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Domingão

Quando você tem cadernos, dá um jeito de esvaziá-los. No caso de possuir “apenas” folhas, pode por exemplo espalhar isso em postes. É muito mais “pessoal” do que aderir às campanhas pela sobrevivência dos livros, deixando exemplares disso ou daquilo perdidos por aí num certo dia do ano. Quando tem gente atrás de coisas para serem lidas, não há o que fazer, é preciso dar alguma coisa a elas. Se estiver lidando com gente esquentadinha (ou com potencial de), vale também tomar cuidado porque chamar uma coisa de “coisa” pode dar problema. Como identificar o tipo em questão? Aí, são outros quinhentos.

Domingo é um bom dia para pedir desculpas. Se houver sol, são ainda melhores as chances de aceitação. Aceitação da vida, no caso, não só do discurso implorando perdão. Porque implorar só à Deusa, né? É assim que é, é assim que está. Não vai adiantar desenhar porque vai ter gente que não entende. Aliás, tem coisa que é para desenhar e não para escrever. Coisa, de novo, né? Isso ainda vai dar problema.

A poesia, coitada, já esteve com os dias contados. Mas toda essa limitação internética, esse varejão de letrinhas amontoadas, com o qual todos nós colaboramos, quebrou o galho dos versos. A música também parece ter tido alguma sorte. Está aí em tudo quanto é publicação, isto é, post. Quando um idioma vindo do outro lado do globo dominar as coisas, qual será o resultado? É de “desespero” que pode(re)mos chamar? É tudo circo. Aliás, o Circo também não morreu. Foi se adequando até ganhar dimensões planetárias. Essa cara de palhaço estampada aí não surgiu à toa.

Você sabe que está diante de um compromisso importante quando marca para as 18h e, às 16h, já sente que está no atraso. Pode dar problema na máquina que vende cartões de embarque no metrô, pode não ter motorista de aplicativo querendo aceitar a corrida, pode quase tudo e vai ficar melhor ainda quando isso tudo te ajudar a rir da vida. Nem sempre a cerveja depois do jogo vai garantir que certas verdades sejam ditas, que o sorriso fique invariavelmente amarelo diante do amigo fura-olho. Quando o caô é pregação, você se entrega?

Faltar a uma festa de aniversário e não pedir perdão. Aceitar sorrindo um presente que no fundo é insosso. Perder de propósito um jogo de xadrez para que a criança do outro lado tenha chance de vez em quando de aprender co’a vitória e não co’a derrota. Absolver o vizinho que tira do lugar o tênis que depois da pandemia tu insistes em deixar no corredor. Suportar a morrinha que vem dos cachorros do prédio ao lado. Capinar porque ali há capim; assim como há vida, volta e fim. A estrada é feita de um dia atrás do outro. De desculpas, rezas, e, às vezes, crônicas assim-assim.

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Salve, salve, Chico Chico

Na Grande Bolha Classe-mediana, Subdivisão Metida a Besta a.k.a. Algo Intelectualizada com Pretensões de Descolamento, Microbolha dos que se adiantam para fazer valer a expressão “Sextou!”, só se falava no show do Chico Chico, no Clube Manouche. Em Laranjeiras, nos arredores da São Salvador, um dia antes da apresentação do filho da saudosa Cássia Eller, alguém comentava: “Chicão? Era da sala do meu filho, no CEAT… Fio desencapado, esse moleque. Mas muito talentoso!” Na Tijuca, na São Francisco Xavier, também foi possível pescar comentários a respeito de Francisco Eller: “O show é muito bom. Já vi no Smoking, na Lapa. Agora, acho que só em casas maiores. Tá crescendo. Ninguém segura.” Na noite de sexta (07/07), data em que se celebra(va) entre umbandistas e simpatizantes a força do “malandro” Zé Pilintra, Chico Chico fez bonito. O garoto sabe jogar. Tem que respeitar.

