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Brain Reward System

Pra algumas coisas, não encontrava palavras. Pra certas palavras, o problema era achar coisas, isto é, ouvintes. Via peças de xadrez, do nada, e pensava em jogadas. Adorava ficar à toa. Na praça, observou um casal que já havia enquadrado, num bar da vizinhança: gestos rápidos, promessas e provocações em voz alta, historinhas mirando quem estava em volta. Mal conseguiam dar bicadas nos dois latões de cerveja que, horas antes, talvez estivessem gelados. Sorrisos amarelos, na madrugada. Talvez por esse motivo, pelo adiantado da hora, estivessem ali. Os bares no Rio hoje em dia fecham cedo. Com concentração, como num jogo de tabuleiro, qualquer um podia pescar o que conversavam aqueles dois. Alternavam climas de velório e festa. “Tem um motel, aqui perto”, disse ela. “Prefiro não comer fritura”, respondeu o mané, como que dando continuidade ao assunto anterior, que passava pelos salgadinhos da época em que eram crianças — quando coxinhas, pastéis e empadinhas tinham outra “moral”. Depois de quase rir, o que seria arriscado, o observador achou por bem desistir da tocaia.

Se estivessem numa mesa de madeira, dessas povoadas por guardanapos, palitinhos, sachês de sal e às vezes garrafinhas de azeite, seria a hora de o homem e a mulher pedirem a conta. Costumavam dizer, nestas ocasiões: “Estamos atrasados, moço, pode por favor fechar pra gente?”. O observador condenou-se por não ser capaz, de imediato, de abandonar a cena; porque conhecia de vista a dupla-alvo. Era na verdade um momento de dúvida. Para geral. O espectador não conseguia vazar. E os dois pareciam não saber bem se continuavam na “brincadeira” que, pelas alianças, era coisa “séria”. Era um encontro que parecia traduzir uma crise.

O homem, bem bêbado, fez sinal com a mão pedindo que a mulher aguardasse. Pegou no bolso da calça um papel amassado: “Vamos conferir. Ver se está tudo certo. Eu pago 25. E o que faltar vocês dividem por dois.” Mandou essa e dirigiu o olhar para o observador, num gesto que poderia ser tomado como o de um tonto que não sabe o que está fazendo ou, o que seria surpreendente, de um marido que sabe sim o que está fazendo. O vigilante, na sua pira enxadrista, preferiu não calcular o próximo lance. Levantou-se da muretinha, num pulo, e se afastou dali. A mulher soluçou e levou a mão, em formato de concha, até a boca. Soluçou, de novo, antes de responder: “Melhor dividir logo por quatro. Assim, fica tode munde satisfeite”, disse, zoando com a onda da neutralidade no vocabulário, tão em alta nos botecos frequentados por eles.

O sujeito por algum motivo desandou a falar que as pessoas não se satisfazem dividindo contas no valor correto. Exagerou, na sequência: “Brain Reward System. Bi… ar… ess… Satisfação é outra coisa. Satisfação é quando você encontra água…” Ela se zangou, como sempre se zangava, nos momentos em que o cara tirava aquela onda de professor: “É sábado, porra! Quase domingo…” Depois de uns instantes de silêncios, foram salvos pelo barulho que poderia ser de uma coruja. “Olha o passarinho”, disse ele, soluçando e fazendo com a mão um formato de concha, do mesmo jeito que ela mostrara. Devia ser uma tradição de família. “Você devia esperar para dizer isso quando a gente chegasse ao motel. Eu sei que aqui somos quatro, o público para a piada é maior. Mas você precisa aprender a esperar.” Ela podia estar se vingando do momento-aula sobre Brain Reward System.

Chamava a atenção, o figurino dos dois: muitas peças brancas. Oxalá talvez pudesse explicar aquilo. O vestido dela era justo e estava surpreendentemente limpo para alguém que tropeçava tanto nas palavras. Menos caprichoso, o mané usava uma camiseta meio amassada e amarelada na altura dos sovacos. Cada um tinha uma pequena mochila e levavam, também, sacolas de mercado. Quando saiu do ambiente, instantes antes, o observador havia olhado para aquelas bolsas largadas displicentemente e pensou, quase falando, em voz baixinha: “Tomara que não tenha nada que precise de geladeira…”

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Vinhozinho, vai? (#hiperlocal01)

Quinze minutos de evento: queijos e embutidos sumiam sem cerimônia do espaçoso tampo de vidro em que se enfileiravam, também, grandes taças para os vinhos e outras, menores, para quem precisasse de goles de água. O fenômeno da transformação de comida em vapor se dava mesmo antes da chegada das bebidas. Reúna iguarias numa mesa e elas vão sumir em pouco tempo, não importa o tipo de gente que esteja em volta. Não importa a década. Não importa quem está no Governo. Naquela tarde, nove em cada dez eram homens com camisa de mangas compridas trazendo aquele bonequinho em cima de um cavalo. Ralph Lauren, é assim que chamam. Nenhuma era do jacarezinho, também conhecida como Lacoste. Oito em cada dez eram vestimentas com botões de cima a baixo. Houve um tiozinho quem investiu no formato pra-dentro-da-calça. O convite avisava que seria uma tarde de apresentação de novos rótulos — Oscar Haussmann e Chateau St. Thomas — mas era na explicação da representante comercial que estava a promessa de crônica: uma degustação de vinhos alemães e libaneses.

