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Boteco Connection #12 — Santa dança

Pode ser que a chuva tenha contribuído para azeitar as engrenagens e, assim, acionado os flashes de memória de Godie Boy. Talvez ele precisasse lembrar de coisas boas, em vez de ficar pensando no amigo que havia partido semana passada por causa de uma treta depois de um jogo de futebol. A moça de azul e branco, do outro lado da rua, claro, também colaborou: mobilizou a atenção do cara, talvez construindo a base de histórias para, quem sabe, serem contadas daqui a duas décadas. Ela se movia como se fosse música. Ela era música. Vai entender. Mas o que aconteceu foi que… Num piscar de olhos, Godie Boy saiu da laranjante Praça São Salvador do apocalíptico 2023 e pegou uma passagem até a Santa Teresa de 28 anos atrás.. Estávamos indo em direção ao século passado, compadre. Que chuva era aquela!?

“Eu tinha 18 anos e era a primeira vez que ia a Santa Teresa. Pro Simplesmente, tá ligado?”, perguntou/desafiou, como se fosse um rapper. “Existia rapper, em 1995?”, brincou, antes de lembrar sorrindo de um Seu Jorge na calçada “esticando o copo pra pescar um gole de cerveja quando via uma garrafa vindo do balcão”.  Lembrou de Dulce, que segundo ele na época era dona do bar, e de quem depois tornou-se amigo. “Era uma noite daquelas em que a gente não queria ficar na calçada. Tinha saído da Tijuca, com os amigos, já estava todo mundo calibrado. Mas a gente queria cerveja. Era um balcão de madeira.”

O sorriso se alargou quando Godie Boy começou a explicar que sua relação com aquele bairro é muito estreita. Íntima. Intensa. Longa. E tudo por causa de Teresa, que ele conheceu justamente naquela noite. Olha só o nome dela. “Ela se chamava Teresa, cara. Tinha começado a tocar uma música do The Doors. E ela me olhou e perguntou: ‘Vamos dançar!?’ Sabe aquela ‘Riders on the storm’? Era essa…” Números entraram em cena para dar detalhes ao encontro, como que fazendo tudo ganhar precisão: “Eu tinha 18. Ela tinha 36. Tinha o dobro da minha idade, cara! Eu fui para Santa, dancei com Teresa, e comecei a frequentar o bairro. Conheci várias coisas por lá. A gente ficou. Eu todo animado, naquela primeira noite, achando que ia ter de tudo, mas ela falou que estava na casa dos pais, com a filha, e o que aconteceu foi que a gente só se beijou. muito, ali… Os amigos dela era ainda mais velhos. Eu era muito moleque.”  

O século passado parecia ter sido mesmo muito divertido para GD. Ele emendou contando que foi neste mesmo bar que reencontrou duas moças de Itu. Duas que havia conhecido num acampamento em Trindade. As meninas tinham confessado que queriam vir para o Rio estudar teatro e, anos depois, na boa e velha ST, eis que GD revê as duas… não como frequentadoras, mas, sim, como funcionárias do bar. Aí, as histórias ganharam o terreno da malandragem numa perspectiva menos edificante: “A gente pedia uma cerveja. Vinham duas e mais uma caipirinha. Elas deram muita moral pra gente. Dormia lá, quando o bar fechava, num sofá. Bons tempos.”

Alguém chega perto, como que atraído pela vibração da história do “garoto”. Godie Boy tinha se transformado num moleque, revisitando brincadeiras de décadas passadas. Mesmo quem pegava o bonde andando acaba se divertindo. Uma alma qualquer pegou o telefone e youtubeou para achar uma versão de “Riders on the storm”, o que deixou todo mundo impressionado com os ruídos de chuva que vinham da gravação. Aquela tarde era nossa. Geral garoteando. Engrenagens rodando que era uma beleza.