Pessoas de 40 e poucos anos tiraram do armário suas jaquetas de couro e foram até o Jardim Botânico para ver o espetáculo. O ambiente lembrava um pouco o extinto Ballroom. Parecia uma versão reduzida daquele antigo pico do Humaitá, incluindo gente chata às vezes falando alto demais perto do bar. Não chegaram a atrapalhar. Foi divertido ver levarem um susto quando o fio desencapou no entorno, quer dizer, quando Chico Chico desceu do palco e um corredor se abriu para que ele desse uma corridinha, microfone em punho, do palco até os arredores dali de onde se comprava cerveja e outros drinques. Aliás, quantos drinques coloridos, gente; parecia até festa de casamento. Mas o pessoal das jaquetas de couro parecia gostar. Espumante, não, não se via. A cerveja estava bem gelada, pelo menos.

Mas não era só quarentão, na plateia.  Entre os videomakers havia também gente mais nova. E eram estes os que pareciam estar mais afinados com o artista. “Ribanceira” e “O tempo nunca mais firmou” podiam dar a entender que a noite seria de introspecção. Mas “Amarelo amargo” apontava outro caminho. Outros caminhos. Um dos pontos altos da noite. Dava para lembrar um pouco dos primeiros shows do Cordel do Fogo Encantado, no Rival. Não só pela performance do rapaz, mas, também pela poesia — é, poesia — que ele oferecia. Havia firmeza, malandragem e poesia, naquilo que ele entregava ao pessoal que levantava os celulares para registrar o que estava acontecendo.

O momento Chico César  (“Béradêro”) foi outro de arrepiar. Aliás, o garoto soube escolher bem o que levar pros jovens e tiozinhos do Manouche. Tirou onda de grande intérprete com “Norte”, de Carlos Posada. Foi tocante ouvi-lo cantar que “as coisas acontecem / de uma hora pra outra / mesmo que demorem / a vida inteira para acontecer”. Nem precisava daquela coisa de dividir a plateia em duas, durante esta música, para que cada metade repetisse uma parte do refrão. Se houve um vacilo do malandrinho, foi aí.

Chico Chico soube escolher bem as companhias. Caio Prado, uma das participações especiais do show, com sua “Cantiga de Erê” (parceria com Jean Kuperman), estava no palco para um outro grande momento da noite: ajudou o amigo na brincadeira de alternar climas.  Todo mundo gostou. Salve Zé Pilintra. Viva a malandragem. Salve, Chico Chico.

(Foto de Catharina Rocha)

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Segue a, isto é, O Paixão

André parece ter trocado mesmo o Nervoso por Paixão. Pode ser que tenha trocado também o gosto por roupas porque, naquele início de noite, numa sexta que prometia frio mas entregou certo calor, o figurino diferente provocava certa estranheza. Era o lançamento do single “Litoral”, na estação General Osório do metrô, Zona Sul do Rio, e o artista anunciou o início de uma série de apresentações pela cidade. “Litoral” é uma faixa solta, só mesmo um single, mas o artista está na iminência de colocar pra fora um álbum que já há três longos anos lhe dá trabalho. Em clima de celebração, com uma guitarra e um microfone, André Paixão contou com um público formado por passantes e por ilustres amigos, como os músicos Maurício Garcia e Pedro Serra, e a jornalista Catharina Rocha.

Era mesmo verdadeira, a história de turnê. Enquanto esta crônica ganhava vida, dias depois do lançamento, chegava nova mensagem do artista para anunciar uma segunda apresentação nos subterrâneos do Rio. Dia 30, às 19h, na Estação Carioca, Acesso B (Avenida Chile).

Em Ipanema, o show começou com “Só verão”, seguindo o setlist (que foi parar na coleção de dona Cath Rocha). Começou bem. Na verdade, a descontração parecia já estar garantida com o “Segue o líder!” que Paixão, botafoguense de carteirinha e tatuagem, soltou mesmo antes dos primeiros acordes. Vieram “Desencontro marcado” e “Maduro”. A primeira, uma inédita feita em parceria com Bernardo Vilhena. Mas foi em “Um sonho de transatlântico” que mais sorrisos foram vistos. Dentes de todos os tipos apareceram/brilharam, entre as cabeças que emergiam das entranhas da General Osório. Se teve um trem que chegou em boa hora, foi aquele lá.

