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Boteco Connection #14 — Luz, câmera… goró e ação!

Que sofrimento, transmitia aquele casal, lá, naquela mesa. Que lavada, a mulher deu no cara. E ele calado.  Ela puxou o que parecia ser toda a história recente do sujeito. Era um daqueles casos em que ninguém precisava se esforçar para ouvir o que estava sendo sussurrado. Roupa suja pode mesmo cheirar mal à beça. Surgiram nomes. Escorreram detalhes . O cara, calado, só garantia que os copos estivessem sempre abastecidos de cerveja. Parecia que um pedido de isqueiro emprestado aliviaria a tensão. O movimento foi feito por alguém que passava, porque ninguém que estava ali perto teria coragem para tanto. Foram seis de 600ml, em pouco mais de meia hora. A virada veio, depois da sétima. “Fala de amor, fala de sentimentos. Eu fiquei lá… A gente combinou. Eu olhava. Vi um cara alto e voltei. Que susto, ali, naquele momento.”

No bar ao lado, um som alto. E um outro personagem, parecendo protagonizar o trailer de outro episódio de “Histórias desgraçadas”. Só podia ser isso que estavam filmando, mas ninguém via as câmeras. A porcaria de música escolhida, ali, não impedia o “público” de enxergar situações. Diante daquela garrafa de cachaça, que ia e vinha, alguém se debruçava sobre o momento que havia sido feita uma importante troca: em vez de amor em migalhas, amor em goles. A garrafa não ficava na mesa, mas não dava para afirmar que era por isso que os goles eram lentos. Apenas ia e vinha, nas mãos de um garçom que parecia querer cumprir corretamente o protocolo de encher o cálice até a beirada, até derramar/escorrer um pouquinho. Dava para apostar que em pouco tempo o bebedor escorregaria da cadeira. Mas não era um programa de apostas. Era uma minissérie sobre amor-lixo ou algo assim. Não era rodriguiano. Era escroto.

Duas meninas pareciam alheias a tudo. Tinham aparência de muito novas e devem, provavelmente, ter que mostrar os documentos para comprovar que estão na idade de consumir álcool. A pitada de terror da filmagem se deu com estas duas. Foram abordadas por um homem em situação de rua: grande e parrudo, com calça Adidas preta bem justa e uma camiseta verde. O que assustava nele era o tamanho. Parou em frente às meninas e deu para entender que se referiu a uma delas chamando-a de Teresa. Ele levou a mão direita ao próprio peito, quando abordou a duas, como se estivesse se desculpando pelo inconveniente. Teresa estava preparando um cigarro. É, um cigarro desses que a gente enrola com tabaco, pondo um filtro para reduzir danos, e acende fazendo pose de quem não está se matando… Depois do amor em migalhas e do amor em goles, surgiria, então, o amor em baforadas. Ela olhou para aquela com quem dividia a mesa, como que pedindo aprovação, e ofereceu o cigarro ao homem. Ele aceitou. As duas pegaram então suas latinhas, encostaram uma na outra, provavelmente sem conseguir com isso provocar nenhum tim-tim, e saborearam longos goles.

Num terceiro pico, estavam dois homens. Cada um com um celular, porque não dá para imaginar o mesmo aparelho para duas pessoas, né? Com boa vontade, era possível engolir o que os roteiristas queriam empurrar para a galera: o amor em kkkk. Parecia ser o tipo que termina mesmo mais rápido.

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Boteco Connection #13 — Ano que vem, quem sabe

A gente não pode ficar vivendo de lembranças de comédias românticas. Ainda mais quando elas têm duas décadas de lançamento e deixam claro que envelhecem num ritmo diferente do nosso. Nós, os eternos personagens. Os filmes, sejam de que estilo for, parecem sempre ter alguma vantagem em relação a isso que chamam de vida real. A gente, na busca por uma “saída”, talvez possa viver de aniversários em bares. Porque se as mesas e calçadas desses lugares são capazes às vezes de servirem de palco para — em vez de filmes — verdadeiras novelas mexicanas, esta programação, em datas comemorativas, periga virar tipo um capítulo especial. A quem não gosta de um frisson acima da média?