Uma tarde de dualidades. Era comum nas coletivas de artistas que estavam lançando alguma coisa, nos anos 90 e 00: uma mistureba que reunia figurões dos grandes jornais e o pessoal dos veículos alternativos. Todo mundo comia das pastinhas que as assessoras de imprensa usavam para animar aqueles encontros. E a partir daí, do consumo de comidinhas, a divisão começava a ficar mais caricata. De um lado, marrentões que apontavam os “pequenos” como comilões. Do outro, “pequenos” que de fato às vezes agiam como mortos de fome. Essa dicotomia Alemanha-Líbano podia não ser uma viagem ao passado do jornalista que foi parar lá porque fazia, agora, também o papel de dono de um bar. Mas soava como diversão. Todo fim de mês, donos de bar precisam procurar diversão, para lidar com o movimento mais fraco.

Começaram com os alemães. E o primeiro mostrou-se doce demais. Estranho, dar a partida desse jeito. As especialistas deviam ter suas razões para apostar no OHO1 — Riesling Semi Sweet. A explicação não veio com qualquer aprofundamento, foi quase um “é doce porque é doce”. Na sequência, o OHO1 — Dry e depois o OHO1 — Reserve. Pareciam feitos/servidos só para amaciar, estes rieslings. A melhor coisa a se fazer era abandonar momentaneamente o pessoal dos distintivos de cavalinho para perguntar ao Google sobre aquela uva. E eis que a gente descobre que se trata da uva branca mais cultivada na Alemanha. A França é a segunda maior produtora dessa parada.

O aparecimento de um convidado vestindo bermuda cargo foi como um sinal. Vieram também um balde para descarte e novas garrafinhas de água. Descarte? É, se o cara não gosta muito do que está bebendo ou já provou o suficiente daquilo, manda o restante para o baldinho. Queijo e presunto, ninguém joga fora. Vinho, sim, as pessoas são capazes de dispensar. Não é para tudo que o ralph-laurenismo te prepara adequadamente.

A quarta tacinha daquela tarde era com o primeiro libanês: o chardonnay St. Thomas 2020. Um branco que provocou estranheza. Mas pareceu abrir também a porteira da diversão. Talvez os alemães tivessem feito bem o papel de amaciar o pessoal. Talvez, talvez. Como que poupando uma ida ao Google, a moça que conduzia o abastecimento das taças informou que há uma grande influência francesa na produção libanesa daquele tipo de bebida.

“Manga”, apostou uma convidada, falando de algo que ela tinha sentido ali no vinho. E no flow outras tantas palavras surgiram, como numa rodada de Adedanha. “Mel”, disse alguém, contando com a aprovação de bebedores do lado noroeste da mesa. O escriba que vos digita arriscou um “Tem algo defumado, aqui” e também contou com a aprovação do mesmo grupo. Ali, já dava para perceber que, em termos de vinho, os alemães são (ou tinham sido, naquela tarde) mais “fáceis” do que os libaneses. Isto é, os sabores das bebidas libanesas ali apresentadas eram indiscutivelmente mais complexas e animadoras do que as alemãs.

Da mesma origem, vieram um Pinot Noir 2017, um Les Gourmets Rouge 2018 e… Libanês vai, libanês vem, chegava a hora da última garrafa, aquela que foi apresentada como a grande estrela da tarde: Le Merlot A, de 2009. “Vinho de 1.500,00 Reais”, alguém disse, provocando olhos mais arregalados. “18 meses em barrica”, continuavam, entusiasmados. Até o fechamento deste texto, o preço não havia sido confirmado pelos anfitriões. Seja como for, o produto mereceu ser servido num decanter de cristal. Na taça, o líquido parecia mais oleoso do que os vindos anteriormente, criando desenhos. Impressionante.

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Que calor!

Quando Douglas era moleque, chamavam-no de Hot-Doug. Na verdade, era só um cara que falava aquilo, mas fazia isso com tanta frequência que às vezes parecia que o apelido tinha colado. Pouca gente entendia. O Douglas, que era um moleque em situação de rua, era dos que menos entendiam. Quer dizer, não conseguia ligar bem formalmente os pontos, a semântica e a significância, porque estava acostumado a lidar com a insignificância, com a agora famosa e (meio na-moda, muito comentada) invisibilidade. Mas o garoto sabia/sentia que o gringo que se referia a ele daquele jeito tinha alguma “sensibilidade”, algum “interesse”.

Douglas conseguia fugir da babação de ovo que de um modo geral percebia o pessoal exercitar para lidar com essa galera vinda de fora. Estava na rua mas não era bobo. Ou não podia ser bobo. Enxergava algum interesse por trás daquelas palavras, daquela boca, daqueles olhos, daquela cabeça coberta por cabelos dourados. Os cabelos do gringo chamavam a atenção de Douglas. O corpo esquio do menino, os dentes surpreendentemente brancos pra quem mastigava joelhos e empadas e quibes com tanta frequência, o cabelo desgrenhado e o queixo quadrado chamavam a atenção do forasteiro.