O velho hit “O bom veneno” deu as caras, anunciado por uma introdução noise-barulhenta. Quase como que um rastro mais nervoso-no-wave em meio a toda aquela paixão. Se houvesse também alguma pequena multidão desembarcando, ali,  naquele instante, teria sido ótimo. Mas tem trem que é daquele jeito: não vem na hora certa. “O bom veneno deve ser assim/ E eu te peço / Sirva uma dose desses pra mim”, diz um trechinho. De um passado menos distante, ressurgiu “Já desmanchei minha relação”, que também caiu muito bem. “Curtindo a solidão… Assoviando essa canção”, lembra? “E é por essas e outras que eu não tenho mais saco pra te servir, meu bem…”, lembra? Os tempos são outros. É tudo líquido, dizem. Mas “Já desmanchei minha relação” tem um potencial radiofônico para todas as épocas.

“Saturation” era a última da lista. Mas houve tempo para mais pérolas. A noite terminou com um repeteco de “Maduro”, que — esta, sim — também fará parte do próximo álbum. “A vida é assim/ Veja as folhas no jardim (…) Todos são bem parecidos/ Quando sentem que o pior está por vir…”

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Boteco Connection #12 — Santa dança

Pode ser que a chuva tenha contribuído para azeitar as engrenagens e, assim, acionado os flashes de memória de Godie Boy. Talvez ele precisasse lembrar de coisas boas, em vez de ficar pensando no amigo que havia partido semana passada por causa de uma treta depois de um jogo de futebol. A moça de azul e branco, do outro lado da rua, claro, também colaborou: mobilizou a atenção do cara, talvez construindo a base de histórias para, quem sabe, serem contadas daqui a duas décadas. Ela se movia como se fosse música. Ela era música. Vai entender. Mas o que aconteceu foi que… Num piscar de olhos, Godie Boy saiu da laranjante Praça São Salvador do apocalíptico 2023 e pegou uma passagem até a Santa Teresa de 28 anos atrás.. Estávamos indo em direção ao século passado, compadre. Que chuva era aquela!?

“Eu tinha 18 anos e era a primeira vez que ia a Santa Teresa. Pro Simplesmente, tá ligado?”, perguntou/desafiou, como se fosse um rapper. “Existia rapper, em 1995?”, brincou, antes de lembrar sorrindo de um Seu Jorge na calçada “esticando o copo pra pescar um gole de cerveja quando via uma garrafa vindo do balcão”.  Lembrou de Dulce, que segundo ele na época era dona do bar, e de quem depois tornou-se amigo. “Era uma noite daquelas em que a gente não queria ficar na calçada. Tinha saído da Tijuca, com os amigos, já estava todo mundo calibrado. Mas a gente queria cerveja. Era um balcão de madeira.”

O sorriso se alargou quando Godie Boy começou a explicar que sua relação com aquele bairro é muito estreita. Íntima. Intensa. Longa. E tudo por causa de Teresa, que ele conheceu justamente naquela noite. Olha só o nome dela. “Ela se chamava Teresa, cara. Tinha começado a tocar uma música do The Doors. E ela me olhou e perguntou: ‘Vamos dançar!?’ Sabe aquela ‘Riders on the storm’? Era essa…” Números entraram em cena para dar detalhes ao encontro, como que fazendo tudo ganhar precisão: “Eu tinha 18. Ela tinha 36. Tinha o dobro da minha idade, cara! Eu fui para Santa, dancei com Teresa, e comecei a frequentar o bairro. Conheci várias coisas por lá. A gente ficou. Eu todo animado, naquela primeira noite, achando que ia ter de tudo, mas ela falou que estava na casa dos pais, com a filha, e o que aconteceu foi que a gente só se beijou. muito, ali… Os amigos dela era ainda mais velhos. Eu era muito moleque.”  