Outro dia na Marlene foi assim. O aniversariante, pra começar, viu acontecerem encontros que não estavam na programação. A data de nascimento é mesmo um bom dia para concluir de vez que não é possível controlar tudo. Uma desconhecida comentou que ao falar com uma amiga tinha ouvido, desta, que ia a um aniversário na São Salvador. “Ah, aniversário, só pode ser na Marlene.” E era mesmo. Junte um bar e uma data comemorativa e você terá não um filme, não uma novela mexicana roots mas, quem sabe, um seriado.

Professores de desenho fazendo sucesso entre um pessoal que talvez não consiga rabiscar nem um boneco-palito. Quer dizer, podem haver surpresas agradáveis, em encontros imprevistos. Aniversário em bar não é uma faca de dois gumes. É um exercício de digestão. Como digerir um encontro inesperado? Como suportar um desencontro? E um segundo desencontro, numa mesma noite, sendo que é uma noite de capítulo especial? Cenas marcadas, bem marcadas. Cartas marcadas. Mensagens na parede do banheiro. Marcas do tempo, um tempo que é de outro estilo; diferente do das comédias românticas. Sem chegar a ser filme de terror, porque cachaça e cerveja deixam todo mundo alegre.

Repetecos. Com novos personagens. Casais brigando, baixinho, porque é aniversário, demonstrando consideração com o comando da festa. Pessoas que estiveram naquele mesmo pico, um ano antes, sem serem convidadas, e numa coincidência cinematográfica ou musical, reaparecem para… para sumirem, logo em seguida, deixando o comando da festa atordoado. Além de entender que não dá para controlar tudo, aniversário é bom para sacar que não existe coincidência. Complicado? Quem sabe no ano que vem você entende.

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Não chega a ser uma conexão

As manobras que a gente precisa fazer às vezes para não apertar a mão de alguém, né? Mesmo que às vezes nem haja nesta escolha tanta certeza. O cara pode ficar perdido entre aqueles dois caminhos: um que a placa descreve como certa a opção de tocar outrem. Um segundo, uma outra placa, ali, bem do lado, que avisa sobre o risco do que será absorvido mesmo que o toque seja acidental. É muita coisa para a gente decidir, o tempo todo.

O que faz uma pessoa colar um adesivo num banheiro público? O que faz alguém remover de um banheiro um sticker que estava lá, muito de bobeira mas com o compromisso, talvez, de animar mijões e mijonas das mais diversas origens. É mais fácil a gente perdoar quem coloca ou quem tira? Perdoar é fácil? O que é o perdão? Gente que cola pedaços de papel ou plástico por aí não deve estar preocupada com o perdão de ninguém. É intrigante tentar achar motivos que fazem alguém colar um troço numa caixa de metal que fica bem no alto de um poste. Mijões e mijonas não devem se divertir com aquilo porque fica muito no alto.

A falta que pode fazer, veja só, não só um adesivo mas, também, o contato com o pessoal que te vende aquele café especial. Um pacote se esvaziando pode ser o gatilho para alguém pensar na relação que se forma, depois de alguns anos, entre duas pessoas, mesmo que os encontros se limitem a dar-o-dinheiro-pegar-o-pó. Às vezes, dá para subverter o protocolo. Como quando a entregadora, em pé num balcão de bar onde marcou o encontro com o cliente, fala sobre uma cerveja escura que está vendo na geladeira e que a faz lembrar-se de uma irmã mais velha. Um rolé que começa com uma promessa de pó de café pode render uma cerveja, uma descoberta, uma história de família. Sem esquecer de olhar a porcaria do Instagram, que ninguém é de ferro.

Um aviso que chega muito em cima da hora, no laço, e por isso — mais do que matar uma vontade — faz a gente querer ainda mais alguma coisa. Uma ampulheta em que a areia escorre tão rapidamente que o observador pode chegar a visualizar, na parte inferior, uma espécie de aspirador de pó. Não de pó de café. De pó rosado, que é a cor da areia que passa pela cabeça no escriba, no momento em que a frase é montada. Areia cor-de-rosa, ampulheta com duração de seis minutos. Meia dúzia de minutos. Meia dúzia de frustrações, de encontros que não se confirmam. Porque o tempo é curto. De quanto tempo a gente precisa para tomar um café? Quando você fala “Vamos tomar um café?”, está pensando em quanto tempo?