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Vinhozinho, vai? (#hiperlocal01)

Quinze minutos de evento: queijos e embutidos sumiam sem cerimônia do espaçoso tampo de vidro em que se enfileiravam, também, grandes taças para os vinhos e outras, menores, para quem precisasse de goles de água. O fenômeno da transformação de comida em vapor se dava mesmo antes da chegada das bebidas. Reúna iguarias numa mesa e elas vão sumir em pouco tempo, não importa o tipo de gente que esteja em volta. Não importa a década. Não importa quem está no Governo. Naquela tarde, nove em cada dez eram homens com camisa de mangas compridas trazendo aquele bonequinho em cima de um cavalo. Ralph Lauren, é assim que chamam. Nenhuma era do jacarezinho, também conhecida como Lacoste. Oito em cada dez eram vestimentas com botões de cima a baixo. Houve um tiozinho quem investiu no formato pra-dentro-da-calça. O convite avisava que seria uma tarde de apresentação de novos rótulos — Oscar Haussmann e Chateau St. Thomas — mas era na explicação da representante comercial que estava a promessa de crônica: uma degustação de vinhos alemães e libaneses.

Uma tarde de dualidades. Era comum nas coletivas de artistas que estavam lançando alguma coisa, nos anos 90 e 00: uma mistureba que reunia figurões dos grandes jornais e o pessoal dos veículos alternativos. Todo mundo comia das pastinhas que as assessoras de imprensa usavam para animar aqueles encontros. E a partir daí, do consumo de comidinhas, a divisão começava a ficar mais caricata. De um lado, marrentões que apontavam os “pequenos” como comilões. Do outro, “pequenos” que de fato às vezes agiam como mortos de fome. Essa dicotomia Alemanha-Líbano podia não ser uma viagem ao passado do jornalista que foi parar lá porque fazia, agora, também o papel de dono de um bar. Mas soava como diversão. Todo fim de mês, donos de bar precisam procurar diversão, para lidar com o movimento mais fraco.

Começaram com os alemães. E o primeiro mostrou-se doce demais. Estranho, dar a partida desse jeito. As especialistas deviam ter suas razões para apostar no OHO1 — Riesling Semi Sweet. A explicação não veio com qualquer aprofundamento, foi quase um “é doce porque é doce”. Na sequência, o OHO1 — Dry e depois o OHO1 — Reserve. Pareciam feitos/servidos só para amaciar, estes rieslings. A melhor coisa a se fazer era abandonar momentaneamente o pessoal dos distintivos de cavalinho para perguntar ao Google sobre aquela uva. E eis que a gente descobre que se trata da uva branca mais cultivada na Alemanha. A França é a segunda maior produtora dessa parada.

O aparecimento de um convidado vestindo bermuda cargo foi como um sinal. Vieram também um balde para descarte e novas garrafinhas de água. Descarte? É, se o cara não gosta muito do que está bebendo ou já provou o suficiente daquilo, manda o restante para o baldinho. Queijo e presunto, ninguém joga fora. Vinho, sim, as pessoas são capazes de dispensar. Não é para tudo que o ralph-laurenismo te prepara adequadamente.

A quarta tacinha daquela tarde era com o primeiro libanês: o chardonnay St. Thomas 2020. Um branco que provocou estranheza. Mas pareceu abrir também a porteira da diversão. Talvez os alemães tivessem feito bem o papel de amaciar o pessoal. Talvez, talvez. Como que poupando uma ida ao Google, a moça que conduzia o abastecimento das taças informou que há uma grande influência francesa na produção libanesa daquele tipo de bebida.

“Manga”, apostou uma convidada, falando de algo que ela tinha sentido ali no vinho. E no flow outras tantas palavras surgiram, como numa rodada de Adedanha. “Mel”, disse alguém, contando com a aprovação de bebedores do lado noroeste da mesa. O escriba que vos digita arriscou um “Tem algo defumado, aqui” e também contou com a aprovação do mesmo grupo. Ali, já dava para perceber que, em termos de vinho, os alemães são (ou tinham sido, naquela tarde) mais “fáceis” do que os libaneses. Isto é, os sabores das bebidas libanesas ali apresentadas eram indiscutivelmente mais complexas e animadoras do que as alemãs.