O século passado parecia ter sido mesmo muito divertido para GD. Ele emendou contando que foi neste mesmo bar que reencontrou duas moças de Itu. Duas que havia conhecido num acampamento em Trindade. As meninas tinham confessado que queriam vir para o Rio estudar teatro e, anos depois, na boa e velha ST, eis que GD revê as duas… não como frequentadoras, mas, sim, como funcionárias do bar. Aí, as histórias ganharam o terreno da malandragem numa perspectiva menos edificante: “A gente pedia uma cerveja. Vinham duas e mais uma caipirinha. Elas deram muita moral pra gente. Dormia lá, quando o bar fechava, num sofá. Bons tempos.”

Alguém chega perto, como que atraído pela vibração da história do “garoto”. Godie Boy tinha se transformado num moleque, revisitando brincadeiras de décadas passadas. Mesmo quem pegava o bonde andando acaba se divertindo. Uma alma qualquer pegou o telefone e youtubeou para achar uma versão de “Riders on the storm”, o que deixou todo mundo impressionado com os ruídos de chuva que vinham da gravação. Aquela tarde era nossa. Geral garoteando. Engrenagens rodando que era uma beleza.

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Boteco Connection #9 — Fordismo

O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo.  O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.

Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…

Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.

Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.

Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.

“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”

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X, quadrado, triângulo, ondinhas, raios

Era alto e gordo, o Comandante. Carregava esse apelido mas era engenheiro, não milico. Do time dos escrotos, sem dúvida, tratado como “doutor” pelos homens que trabalhavam com ele. Tinha sido “presenteado” co’a chance de ser padrinho do Tito, filho do seu empregado mais antigo. “Presenteado” era como dizia a mãe dele, que enxergava naquilo uma chance de aprendizado para o filho. Com o vocabulário fofo dela e um considerável apanhado de orações, rogava por um cabra mais gente fina. Ao longo de 20 anos, o gesto mais carinhoso dele na direção de Tito tinha sido deixar para o garoto o troco que ficou de 300 gramas de salaminho que mandou comprar na padaria do outro lado da avenida. Foi também uma das poucas vezes em que a “plateia” que sempre o cercava deixou de seguir a regra de rir das “graças” que pintavam: naquela ocasião, apostou que o garoto poderia não voltar da missão porque atravessar a avenida era coisa perigosa para uma criança daquela idade.

Aos sábados, aquele escroto vestia uma fantasia de discotecário. Ou quase. Ficava numa parte da sala da casa, onde acumulava discos antigos, a maioria de rock progressivo, e se enlameava naquele repertório. Ninguém o incomodava. Porque não ousariam fazer isso, de um modo geral, e também porque a seleção musical era mesmo bem chata e repetitiva. No Dia do Juízo Final dos Discotecários, se for julgado também nesta categoria, terá garantido um dos lugares na lista de Piores de Todos os Tempos. Voltava sempre às mesmas músicas, aos sábados, entre 14h e 17h. Pode-se dizer que tinha um set bem amarradinho. Gostava de se sentar numa poltrona que ficava perto da janela, e, durante aqueles 18 intermináveis minutos de duração média de cada faixa, fazia de conta que estava pensando. Tinha a mania de vestir-se de preto, nestas ocasiões. O que fez com que uma amiga da mãe — porque ele morava com a mãe — achasse que se tratava de uma assombração. Aconteceu porque ele estava agachado no canto, perto da prateleira onde ficavam os LPs, e ali havia pouca iluminação. Uma pessoa desavisada, embalada por aquela música danada de ruim, poderia ter a impressão de que se tratava de um ser de outro mundo, em vez de um vacilão daqui da Terra mesmo.