O moleque pede água. Não se bebe adesivo. Ainda. Do lado de dentro do balcão, o atendente do bar finge não perceber a mão que estava esticada, buscando um aperto, uma saudação. Ao menos, rolou a água. Uma sede chegou ao fim. Para bom amarelador, meio sorriso amarelo basta.  Para bom corredor, meio café basta. Para quem está atrasado, meia corrida não resolve. Para quem entende a mão e não recebe uma mão de volta, um copo d’água pode virar um balde de água fria. Em dias de chuva, a água fica ainda mais gelada. Em cada curva, um adesivo que a gente não esperava.

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Boteco Connection #12 — Santa dança

Pode ser que a chuva tenha contribuído para azeitar as engrenagens e, assim, acionado os flashes de memória de Godie Boy. Talvez ele precisasse lembrar de coisas boas, em vez de ficar pensando no amigo que havia partido semana passada por causa de uma treta depois de um jogo de futebol. A moça de azul e branco, do outro lado da rua, claro, também colaborou: mobilizou a atenção do cara, talvez construindo a base de histórias para, quem sabe, serem contadas daqui a duas décadas. Ela se movia como se fosse música. Ela era música. Vai entender. Mas o que aconteceu foi que… Num piscar de olhos, Godie Boy saiu da laranjante Praça São Salvador do apocalíptico 2023 e pegou uma passagem até a Santa Teresa de 28 anos atrás.. Estávamos indo em direção ao século passado, compadre. Que chuva era aquela!?

“Eu tinha 18 anos e era a primeira vez que ia a Santa Teresa. Pro Simplesmente, tá ligado?”, perguntou/desafiou, como se fosse um rapper. “Existia rapper, em 1995?”, brincou, antes de lembrar sorrindo de um Seu Jorge na calçada “esticando o copo pra pescar um gole de cerveja quando via uma garrafa vindo do balcão”.  Lembrou de Dulce, que segundo ele na época era dona do bar, e de quem depois tornou-se amigo. “Era uma noite daquelas em que a gente não queria ficar na calçada. Tinha saído da Tijuca, com os amigos, já estava todo mundo calibrado. Mas a gente queria cerveja. Era um balcão de madeira.”

O sorriso se alargou quando Godie Boy começou a explicar que sua relação com aquele bairro é muito estreita. Íntima. Intensa. Longa. E tudo por causa de Teresa, que ele conheceu justamente naquela noite. Olha só o nome dela. “Ela se chamava Teresa, cara. Tinha começado a tocar uma música do The Doors. E ela me olhou e perguntou: ‘Vamos dançar!?’ Sabe aquela ‘Riders on the storm’? Era essa…” Números entraram em cena para dar detalhes ao encontro, como que fazendo tudo ganhar precisão: “Eu tinha 18. Ela tinha 36. Tinha o dobro da minha idade, cara! Eu fui para Santa, dancei com Teresa, e comecei a frequentar o bairro. Conheci várias coisas por lá. A gente ficou. Eu todo animado, naquela primeira noite, achando que ia ter de tudo, mas ela falou que estava na casa dos pais, com a filha, e o que aconteceu foi que a gente só se beijou. muito, ali… Os amigos dela era ainda mais velhos. Eu era muito moleque.”  

O século passado parecia ter sido mesmo muito divertido para GD. Ele emendou contando que foi neste mesmo bar que reencontrou duas moças de Itu. Duas que havia conhecido num acampamento em Trindade. As meninas tinham confessado que queriam vir para o Rio estudar teatro e, anos depois, na boa e velha ST, eis que GD revê as duas… não como frequentadoras, mas, sim, como funcionárias do bar. Aí, as histórias ganharam o terreno da malandragem numa perspectiva menos edificante: “A gente pedia uma cerveja. Vinham duas e mais uma caipirinha. Elas deram muita moral pra gente. Dormia lá, quando o bar fechava, num sofá. Bons tempos.”