Da mesma origem, vieram um Pinot Noir 2017, um Les Gourmets Rouge 2018 e… Libanês vai, libanês vem, chegava a hora da última garrafa, aquela que foi apresentada como a grande estrela da tarde: Le Merlot A, de 2009. “Vinho de 1.500,00 Reais”, alguém disse, provocando olhos mais arregalados. “18 meses em barrica”, continuavam, entusiasmados. Até o fechamento deste texto, o preço não havia sido confirmado pelos anfitriões. Seja como for, o produto mereceu ser servido num decanter de cristal. Na taça, o líquido parecia mais oleoso do que os vindos anteriormente, criando desenhos. Impressionante.

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O sobrevivente

Nas imortais palavras de Wander Wildner, “Boa sorte, boa morte”. É assim que o sempre-Replicante, atual punk-brega, ícone-ídolo dos corações revoltados de outrora e agora porta-voz de suspirantes-crentes-no-amor terminava “Boa morte”, faixa da sensacional fitinha do grupo Sangue Sujo (da época em que WW era mais “só punk mesmo”). O cassete morreu, mas, por sorte, podemos usar o YouTube para comprovar a existência da máxima. Sorte? Morte? Palavras que, claro, não surgem à toa. Confissões chorosas que podem, sei lá, saltar duma mesa bem ao lado, são capazes de anunciar que o fim está próximo. E no fim das contas — como também diz a letra — “Um dia qualquer no fim das contas você vai morrer”.

Rebobinando ainda mais, e ainda mantendo a atenção ao que vaza da conversa na vizinhança, o escriba revive/constata o drama de Aloisio Dantas, ou Alolô, como zoavam os amigos antes de jogarem pra cima dele o terrível Já-Morreu. Ah, nada como uma reunião de amigos de colégio (suspiro) para conseguir inspiração. Como cresce um garoto, depois de ganhar um apelido assim? Naquela época, não chamavam isso de bullying. Era só sacanagem mesmo. Talvez por isso tenhamos nos transformado num país campeão na formação de psicólogos. O curso atualmente é dos mais procurados, como apontou uma edição da ainda — e surpreendentemente — viva “Folha de S. Paulo”.

Sermos campeões no número de dentistas não fez de nós, ao longo de décadas passadas, uma nação menos boca-suja. Vamos ver o que o pessoal da Psicologia vai conseguir, nas próximas eras. Se serão capazes de ajudar a gente a lidar melhor com a inevitabilidade do Fim. Ou, o que já pode ser um grande adianto, a aproveitar as pequenas mortes. Como no francês, sabe? Pequena morte, sacou? Sacou?

Vestir o paletó de madeira virou assunto banal. Há para isso a contribuição do jornalismo-lixo dos programas televisivos de depois do almoço. A gente diz “jornalismo-lixo” porque o jornalismo mais romântico não sobreviveu para ser/manter-se fã de Wander Wildner. Morreu faz tempo, o pobre coitado. A morte parece hoje tão líquida quanto as relações. Não vão achar absurdo, daqui a um tempo, escolher quem vai morrer através de um aplicativo. Se as pessoas escolhem seus pares passando dedos em telas de telefone, daí para usarem o mesmo método para apontarem quem irá desta para melhor é um pulo. Quer dizer, um clique. No século passado, o Schwarza — eita cara bom de matar gente na grande tela — protagonizou um filme em que um troço mais ou menos assim acontecia num show de TV. Qualquer semelhança com os programas de hoje em dia depois do almoço não é mera coincidência.

É claro que a Inteligêntsia sempre vai poder bater no peito bronzeado e eventualmente bem agasalhado para dizer que a Morte faz parte do jogo. Ah, a Inteligêntsia e seu desprendimento. Ah, a Inteligêntsia e suas referências. Vão dar um jeito de desenterrar “O sétimo selo”. Se bem que vão tirar isso do grande caixão da História mas, apesar de — OK — ser uma grande fita, quem é que vai ter paciência de assistir ao que fez o Bergman, hoje em dia, para depois discutir a respeito? Isso morreu! Nem os psicanalistas fazem mais isso.

Ninguém vai ficar pra semente, como garante a tiazinha do bar, enquanto faz pular as chapinhas dos litrões que os eternos estudantes pediram para a nova rodada de ressurreições. Depois de amanhã, ela diz, com cara séria, “é aniversário de morte da minha irmã”. Um momento de silêncio. E alguém levanta um brinde em homenagem a dona Marli. Beber para jogar Luz no caminho de alguém. Taí. Uma hora alguém ia achar uma coisa boa pra fazer com essa história toda de Morte. Saúde!