Os discos ficavam organizados numa prateleirinha e também num armário. Na prateleirinha, os compactos. No armário, os grandões: de 10 e 12 polegadas. Todos os formatos ficavam abrigados em plásticos novos, que protegiam as capas em que invariavelmente o Comandante escrevia seu nome com esferográfica azul. Era neste detalhe que ele entregava que além de mau DJ era também um colecionador porcalhão. Arrumava os bolachões numa ordem que não era alfabética, mas, sim, de preferência. Da esquerda para a direita, de cima para baixo. O disco que mais ouvia era o primeiro da prateleira de cima. Se algum louco fosse surrupiar uma bolacha dali e pegasse a primeira de cima, estaria levando o disco mais ouvido pelo pior DJ do mundo. Entrar na casa para subtrair dali qualquer coisa seria tarefa não muito simples mas, sim, possível para alguém que conhecesse a rotina de (falta de segurança) daquela condomínio de casas.

O mané quase teve um troço quando pegou o preferidão dos sábados e, ao tirar da capa, deu de cara com uma bolacha marcada por um X que deve ter sido “esculpido” com um bom estilete, canivete ou faca. Chamava a atenção a simetria com que os dois lados do LP tinham sido marcados. Parecia casar direitinho, um X com o outro do lado oposto. O autor da obra deve ter ficado orgulhoso. Mas a reação do Comandante, surpreendentemente, não passou dos olhos arregalados. Manteve o que pode-se chamar de “calma”,  na sequência. Decidiu pegar o segundo disco da fileira e, neste, encontrou riscada de cada lado a figura de um quadrado. Sentou-se na cadeira e lembrou do Tito, que segundo o pai, havia viajado para o Nordeste. “De Niterói para o Nordeste é um pulo grande”, havia pensado, quando ouviu do empregado a informação. Ainda sentado, experimentando aquela sensação completamente nova, não sabia que ainda encontraria nos três discos seguintes figuras geométricas diferentes.

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Flerte

Começou com um “Te vi ontem de longe”. A vontade do outro lado era de responder de pronto usando “Ah, se de longe tá bom é melhor ficar assim mesmo…” Mas — angústia-vai-angústia-vem — pintou um “Quer me ver hoje?” e foi tipo no instinto o disparo de um certo “Só se for bem de perto”. A maneira como certas questões se apresentam e se resolvem/dissolvem, é um território em que se pode ainda enxergar originalidade. Sim, dá pra falar em “originalidade”, aí, nesse terreno. Assim como se pode afirmar que é mais fácil falar sobre como elas, as questões, se apresentam, do que sobre as questões-em-si. Este não é um texto para formar samurais. Questões-em-si, na maioria dos casos, seriam boas se ficassem longe. Aplausos para a originalidade, que consegue às vezes entortar as coisas.

Singularidade não anda sozinha. Quando está de mãos dadas co’a sutileza, constrói uma pradaria de beleza ímpar. Uma amplitude danada de bonita, mesmo vista numa telinha de celular. Que é onde todo mundo vê o troço todo, hoje em dia. Né? Quando uma companhia (dona Sutileza, no caso) for capaz de garantir a existência de piadas perigosas, ela mais do que deve ser vivida: deve, isso, sim, ser celebrada. É quase um flerte com a autodeterminação, sem correr o risco de enganar o cara dizendo que crescerá nele um samurai. É do que prescinde o sujeito que vende bilhetes de loteria e pede um refrigerante e uma empada a quem estiver sentado no bar. Bebe o que tem. Come o que tem. Nossa Senhora das Empadinhas nem sempre faz o milagre pelo qual reza o fiel.

Ainda tem gente que vende bilhetes de loteria. Perguntam o ano em que você nasceu e se houver ali uma milhar com aquele número… prepare-se para ser firme no “Não, não quero”. Mas… Do tamanho da fome deveria ser também a retumbância do agradecimento. Como um prêmio na Federal, com bilhete inteiro. Não é porque Nossa Senhora das Empadinhas dessa vez garantiu o frango, no lugar do camarão, que não merece uma… uma missa. Ela, a santa, estava longe ou mostrou-se próxima, quando matou a fome e a sede do mané?

O que acontece é que a gente, a gente que não é samurai e jamais vai ensinar alguém a segurar uma espada, a gente se confunde com os sinais que aparecem. E com as piadas que youtubemente falando se mostram necessárias para uma vida plena de realizações, quer dizer, de seguidores. Aconteceu outro dia com um cara que se viu diante de uma banda que misturava alemão e japonês. Idiomas. Misturava os idiomas, não cidadãos.