Alguém chega perto, como que atraído pela vibração da história do “garoto”. Godie Boy tinha se transformado num moleque, revisitando brincadeiras de décadas passadas. Mesmo quem pegava o bonde andando acaba se divertindo. Uma alma qualquer pegou o telefone e youtubeou para achar uma versão de “Riders on the storm”, o que deixou todo mundo impressionado com os ruídos de chuva que vinham da gravação. Aquela tarde era nossa. Geral garoteando. Engrenagens rodando que era uma beleza.

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Vinhozinho, vai? (#hiperlocal01)

Quinze minutos de evento: queijos e embutidos sumiam sem cerimônia do espaçoso tampo de vidro em que se enfileiravam, também, grandes taças para os vinhos e outras, menores, para quem precisasse de goles de água. O fenômeno da transformação de comida em vapor se dava mesmo antes da chegada das bebidas. Reúna iguarias numa mesa e elas vão sumir em pouco tempo, não importa o tipo de gente que esteja em volta. Não importa a década. Não importa quem está no Governo. Naquela tarde, nove em cada dez eram homens com camisa de mangas compridas trazendo aquele bonequinho em cima de um cavalo. Ralph Lauren, é assim que chamam. Nenhuma era do jacarezinho, também conhecida como Lacoste. Oito em cada dez eram vestimentas com botões de cima a baixo. Houve um tiozinho quem investiu no formato pra-dentro-da-calça. O convite avisava que seria uma tarde de apresentação de novos rótulos — Oscar Haussmann e Chateau St. Thomas — mas era na explicação da representante comercial que estava a promessa de crônica: uma degustação de vinhos alemães e libaneses.

Uma tarde de dualidades. Era comum nas coletivas de artistas que estavam lançando alguma coisa, nos anos 90 e 00: uma mistureba que reunia figurões dos grandes jornais e o pessoal dos veículos alternativos. Todo mundo comia das pastinhas que as assessoras de imprensa usavam para animar aqueles encontros. E a partir daí, do consumo de comidinhas, a divisão começava a ficar mais caricata. De um lado, marrentões que apontavam os “pequenos” como comilões. Do outro, “pequenos” que de fato às vezes agiam como mortos de fome. Essa dicotomia Alemanha-Líbano podia não ser uma viagem ao passado do jornalista que foi parar lá porque fazia, agora, também o papel de dono de um bar. Mas soava como diversão. Todo fim de mês, donos de bar precisam procurar diversão, para lidar com o movimento mais fraco.

Começaram com os alemães. E o primeiro mostrou-se doce demais. Estranho, dar a partida desse jeito. As especialistas deviam ter suas razões para apostar no OHO1 — Riesling Semi Sweet. A explicação não veio com qualquer aprofundamento, foi quase um “é doce porque é doce”. Na sequência, o OHO1 — Dry e depois o OHO1 — Reserve. Pareciam feitos/servidos só para amaciar, estes rieslings. A melhor coisa a se fazer era abandonar momentaneamente o pessoal dos distintivos de cavalinho para perguntar ao Google sobre aquela uva. E eis que a gente descobre que se trata da uva branca mais cultivada na Alemanha. A França é a segunda maior produtora dessa parada.

O aparecimento de um convidado vestindo bermuda cargo foi como um sinal. Vieram também um balde para descarte e novas garrafinhas de água. Descarte? É, se o cara não gosta muito do que está bebendo ou já provou o suficiente daquilo, manda o restante para o baldinho. Queijo e presunto, ninguém joga fora. Vinho, sim, as pessoas são capazes de dispensar. Não é para tudo que o ralph-laurenismo te prepara adequadamente.

A quarta tacinha daquela tarde era com o primeiro libanês: o chardonnay St. Thomas 2020. Um branco que provocou estranheza. Mas pareceu abrir também a porteira da diversão. Talvez os alemães tivessem feito bem o papel de amaciar o pessoal. Talvez, talvez. Como que poupando uma ida ao Google, a moça que conduzia o abastecimento das taças informou que há uma grande influência francesa na produção libanesa daquele tipo de bebida.