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Cuidados

Passou pelo Largo do Machado sabendo bem do horário porque se programou para curtir os sons do meio-dia, principalmente/especificamente os sinos daquela igreja onde dois anos antes — na missa de sétimo dia de falecimento da mãe — tinha testemunhado um sacerdote assustadoramente vacilão fazer “piada”  dizendo que catequistas seriam fuziladas. Teve dificuldade para driblar as poças d’água, a caminho da feira, já que ia no automático desatento às provocações da chuva; querendo parar de pensar que já era tarde para conseguir bons camarões. Tudo contribuiu para que Pê chegasse atrasado ao encontro com Gê.

Os dois tinham marcado um papo que Gê chamou de “sessão”. Aconteceu, isso, após o mais velho ter acreditado perceber mudanças que considerou significativas no comportamento de Pê. Já eram conhecidos havia o quê, uns bons dez anos? Por aí. Talvez 12. A amizade começara na época do nascimento da filha de Pê, que por meses tinha se transformado numa espécie de atração na hora do almoço no restaurante que os dois frequentavam. Era mesmo uma graça, a menina. Gê ia lá para comer. Pê, para beber: achava que o fato de o lugar ser conhecido como restaurante e não como bar garantia uma dichavada que não fazia mal a ninguém.

“E aí, compadre?” “Fala!” Mãos apertadas. Abraço dado. Sorrisos leves, largos e demorados. Respirações profundas. Depois que as cabeleiras balançaram sob o ritmo de gargalhadas-bênção, houve um bom minuto de silêncio. “O que tá rolando, cara?” Quem fez a pergunta foi o mais novo, ao contrário do que parecia programado para o encontro. Gê encolheu-se, para responder. Comentou sobre o trabalho do qual não estava dando conta. Das despesas que aumentaram sem que ele conseguisse entender por quê. Revelou um flerte com uma droga nova. Confessou ter ficado viciado em xadrez online. Deu um jeito de reclamar do professor de Matemática que teve aos 14 anos e levantou-se para ir ao banheiro.

Pê, neste intervalo, quis revisitar as respostas do amigo. Mas sentiu que se insistisse nisso perderia de vista a lista que estava elaborando. A relação do que guardara para soltar naquele encontro com o camarada; era essa, a lista. Viu pingos — muita gente, mas separadamente e por isso “pingos” — de uma enxurrada em direção às academias e sentiu que, se fixasse a atenção naquelas personagens, também perderia sua programação para a conversa. Sabia que se desconcentrava fácil, fácil, e que talvez pudesse ser este um dos pontos a comentar com o parça. Pode ser que o xixi do outro não tenha demorado o suficiente para que Pê se organizasse. Seja como for, o que aconteceu foi que na volta tudo que Gê ouviu foi “Cara, está tudo na mesma. Não tem muita coisa acontecendo.”

Mais um tempo de silêncio. Então, um intervalo maior. Durou do instante em que o garoto dos amendoins derramou, sobre a mesa, em cima de um papel verde, uma amostra do que estava vendendo e o momento em que este mesmo sujeito voltou para recolher a iguaria. As cabeças balançaram de novo mas aí já não havia nenhuma gargalhada no ar, era só para dizer não ao Vê. Os copos se esvaziaram, vieram mais duas garrafas. Iam experimentar uma bebida diferente.

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@monteiro4852 #121

O amigo do amigo do Diego foi demitido, ontem. E a amiga da amiga não apareceu para a cervejada marcada para domingo.

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O herói da estação

Um estêncil “incômodo” com o qual a gente precisou se acostumar a conviver é o “Não desvie o olhar”. Um desagrado bom/necessário, nos dias de hoje, parecendo pretender convidar ao pensamento crítico. De um modo geral, fica(va) em postes, na parte baixa, rente à rua. Como que numa alusão à população que rasteja também ali naquela altura. Eles, os pedintes. Pessoas em “situação de rua”, como dizem. Quando A. parou na esquina, naquela sexta, estava perto de um daqueles sinais. Pensava na Primavera, sobre a qual tinha ouvido muita gente falar, naquelas últimas horas. Era o primeiro dia da estação. Estava avexado, mesmo antes de encarar a sentença pintada em azul. Não queria ler. Queria ser lido. Chegou a imaginar que, talvez por isso, para se mostrar, estivesse parado, ali naquele cruzamento. Mas não teve jeito: foi incapaz de fingir que não viu.