Uma banda pode mesmo te apresentar mais problemas do que diversão? Vai saber. Tinha o caso daquela chilena que ficava com o pé atrás com as músicas do Nirvana, porque achava as letras pesadas. Não queria cantar aquelas coisas. Não queria aquelas influências. Não queria. Não queria ficar perto daquilo. E nem mesmo longe sentia-se segura.

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Agenda

Olha o Zé aí.

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Zero-vinte-e-um-nove-nove-um

Sofria com aquela bobagem de esperar alguma coisa dar errado, sabe? Ela era assim. Falou sobre isso com o cara. E comentou que naquele dia estava experimentando um prazerzão. Viu os olhos dele ficarem diferentes e continuou: “Você concordou com o lance que sugeri e aí… É que eu sou meio louca, entende? Fica tudo pior, na vida de uma louca.” Teve certeza de que o parceiro não havia sacado nada. Pegou dali e insistiu: “Quando a gente está feliz, ou pelo menos acha que está, o que dá quase no mesmo, a mana que é meio louca acha que vai acumulando pontos que lá na frente vão dar numa grande M.” Tinha acabado de ter a sensação, ela, de que aquilo tudo era bobabem e, melhor, de que estava esquema-tudo-tranquilo. Isso porque havia lido a mensagem do sujeito em que ele dizia “Ok, vamos viajar, neste fim de semana”, e manteve os batimentos numa levada razoável, sem precisar do respira-calma-concentra-respira-calma. Mais: ficou serena e feliz. Usou até a palavra “Feliz”. Fez uma pausa e se comentou: “É estranho falar ‘mana’? Mulher pode falar ‘mina’, né?”

Tinha pensado que aquelas dores que andava sentindo representavam uma chance de alcançar aquilo que a humanidade como um todo não tinha conseguido, mesmo com a pandemia: melhorar. Chamava de “pandemia própria”, a sentença do médico, que indicava a necessidade de um “pequeno procedimento cirúrgico”. Sofria com isso tudo e se escorava na vontade de brincar de ser artista. Anotou uma frase — “O sonho da pandemia própria” — e prometeu transformar aquilo num cartaz, assim que estivesse recuperada. Rapidinho, deixou escapulir: “Não, não é pra gastar mais dinheiro, porra!” Também em relação ao tratamento tinha medo, mas achava que havia mesmo uma chance de vencer aquilo. E fez mais uma promessa a si mesma: de escrever aquela máxima nos banheiros femininos dos botecos que tivesse a sorte de frequentar, num futuro próximo. Tinha aprendido com o namorado a se divertir com canetões.

Pixies, Martinho da Vila, Blur, Gal, Beatles, Novos Baianos, Nação Zumbi, Cake, Céu, Breeders, Miles Davis. Ouviu coisa pra caramba, na véspera do feriadão. Achava que com música construía um clima, tornava uma cena mais palpável, aliementava uma esperança, passava o tempo, esquecia a culpa, resistia ao respira-calma-concentra-respira-calma, aproveitava mais o respira-calma-concentra-respira-calma, preservava a libido, bloqueava sugadores anônimos e outrem nem tão anônimos assim, controlava as despesas com chocolate e castanhas e vinhos e queijo, aceitava os banhos quentes nos quais quase invariavelmente achava demorar mais do que devia. E o que parecia melhor que tudo: resistia à ideia de ter um gato. Tinha conversado com o namorado sobre Led Zeppelin e ficou incomoda com a zoação do cara, que classificou os tiozinhos como metal farofa. Quase ficou puta. Mas sorriu quando ele pediu perdão, explicou que ela era “muito nova pra gostar de Zeppelin” e disse que topava ouvir o álbum favorito dela. Já estava clareando, quando combinaram isso, antes de uma nova agarração e da chegada do sono. Pensou em arrumar confusão dizendo que Dead Kennedys também é som de velho. Antes de dormir, lembrou do médico e do tratamento. Pensou na vida curta. Queria ter coragem para levantar e tomar um banho quente e demorado. Queria dormir só quando o sol já estivesse alto. Mas ficou ali com o cara. “Ainda bem que ele não ronca.”