“Manga”, apostou uma convidada, falando de algo que ela tinha sentido ali no vinho. E no flow outras tantas palavras surgiram, como numa rodada de Adedanha. “Mel”, disse alguém, contando com a aprovação de bebedores do lado noroeste da mesa. O escriba que vos digita arriscou um “Tem algo defumado, aqui” e também contou com a aprovação do mesmo grupo. Ali, já dava para perceber que, em termos de vinho, os alemães são (ou tinham sido, naquela tarde) mais “fáceis” do que os libaneses. Isto é, os sabores das bebidas libanesas ali apresentadas eram indiscutivelmente mais complexas e animadoras do que as alemãs.

Da mesma origem, vieram um Pinot Noir 2017, um Les Gourmets Rouge 2018 e… Libanês vai, libanês vem, chegava a hora da última garrafa, aquela que foi apresentada como a grande estrela da tarde: Le Merlot A, de 2009. “Vinho de 1.500,00 Reais”, alguém disse, provocando olhos mais arregalados. “18 meses em barrica”, continuavam, entusiasmados. Até o fechamento deste texto, o preço não havia sido confirmado pelos anfitriões. Seja como for, o produto mereceu ser servido num decanter de cristal. Na taça, o líquido parecia mais oleoso do que os vindos anteriormente, criando desenhos. Impressionante.

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O sobrevivente

Nas imortais palavras de Wander Wildner, “Boa sorte, boa morte”. É assim que o sempre-Replicante, atual punk-brega, ícone-ídolo dos corações revoltados de outrora e agora porta-voz de suspirantes-crentes-no-amor terminava “Boa morte”, faixa da sensacional fitinha do grupo Sangue Sujo (da época em que WW era mais “só punk mesmo”). O cassete morreu, mas, por sorte, podemos usar o YouTube para comprovar a existência da máxima. Sorte? Morte? Palavras que, claro, não surgem à toa. Confissões chorosas que podem, sei lá, saltar duma mesa bem ao lado, são capazes de anunciar que o fim está próximo. E no fim das contas — como também diz a letra — “Um dia qualquer no fim das contas você vai morrer”.

Rebobinando ainda mais, e ainda mantendo a atenção ao que vaza da conversa na vizinhança, o escriba revive/constata o drama de Aloisio Dantas, ou Alolô, como zoavam os amigos antes de jogarem pra cima dele o terrível Já-Morreu. Ah, nada como uma reunião de amigos de colégio (suspiro) para conseguir inspiração. Como cresce um garoto, depois de ganhar um apelido assim? Naquela época, não chamavam isso de bullying. Era só sacanagem mesmo. Talvez por isso tenhamos nos transformado num país campeão na formação de psicólogos. O curso atualmente é dos mais procurados, como apontou uma edição da ainda — e surpreendentemente — viva “Folha de S. Paulo”.

Sermos campeões no número de dentistas não fez de nós, ao longo de décadas passadas, uma nação menos boca-suja. Vamos ver o que o pessoal da Psicologia vai conseguir, nas próximas eras. Se serão capazes de ajudar a gente a lidar melhor com a inevitabilidade do Fim. Ou, o que já pode ser um grande adianto, a aproveitar as pequenas mortes. Como no francês, sabe? Pequena morte, sacou? Sacou?

Vestir o paletó de madeira virou assunto banal. Há para isso a contribuição do jornalismo-lixo dos programas televisivos de depois do almoço. A gente diz “jornalismo-lixo” porque o jornalismo mais romântico não sobreviveu para ser/manter-se fã de Wander Wildner. Morreu faz tempo, o pobre coitado. A morte parece hoje tão líquida quanto as relações. Não vão achar absurdo, daqui a um tempo, escolher quem vai morrer através de um aplicativo. Se as pessoas escolhem seus pares passando dedos em telas de telefone, daí para usarem o mesmo método para apontarem quem irá desta para melhor é um pulo. Quer dizer, um clique. No século passado, o Schwarza — eita cara bom de matar gente na grande tela — protagonizou um filme em que um troço mais ou menos assim acontecia num show de TV. Qualquer semelhança com os programas de hoje em dia depois do almoço não é mera coincidência.