Tinha aprendido que ficar parado numa esquina representa risco. O ensinamento viera de um policial, anos antes. O sujeito disparou num bar algo do tipo “O cara fardado não pode ficar de bobeira, pra não virar alvo”, e, mesmo sem farda, fez todo mundo ali entender que estava diante de um prisioneiro de uma daquelas roupas. Quase todo mundo fingiu que não ouviu. Um flash silencioso e nada mais, foi o que aconteceu. A bebida é mesmo um ótimo entretenimento, às vezes. Mas o bagulho ainda ecoava nas entranhas de A., anos depois. “Porra, cadê as flores?”, reclamava, ali, parado, sem conseguir decidir se estava mais amolodado com as lembranças ou com a frase na grande estaca de concreto. Fingir, isto é, representar não era assim tão fácil.

Parecia ter chegado a hora de tornar mesmo aquele momento um troço mais cinematográfico. Como? Acendendo um cigarro. “Mesmo sem Zippo, funcionou”, concluiu, rindo sozinho, quando uma mulher parou e pediu informação sobre uma rua. Sentiu-se, aí, sim, um ator num filme. Era como se naquele momento a Primavera tivesse finalmente começado para ele. Respirou como um herói: preocupado com o pessoal jogado nas calçadas, conhecedor dos nome das ruas da vizinhança, com a camisa bem passada. Ah, sim: calculou um movimento para ajeitar a roupa. “Herói tem que ser um pouco vaidoso”, desculpou-se, num cálculo-pensamento na velocidade da luz. Ouviu um bem-te-vi. E, ainda com aquela aceleração impressionante, rimou com quero-te-ouvir. “Ela quer me ouvir, é isso que ela quer…”, falou, deixando confusa a interlocutora que, com olhos um pouco arregalados, apressou o passo e saiu daquela cena.

Desconcertado, A. olhou em volta. Não sabia bem o que estava procurando. Era como se o silêncio o isolasse. Pensava em por que os carros tinham parado de fazer barulho. Tentava entender como as crianças jogando bola do outro lado da rua conseguiam fazer aquilo em silêncio absoluto. Teve medo de perder os super-poderes. Olhava para todos os cantos, como que num daqueles passatempos de antigamente, o Jogo dos Sete Erros. Foi quando viu uma mulher e duas crianças, protegidas por uma marquise de prédio. “Porra”, soltou alto, colocando a mão no bolso enquanto ainda não estava completamente certo do que dar a eles como almoço. Não queria perguntar. Ia fazer surpresa. O bem-te-vi de novo cantou, naquele instante, e meio que confirmou que como herói era aquilo mesmo que A. deveria fazer.

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Boteco Connection #7 — TX

“TX” foi como uma galera se acostumou a fazer referência ao “táxi”. Ah, a era das abreviações… “Valeu” virou “vlw”; “obrigado” passou a ser “obg”. E por aí vai. Mas uma citação que se espreme em duas letras pode ser considerada carinhosa/relevante? Sim, sim. Duas letras são capazes de exprimir apreço, medo, ofensa. “Cu” é um bom exemplo disso, para falar de um componente muito presente em nossos cotidianos. E voltando aos encurtamentos: quem nunca teve que encarar um “vtnc” num debate sobre política no Zap? Não soa mais ameno do que quando todas as letras são usadas? Mas fiquemos no universo dos taxistas, estes quase-pescadores/historiadores, às vezes safados [como qualquer dono(a) de cu pode ser], às vezes prestativos, gente conhecedora das leis, de Economia. Um pessoal que parece saber a Verdade. Isso tudo pra afirmar: ponto de táxi perto de um boteco pode ser garantia de animação fora da curva.