“Não precisa de acompanhante, não. Você vai se internar na segunda logo cedo e no dia seguinte já deve estar liberada.” Foram as palavras do médico. Ela não entendia como tinham conseguido marcar tudo tão rápido. E por que não precisava de acompanhante? Será que o boy insistiria na ideia de acompanhá-la? Será que não haveria chance de novos banhos quentes, num futuro próximo? Queria ter a chance de aproveitar a água sem culpa. Já não acreditava na polarização na política, evitava hambúrgueres na loja do palhaço, às vezes abusava do vinho, queria ter mais tempo, precisava de mais tempo, não era justo que tudo terminasse ali daquele jeito, sem que tivesse ouvido sequer um álbum do Led Zeppelin com o maluquinho. “Caralho, tô chamando o cara de namorado. A gente tem que tomar um banho quente juntos. A gente já morre, todo dia. Mas é pior quando a gente se mata, todo dia…” Respira-calma-concentra-respira-calma.

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Quem cringe?

Explicar a moda pode ser mais difícil do que entender a estupidez. Tendência é coisa que um dia, quem sabe, vai parar de ser discutida. Pode nem estar longe, isso, porque continua perigoso ficar em mesa de bar, falando besteira e tentando entender a vida. Daqui a pouco, todo mundo desiste disso, dessa história de “entender”. Seja como for, “cringe” segue sendo a coisa que todos — de influencers a antigos “formadores de opinião” — parecem querer escrever/citar. Aliás, todos, não: todEs, né? Vamos brincar de “respeitar tendência”, já que é pra falar de uma, sempre correndo o risco da acusação de deboche. Quer coisa mais divertida?

Pode ser que com aquilo que chamam de “fim do período de retrogradação de Mercúrio”, que estava anunciado para ontem, não como tendência mas como, sei lá, fato, seja possível “mais comunicação e portanto mais entendimento”. Mas é bom ir com calma. Sem cringe, sem crise. Tipo vai ser tranquilo para lavar a louça do almoço, mas pensar na roupa suja são outros quinhentos. Deixe a roupa suja para depois. Siga a tendência que não põe em risco a tua vida. Tome vacina.

Ah, de repente, dá uma saudade de “Inverno sombrio”, d’Os Replicantes.

Tendência e publicidade se misturam? Ou se sustentam? Uma cria a outra? O que o carioca vai fazer com esse frio todo? O que a gente precisa fazer para frear o Tik Tok, pra eles pararem com aquele anúncio em que colocam uma menina para dançar, no quarto? O André Dahmer já fez tirinha falando de dançarinas de Tik Tok, os mais velhos já lembramos de Carla Perez e do É O Tcham. Já deu. O Tik Tok já pode parar. Alguém precisa parar o Tik Tok.

A menina aparece de shortinho, quase sempre de barriga de fora, às vezes de Mulher-Maravilha. Há sequências em que duas outras pessoas se anunciam, no filminho, como que interrompendo a dança da protagonista. Deve ser uma campanha para uma geração muito específica porque a gente que passou pelo medo da guerra nuclear não consegue fazer outra coisa que não seja se incomodar com aquilo. E odiar o Tik Tok. O Tik Tok é a prova de que publicidade pode funcionar muito bem com um nicho.

Vai ter quem diga que este escriba está frequentando ambientes virtuais “errados”. Nem é o caso. O caso de o escriba parar para ouvir isso. É o caso de os publicitários-marketeiros descolados e criativos e extremamente capazes de produzir com baixo custo segurarem a onda. O que nos resta de neurônio serve para lembrar que houve um momento ali na campanha do Trump em que uma “legião de tik tockers” zoou o republicano fazendo com que um comício fracassasse. Esquerdopatas de plantão aplaudimos. Mas agora chega. Ou… Zooom! Zapp! Punch! Cringe!