É claro que a Inteligêntsia sempre vai poder bater no peito bronzeado e eventualmente bem agasalhado para dizer que a Morte faz parte do jogo. Ah, a Inteligêntsia e seu desprendimento. Ah, a Inteligêntsia e suas referências. Vão dar um jeito de desenterrar “O sétimo selo”. Se bem que vão tirar isso do grande caixão da História mas, apesar de — OK — ser uma grande fita, quem é que vai ter paciência de assistir ao que fez o Bergman, hoje em dia, para depois discutir a respeito? Isso morreu! Nem os psicanalistas fazem mais isso.

Ninguém vai ficar pra semente, como garante a tiazinha do bar, enquanto faz pular as chapinhas dos litrões que os eternos estudantes pediram para a nova rodada de ressurreições. Depois de amanhã, ela diz, com cara séria, “é aniversário de morte da minha irmã”. Um momento de silêncio. E alguém levanta um brinde em homenagem a dona Marli. Beber para jogar Luz no caminho de alguém. Taí. Uma hora alguém ia achar uma coisa boa pra fazer com essa história toda de Morte. Saúde!

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Cuidados

Passou pelo Largo do Machado sabendo bem do horário porque se programou para curtir os sons do meio-dia, principalmente/especificamente os sinos daquela igreja onde dois anos antes — na missa de sétimo dia de falecimento da mãe — tinha testemunhado um sacerdote assustadoramente vacilão fazer “piada”  dizendo que catequistas seriam fuziladas. Teve dificuldade para driblar as poças d’água, a caminho da feira, já que ia no automático desatento às provocações da chuva; querendo parar de pensar que já era tarde para conseguir bons camarões. Tudo contribuiu para que Pê chegasse atrasado ao encontro com Gê.

Os dois tinham marcado um papo que Gê chamou de “sessão”. Aconteceu, isso, após o mais velho ter acreditado perceber mudanças que considerou significativas no comportamento de Pê. Já eram conhecidos havia o quê, uns bons dez anos? Por aí. Talvez 12. A amizade começara na época do nascimento da filha de Pê, que por meses tinha se transformado numa espécie de atração na hora do almoço no restaurante que os dois frequentavam. Era mesmo uma graça, a menina. Gê ia lá para comer. Pê, para beber: achava que o fato de o lugar ser conhecido como restaurante e não como bar garantia uma dichavada que não fazia mal a ninguém.

“E aí, compadre?” “Fala!” Mãos apertadas. Abraço dado. Sorrisos leves, largos e demorados. Respirações profundas. Depois que as cabeleiras balançaram sob o ritmo de gargalhadas-bênção, houve um bom minuto de silêncio. “O que tá rolando, cara?” Quem fez a pergunta foi o mais novo, ao contrário do que parecia programado para o encontro. Gê encolheu-se, para responder. Comentou sobre o trabalho do qual não estava dando conta. Das despesas que aumentaram sem que ele conseguisse entender por quê. Revelou um flerte com uma droga nova. Confessou ter ficado viciado em xadrez online. Deu um jeito de reclamar do professor de Matemática que teve aos 14 anos e levantou-se para ir ao banheiro.

Pê, neste intervalo, quis revisitar as respostas do amigo. Mas sentiu que se insistisse nisso perderia de vista a lista que estava elaborando. A relação do que guardara para soltar naquele encontro com o camarada; era essa, a lista. Viu pingos — muita gente, mas separadamente e por isso “pingos” — de uma enxurrada em direção às academias e sentiu que, se fixasse a atenção naquelas personagens, também perderia sua programação para a conversa. Sabia que se desconcentrava fácil, fácil, e que talvez pudesse ser este um dos pontos a comentar com o parça. Pode ser que o xixi do outro não tenha demorado o suficiente para que Pê se organizasse. Seja como for, o que aconteceu foi que na volta tudo que Gê ouviu foi “Cara, está tudo na mesma. Não tem muita coisa acontecendo.”