Fora da curva, não fora do taxímetro. Porque ninguém acorda cedo para levar desvantagem nas vias do Rio de Janeiro. Em grupo, eles se sentem seguros. Normal. Mas mais do que isso: parecem também capazes de oferecer segurança/proteção. Não numa perspectiva miliciana. Na camaradagem, em nome de uma certa “família”. Em português mesmo: família. Taxista, graças aos céus, é um cara que parece ter conseguido fugir dos anglicismos. Não existe meeting de taxistas. Existe churrasco mesmo. E mesmo se a carne estiver bonita, eles vão deixar pra lá a fome e vão conduzir o bêbado classe-mediano que saiu do boteco até o endereço informado. Porque agora tem a concorrência do Uber, né, então, minha gente, é tempo de ser mais prestativo do que nunca.

Os apelidos compõem um ingrediente espetacular. Filé. Fofão. Conde. Tim Maia. China. Kiko. Chaves. Medonho. Lobinho. Quando estão juntos, num dia fraco de corridas, ou numa noite com poucos bêbados solitários precisando chegar em casa logo para vomitar e mergulhar no sofá, o clima na calçada é de Segundo Grau. Segundo Grau no sentido de período escolar, o que hoje é conhecido como Ensino Médio. Ver um bando de “adultos”(#sqn) se zoando, a ponto de dois se juntarem para fazer uma cama-de-gato que vai derrubar um terceiro… Não tem preço. Esta categoria, a de taxista, parece às vezes ser um indicativo do que é a sociedade. Há as pessoas mais “sérias”,  há os com os carros mais bonitos, há os que confrontam uma torcida inteira e após uma garrafada no quengo choram como bebês, há os que mentem descaradamente, e ainda há os que não querem te levar a Santa Teresa usando como justificativa aquele caô de que “os trilhos do bonde podem rasgar os pneus do carro”. E — viva! — tem os que servem de “inspiração”, quando um escriba quer manter a regularidade e parece não ter sobre o que falar.

Taxistas parecem ser uma viagem ao passado. A um mundo pré-internet. Você não pode entrar no carro do Fofão — ainda mais se for o Fofão — e mandar uma mensagem com letras maiúsculas exigindo que ele desligue o rádio. Tem que investir na cordialidade e pedir com jeito. Esse pessoal em carros amarelos com listas azuis, aqui no Rio é assim, esse pessoal passa pelo mundo e vê o mundo passar. Às vezes, em alta velocidade. Nem sempre respeitam sinais. Nem sempre fazem os melhores caminhos. Quase nunca têm troco. Às vees, não são assim tão simpáticos. Nem sempre torcem para o time certo. Nem sempre votam no melhor candidato. Mas a vida é assim. É bom, quando estão ali; depois que a gente sai do boteco.

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Boteco connection #6 — 80 anos e no jogo

O que pode melhorar um dia em que, até o início da tarde, tudo que o cara vendeu foram três garrafas de Spaten 600ml? Por onde andariam os biriteiros do bairro? É, crise é isso aí, compadre. No flow, surge um tiozinho declarando ter passado dos 80 anos. Figura nova na área, do tipo que fala pouco: “Cachaça.” Mantendo a crença na necessidade de confirmação que algumas situações trazem, surge do outro lado do balcão a pergunta: “Cachaça?” E a resposta, mantendo o estilo: “Barata.”

Já não era mais necessário confirmar muita coisa. Uma primeira resposta ruim quase sempre fazia nascer uma segunda pergunta que não raro beirava a antipatia: “Barata?” Aquilo que era adequar-se ao estilo do freguês. Puro marketing de boteco. Sem dar tempo para resposta: “Olha, tem essa aqui,” mostrava o cara do bar. O coroa apertava os olhos, depois de ajeitar o boné verde que não lhe caía bem na cabeça de cabelos ralos e cinzentos. Negociado o preço, ele pediu, além da dose, limão e açúcar. Beleza. Oitenta anos, caramba. As solicitações não parariam por aí. A vítima seguinte era o Tonto, que estava brincando de segurança. Segurança que bebe latinha de Império: está aí uma categoria em que não se pode confiar muito mas que, pelo menos, é de um modo geral simpática.

