo; por fora, já não garante muita coisa, para infelicidade dos mais civilizados.

Um troço que não acaba é discussão sobre futebol e política. Outro dia, um cara, bem intencionado, até, pelo que se sabe, do tipo que nas últimas eleições não fez o papel de classe-mediano-escroto, esse cara falava de “cidadãos de bem”. Pra você ver, hein, como se trata de uma expressão emporcalhada pelo ódio mas que pode aparecer em qualquer dos 300 lados. Aconteceu num grupo de WApp. E foi só aquele social-democrata falar em “cidadão de bem” para uma integrante da turma apontar que aquele era o nome de um jornal da Ku Klux Klan. Acabou como no episódio anterior. As expressões de constrangimento, desta vez, não apareceram. Porque se tem uma coisa boa nos grupos de WApp é a garantia de certa “proteção” aos usuários: o cara-de-bunda do iPhone interage com o cara-de-bunda do Samsung sem precisar do álcool por fora.

Estes dois primeiros parágrafos resumem tão bem o “quadro” dos últimos dias que seria razoável encerrar por aqui mesmo a crônica. A vida em dois parágrafos. Histórias curtíssimas. Já é quase Natal. Esperanças limitadíssimas, mas, com um liquidozinho higienizador, tudo pode se resolver e manter a esperança de pé. Rá! Mas o tempero extra do universo — pitadas de passado quase esquecido e de futuro bastante incerto — andam aparecendo de uma forma assim tão 70%, como que prometendo desdobramentos improváveis, que há algum combustível para seguir em frente. Ah, e teve o aniversário de lançamento do “Fresh fruit for rotting vegetables”, dos Dead Kennedys, esta semana. O álbum fez 40 anos. Não dá para terminar uma prosa sem registrar isso.

Estamos falando de um álbum que não era exatamente uma pregação em favor da revolução. Mas uma zoação que beliscava os mais sensíveis num modo non-stop. E tudo com uma velocidade, um vigor, umas letras e um deboche provocador que até então a gente não estava acostumado a ver. Não foi à toa que um monte de cinquentões postou estes dias que aquele foi um disco que mudou suas vidas. Será que estes sujeitos percebem que mesmo sem o medo da terceira grande guerra podemos eleger aquela pérola punk como uma trilha bastante adequada para os tempos atuais? O legado dos Kennedys não vai morrer nunca.

Quer coisa mais Dead Kennedys do que sair para ir à feira, num sábado, e, por se tratar de um percurso feito na Zona Sul do Rio, ver uns bons 30 policiais, pelas esquinas, espalhados em duplas ou trios, cuidando (até as 20h, pelo menos) da segurança da tradicional família carioca? E em pelo menos quatro destes pontos, o que eles estavam fazendo? Mexendo em seus celulares! O que será que estavam lendo/digitando?  De que grupos de WApp será que fazem parte? Não há mesmo álcool 70% que dê jeito. Haja punk rock.

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Conto Literatice

Tonto, sim

Bené sabia que Tonto era o nome de um índio em algum programa de televisão. Da época em que era criança. Não estava certa se ainda era uma atração que podia ser vista, hoje em dia; mas lembrava de ter acompanhado uma história que tinha um personagem batizado daquele jeito: Tonto. Achava aquilo engraçado. Ficava se perguntando se tinha achado bonitão, o Tonto. Se era por tal motivo que havia decidido chamar daquela maneira o irmão mais novo. Era isso: foi por causa do Tonto da TV que o pequeno Antônio tinha recebido aquele apelido.

Até que a palavra Tonto tomasse conta da cabeça — ou saísse dos sonhos — de Bené, todo mundo chamava o menino de Tonho. Mas ela, aos 13 anos, já achava que tinha idade para decidir coisas importantes na vida, considerava “muito sem graça aquela história de Tonho”. Pensava que o menino merecia coisa melhor. E Tonto era bem melhor. Era uma escolha da qual ela se orgulhava. Muito. Não que tenha sido fácil. Considerou que seria, sim, um risco para o pequeno. Outras crianças talvez aproveitassem o apelido para na escola fazer chacota dele, por exemplo. Mas ela esperava que com aquela nova alcunha pudesse dar ao irmão também sabedoria para enfrentar as coisas difíceis que a vida por acaso colocasse no caminhozinho dele. Ela falava assim: “caminhozinho”.

Bené estava certa de que a humanidade a via com melhores olhos desde que tinha deixado para trás o Benedita escolhido por sua mãe. Ou seu pai. Ou sua avó. Ou seu avó. Vivia se perguntando quem tinha escolhido o nome que carregava. Nunca tivera coragem de perguntar sobre aquilo. Tinha medo da reação da mãe. E do pai. E da avó. E do avô. O avô era quem ela mais temia. Brincava com os nomes, para fazer parecer que era só mesmo brincadeira. Mas era uma estratégia. Bené era boa de apelidos e de estratégias. Era a sua Capoeira.

Esta semana que passou agora, Bené, já adulta, foi à feira com o irmão. Ele também já adulto, acostumado com o “Tonto” com que a irmã o tinha presenteado. Enquanto caminhavam, entre cachos de bananas, abacates e caquis, Bené apontou para uma graviola. Tonto entendeu logo o que ela quis dizer e os dois pararam para comprar. Ele tirou do bolso uma nota de 20 e deu ao feirante, achando que estava diante de um rosto algo familiar. E era mesmo. O vendedor sorriu um sorriso meio estranho, no qual Tonto identificou algum traço de deboche. Comprovou isso quando ouviu o sujeito dizendo: “Ah, o Tonto… fio de dona Zefa…”

O jeito como o mercador pronunciou “Tonto” causou um leve desconforto nos irmãos. Depois de dizer isso, o feirante separou três notas e deu ao rapaz. Era o troco. Três notas de dois. Fez isso e virou, como fosse atender outra pessoa que se aproximava da barraca. Foi um movimento muito rápido. Ele na verdade não ia atender ninguém. Tonto — mandingueiro, aprendiz de Bené — percebeu a manha. Levantou a cabeça, como que esticando o queixo para a frente, e coçou levemente o pescoço. O homem da feira voltou o olhar para o freguês, dessa vez sem qualquer traço de zombaria, e viu o movimento de ir e vir dos dedos do irmão de Bené, coçando o pescoço. Separou então uma nota de dez, que era o que faltava para completar o troco, e deu ao rapaz. Bené sorriu, certa de que tinha ensinado coisas importantes ao irmão.