Mais um tempo de silêncio. Então, um intervalo maior. Durou do instante em que o garoto dos amendoins derramou, sobre a mesa, em cima de um papel verde, uma amostra do que estava vendendo e o momento em que este mesmo sujeito voltou para recolher a iguaria. As cabeças balançaram de novo mas aí já não havia nenhuma gargalhada no ar, era só para dizer não ao Vê. Os copos se esvaziaram, vieram mais duas garrafas. Iam experimentar uma bebida diferente.

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@monteiro4852 #121

O amigo do amigo do Diego foi demitido, ontem. E a amiga da amiga não apareceu para a cervejada marcada para domingo.

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O herói da estação

Um estêncil “incômodo” com o qual a gente precisou se acostumar a conviver é o “Não desvie o olhar”. Um desagrado bom/necessário, nos dias de hoje, parecendo pretender convidar ao pensamento crítico. De um modo geral, fica(va) em postes, na parte baixa, rente à rua. Como que numa alusão à população que rasteja também ali naquela altura. Eles, os pedintes. Pessoas em “situação de rua”, como dizem. Quando A. parou na esquina, naquela sexta, estava perto de um daqueles sinais. Pensava na Primavera, sobre a qual tinha ouvido muita gente falar, naquelas últimas horas. Era o primeiro dia da estação. Estava avexado, mesmo antes de encarar a sentença pintada em azul. Não queria ler. Queria ser lido. Chegou a imaginar que, talvez por isso, para se mostrar, estivesse parado, ali naquele cruzamento. Mas não teve jeito: foi incapaz de fingir que não viu.

Tinha aprendido que ficar parado numa esquina representa risco. O ensinamento viera de um policial, anos antes. O sujeito disparou num bar algo do tipo “O cara fardado não pode ficar de bobeira, pra não virar alvo”, e, mesmo sem farda, fez todo mundo ali entender que estava diante de um prisioneiro de uma daquelas roupas. Quase todo mundo fingiu que não ouviu. Um flash silencioso e nada mais, foi o que aconteceu. A bebida é mesmo um ótimo entretenimento, às vezes. Mas o bagulho ainda ecoava nas entranhas de A., anos depois. “Porra, cadê as flores?”, reclamava, ali, parado, sem conseguir decidir se estava mais amolodado com as lembranças ou com a frase na grande estaca de concreto. Fingir, isto é, representar não era assim tão fácil.

Parecia ter chegado a hora de tornar mesmo aquele momento um troço mais cinematográfico. Como? Acendendo um cigarro. “Mesmo sem Zippo, funcionou”, concluiu, rindo sozinho, quando uma mulher parou e pediu informação sobre uma rua. Sentiu-se, aí, sim, um ator num filme. Era como se naquele momento a Primavera tivesse finalmente começado para ele. Respirou como um herói: preocupado com o pessoal jogado nas calçadas, conhecedor dos nome das ruas da vizinhança, com a camisa bem passada. Ah, sim: calculou um movimento para ajeitar a roupa. “Herói tem que ser um pouco vaidoso”, desculpou-se, num cálculo-pensamento na velocidade da luz. Ouviu um bem-te-vi. E, ainda com aquela aceleração impressionante, rimou com quero-te-ouvir. “Ela quer me ouvir, é isso que ela quer…”, falou, deixando confusa a interlocutora que, com olhos um pouco arregalados, apressou o passo e saiu daquela cena.

Desconcertado, A. olhou em volta. Não sabia bem o que estava procurando. Era como se o silêncio o isolasse. Pensava em por que os carros tinham parado de fazer barulho. Tentava entender como as crianças jogando bola do outro lado da rua conseguiam fazer aquilo em silêncio absoluto. Teve medo de perder os super-poderes. Olhava para todos os cantos, como que num daqueles passatempos de antigamente, o Jogo dos Sete Erros. Foi quando viu uma mulher e duas crianças, protegidas por uma marquise de prédio. “Porra”, soltou alto, colocando a mão no bolso enquanto ainda não estava completamente certo do que dar a eles como almoço. Não queria perguntar. Ia fazer surpresa. O bem-te-vi de novo cantou, naquele instante, e meio que confirmou que como herói era aquilo mesmo que A. deveria fazer.