“Posso me sentar?”, inquiriu o senhor, sem dar pistas sobre até onde iria co’aquilo; mas já falando muito mais do que se passou a esperar dele naquele curtíssimo espaço de tempo. Cachaça barata é um troço que pode sair muito caro. “Melhor não”, respondeu Tonto, claramente temeroso. “Ah, o seu espírito não bateu com o meu”, começou então o Senhor Boné Verde, completando sem dar tempo para que o rapaz de bigode e amante da solitude se recuperasse: “Eu gostava de brigar. Você já matou alguém?” Era só a primeira cachaça, gente, e a coisa já estava neste nível. É bom ter cuidado com o que a gente sente/pede, porque o Universo está de olhos e ouvidos bem abertos. Queria um cliente? Toma um cliente.

Não era um tiozinho agressivo. Saiu da frente para os entregadores de Denker fazerem seu trabalho. Eram as garrafas de Ipa chegando, e, pelo adiantado da hora, não ficariam geladas para o forró que rolaria mais tarde, na praça, ali perto. De longe, não deu para entender muito o que respondeu o Tonto. Mas o tiozinho ocupou a segunda cadeira da mesa. Foi rápido. E foi de lá que ele pediu uma segunda dose. Já havia preocupação e medo no ar.

“Segunda dose? Como assim? O senhor pediu a primeira com desconto. Era pra ser só uma. A segunda vai ter que ser pelo preço normal. Quer mesmo?” O sorriso mais amarelo que se viu naquela calçada, naquela semana, confirmava que haveria uma nova branquinha-com-açúcar-e-limão. Deu pra entender o que ele cuspiu, antes de levantar: “O mau do urubu é achar que o boi tá morto.” Tonto mostrava-se até recuperado dos primeiros dois minutos de inevitável conversa com o forasteiro, mas aquela frase bateu mal e trouxe de novo preocupação para o ambiente.

Parecia tudo encerrado, com o papo de urubu. Cinco minutos? Menos de cinco minutos depois: “Agora, eu vou embora, mas quero mais uma”, pediu, mencionando o desconto dado na primeira dose e sublinhando que “aquilo sim é um valor justo”. “Espreme mais um limão aí. Bota açúcar nesse negócio, garoto”, provocou, talvez se escorando no efeito que o ensinamento sobre o comedor de carniça tinha despertado nas pessoas em volta. Era sensível, o velho; e estava atento aos humores. “Tá com limão, meu caro. E tá com açúcar”, ele ouviu. E ouviu também: “Estamos aqui pensando que hoje à noite na hora de fechar vai ser bom manter um olho no peixe e outro no gato, quer dizer, no urubu.” Histórias em bares às vezes se encerram de maneira abrupta.

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Minguante

Os balcões dão à gente a chance de ouvir muita coisa. Tem muita bobagem. Mas conte também com razoáveis lições de vida. E piadas. De todos os tipos, sendo que a maioria não é razoável, se é que se pode mesmo esperar isso de um chiste. Dava para dispensar as chatices tipo as do pessoal que reclama dos pedintes que “daqui a pouco vão ter máquina de cartão para tirar dinheiro nosso”. Dava também para não ter assim tantas baratas na calçada, porque, ao contrário dos balcões, elas rendem mais gritinhos histéricos do que ensinamentos. Além de quase invariavelmente piorarem o carma da rapaziada que se vale de pesados calçados na condução de esmagamentos atabalhoados e bem pouco cinematográficos.

“É, a gente brigou. É sempre assim, a senhora sabe”, choraminga a moça que, parecendo exausta,  desaba debruçada sobre uma mochila, duas sacolas de mercado e uma quarta bolsa que parece mais pesada do que todas as três primeiras juntas. Quase um acampamento. Ela reclama do marido, numa ladainha que pelo sorriso — debochado? desdenhoso? — a atendente parece reconhecer. E como que para eleger a noite como definitivamente apropriada para a piora dos carmas dos presentes, aquela-que-dá-cervejas-a-quem-pede-desde-que-pague-na-hora coloca uma pilha bem errada: estimula a falação da cliente sofredora. Sob os olhares desaprovadores de todos os outros presentes, que chegam a oito cabeças, porque é um balcão comprido, a reza se estende por uns bons 15 segundos. E, de repente, como acontece nos balcões, o pessoal conseguimos a liberdade, fugindo completamente daquele teaser de novela mexicana.