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Boteco Connection #7 — TX

“TX” foi como uma galera se acostumou a fazer referência ao “táxi”. Ah, a era das abreviações… “Valeu” virou “vlw”; “obrigado” passou a ser “obg”. E por aí vai. Mas uma citação que se espreme em duas letras pode ser considerada carinhosa/relevante? Sim, sim. Duas letras são capazes de exprimir apreço, medo, ofensa. “Cu” é um bom exemplo disso, para falar de um componente muito presente em nossos cotidianos. E voltando aos encurtamentos: quem nunca teve que encarar um “vtnc” num debate sobre política no Zap? Não soa mais ameno do que quando todas as letras são usadas? Mas fiquemos no universo dos taxistas, estes quase-pescadores/historiadores, às vezes safados [como qualquer dono(a) de cu pode ser], às vezes prestativos, gente conhecedora das leis, de Economia. Um pessoal que parece saber a Verdade. Isso tudo pra afirmar: ponto de táxi perto de um boteco pode ser garantia de animação fora da curva.

Fora da curva, não fora do taxímetro. Porque ninguém acorda cedo para levar desvantagem nas vias do Rio de Janeiro. Em grupo, eles se sentem seguros. Normal. Mas mais do que isso: parecem também capazes de oferecer segurança/proteção. Não numa perspectiva miliciana. Na camaradagem, em nome de uma certa “família”. Em português mesmo: família. Taxista, graças aos céus, é um cara que parece ter conseguido fugir dos anglicismos. Não existe meeting de taxistas. Existe churrasco mesmo. E mesmo se a carne estiver bonita, eles vão deixar pra lá a fome e vão conduzir o bêbado classe-mediano que saiu do boteco até o endereço informado. Porque agora tem a concorrência do Uber, né, então, minha gente, é tempo de ser mais prestativo do que nunca.

Os apelidos compõem um ingrediente espetacular. Filé. Fofão. Conde. Tim Maia. China. Kiko. Chaves. Medonho. Lobinho. Quando estão juntos, num dia fraco de corridas, ou numa noite com poucos bêbados solitários precisando chegar em casa logo para vomitar e mergulhar no sofá, o clima na calçada é de Segundo Grau. Segundo Grau no sentido de período escolar, o que hoje é conhecido como Ensino Médio. Ver um bando de “adultos”(#sqn) se zoando, a ponto de dois se juntarem para fazer uma cama-de-gato que vai derrubar um terceiro… Não tem preço. Esta categoria, a de taxista, parece às vezes ser um indicativo do que é a sociedade. Há as pessoas mais “sérias”,  há os com os carros mais bonitos, há os que confrontam uma torcida inteira e após uma garrafada no quengo choram como bebês, há os que mentem descaradamente, e ainda há os que não querem te levar a Santa Teresa usando como justificativa aquele caô de que “os trilhos do bonde podem rasgar os pneus do carro”. E — viva! — tem os que servem de “inspiração”, quando um escriba quer manter a regularidade e parece não ter sobre o que falar.

Taxistas parecem ser uma viagem ao passado. A um mundo pré-internet. Você não pode entrar no carro do Fofão — ainda mais se for o Fofão — e mandar uma mensagem com letras maiúsculas exigindo que ele desligue o rádio. Tem que investir na cordialidade e pedir com jeito. Esse pessoal em carros amarelos com listas azuis, aqui no Rio é assim, esse pessoal passa pelo mundo e vê o mundo passar. Às vezes, em alta velocidade. Nem sempre respeitam sinais. Nem sempre fazem os melhores caminhos. Quase nunca têm troco. Às vees, não são assim tão simpáticos. Nem sempre torcem para o time certo. Nem sempre votam no melhor candidato. Mas a vida é assim. É bom, quando estão ali; depois que a gente sai do boteco.