Nada contra as tramas televisivas daquela nacionalidade. Estão repletas de ensinamentos, assim sem aspas mesmo, e assim como os balcões. Quando acontece de os dois universos se misturarem, aí, olha, aí é um prêmio na loteria. Uma chance de lidar melhor com o desembrulhar do carma. Quer coisa melhor do que perceber o incômodo na voz de um intelectual cachaceiro? Ah, sim, o capítulo que estava em andamento: o beberrão seboso se incomoda com  os movimentos de um outro que, rapidamente, consegue embrenhar-se na prosa de duas moças. Elas, além de darem trela, dão sorrisos, o número do WApp, aceitam cervejas, cobrem de elogios a empadinha já famosa que toparam também como mimo e… E está mexicanizada, a novela do bar. Olhares dos quais escorrem ódios. Falas que desenterram problemáticas antigas. Espetáculos assim não são pra qualquer um. Quem ficou atento ao início mal pode esperar pelas próximas cenas. A noite naquela calçada úmida promete ser quente. O pico deve ficar árido.

Quem está sob a luz da lua, que naquela noite de dança dos agravamentos cármicos é por acaso minguante, tem a chance de perceber a Fiscalização se aproximando. Geral parece saber que é assim, com maiúsculas, que aquele pessoal uniformizado gosta de ser tratado. É quando há uma união, mesmo que rápida, entre o pessoal que acha que está enricando além da conta o dono do bar. Há temor, além de um inexplicável desejo de desafiar a Lei. Referem-se à Lei, assim, com maiúscula, mas com dúvida. E isso aumenta o desejo de pagar para ver. Ainda mais que quem vai pagar mais caro, no fim de tudo, é o proprietário do estabelecimento. Ele preferia que a “brincadeira” ficasse só na questão do carma. Mas nem sempre é assim.

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Boteco connection #5 — O (mau) cheiro da mudança

Pode não ser muito fácil, pelo menos não para a maioria, o sujeito parar e se perguntar o que mudou num determinado espaço de tempo. Ainda mais numa época em que a cada dois minutos tudo pode estar muito, muito diferente. E se a gente vê dificuldade neste questionamento, como esperar que haja chance — pelo menos para um ou outro maluco — de entender transformações que se construíram por, digamos, duas décadas? Fica difícil, no mínimo, por conta da quantidade de detalhes que podem ter se acumulado ao longo de um período assim tão grande. Né?

Porque, sim, é um período muito grande. Ou ainda é. Mesmo que haja esta velocidade toda, hoje em dia, e essa relativização incessante para qualquer assunto/questão. Tá: mesmo 20 anos atrás, tudo podia mudar em dois minutos. Mas talvez pouca coisa mudasse assim tão rápido. Ao contrário do que (pode) acontece(r) hoje. As mudanças são cada vez mais velozes e assustadoras talvez porque sejam fruto/desdobramento umas das outras. O mundo está pegando embalo. Onde isso vai parar? Isso vai parar? Desacelerar é possível/necessário? Mudança é um troço que se retroalimenta?

Por falar em necessidade, está rolando neste momento o 1.876.987° curso online que oferece a quem teme a fome a chance de entender o “mercado” e se reajustar/reorganizar para voltar a ganhar dinheiro logo agora, antes do fim da pandemia. Vai ser rápido. E pode fazer o pobre ainda resistente aceitar que os balcões de boteco mudaram. E que se, duas décadas atrás, ninguém sequer imaginava que existiria uma coisa chamada “grab’n’go”, isso hoje é uma realidade. Que pode mudar em dois minutos, claro. Mas é realidade…

Uma “prova” da capacidade que as coisas têm de mudar é este texto. Você até pode desdenhar: “Ah, é só uma provinha…” Mas, no início, mesmo sem que se soubesse para onde iria a prosa, não existia ainda nenhuma poeira que parecesse ser capaz de encaixá-lo na série Boteco Connection. Mas nada é garantido, os cursos online estão aí para reafirmar isso (e que tudo depende de planilhas, metas e organização). Pode ser que tudo mude ainda mais. Se vai ser possível entender, aí, são outros quinhentos. Ninguém disse que ia ser fácil.