Zap! Zooot! Pow! Woool! Bang! De repente, tinha crescido. Rápido. Como se desse um salto. Havia caído em alguns buracos, e, sim, tinha conseguido levantar-se um pouco mais forte. Continuava magro. E tinha encurtado e adotado de vez o apelido, que virou tag: Hot. Douglas agora era o Hot. O Hot-Doug de um ano e pouco atrás estava uns bons dez centímetros mais alto, com alguma altivez. Perdera um pouco da “tranquilidade” com que conseguia se aproximar das pessoas e que, ao longo do dia, lhe garantia boa quantidade de salgadinhos e refrigerantes. Por sorte, ainda não tinha perdido nenhum dos dentes, que seguiam surpreendentemente brancos.

O estrangeiro e duas mulheres que moravam no 59, Diná e Ruiva, tinham tentado fazer o menino seguir carreira militar. As duas preferiram não entender, ou não foram mesmo capazes, quando ouviram-no confessar que gostava de gente fardada. Quando o jovem que viram crescer ia completar a idade certa, recorreram a um pessoal da assistência social do município e conseguiram os documentos necessários para que ele se alistasse. Dizem na rua que a única exigência era que Douglas ficasse, por três meses, num certo abrigo. Isso era necessário para que pudesse comprovar residência fixa. Estava tudo certo. Farda garantida. Um futuro na vida. O trio Gringo-Diná-Ruiva mobiizou-se para que isso acontecesse. As duas fizeram promessa. Mas Douglas já não era Douglas, nem Hot-Doug. Era o Hot e não conseguiria ficar tanto tempo sob um teto.

O trio continuava achando estar diante de um menino. Aparentando cansaço, declarando frustração, começaram a planejar para o “pupilo” uma vida de modelo. O fã de fardas foi quem fez a sugestão e as duas toparam. Conseguiram “convidá-lo” para uma pizza numa lanchonete que ficava perto do abrigo. Ele argumentou, quer dizer, deu uma ideia e disse que perto do abrigo não seria uma boa. Mas o trio achou por bem insistir. Achavam que Douglas deveria aprender a lidar com seus medos. E Hot aceitou. Eram 19h, quando os quatro se encontraram, na calçada. E dali dava para ouvir os gritos que vinham de dentro do abrigo. Não era possível saber se eram só zoação, se havia alguém levando um sacode. Seria possível apostar que havia alguma dor envolvida, ali, naquilo tudo. Hot olhou para o trio e perguntou se em vez da pizza podia pedir um joelho. Foi o que rolou: um joelho e um refri.

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O sobrevivente

Nas imortais palavras de Wander Wildner, “Boa sorte, boa morte”. É assim que o sempre-Replicante, atual punk-brega, ícone-ídolo dos corações revoltados de outrora e agora porta-voz de suspirantes-crentes-no-amor terminava “Boa morte”, faixa da sensacional fitinha do grupo Sangue Sujo (da época em que WW era mais “só punk mesmo”). O cassete morreu, mas, por sorte, podemos usar o YouTube para comprovar a existência da máxima. Sorte? Morte? Palavras que, claro, não surgem à toa. Confissões chorosas que podem, sei lá, saltar duma mesa bem ao lado, são capazes de anunciar que o fim está próximo. E no fim das contas — como também diz a letra — “Um dia qualquer no fim das contas você vai morrer”.

Rebobinando ainda mais, e ainda mantendo a atenção ao que vaza da conversa na vizinhança, o escriba revive/constata o drama de Aloisio Dantas, ou Alolô, como zoavam os amigos antes de jogarem pra cima dele o terrível Já-Morreu. Ah, nada como uma reunião de amigos de colégio (suspiro) para conseguir inspiração. Como cresce um garoto, depois de ganhar um apelido assim? Naquela época, não chamavam isso de bullying. Era só sacanagem mesmo. Talvez por isso tenhamos nos transformado num país campeão na formação de psicólogos. O curso atualmente é dos mais procurados, como apontou uma edição da ainda — e surpreendentemente — viva “Folha de S. Paulo”.

Sermos campeões no número de dentistas não fez de nós, ao longo de décadas passadas, uma nação menos boca-suja. Vamos ver o que o pessoal da Psicologia vai conseguir, nas próximas eras. Se serão capazes de ajudar a gente a lidar melhor com a inevitabilidade do Fim. Ou, o que já pode ser um grande adianto, a aproveitar as pequenas mortes. Como no francês, sabe? Pequena morte, sacou? Sacou?

Vestir o paletó de madeira virou assunto banal. Há para isso a contribuição do jornalismo-lixo dos programas televisivos de depois do almoço. A gente diz “jornalismo-lixo” porque o jornalismo mais romântico não sobreviveu para ser/manter-se fã de Wander Wildner. Morreu faz tempo, o pobre coitado. A morte parece hoje tão líquida quanto as relações. Não vão achar absurdo, daqui a um tempo, escolher quem vai morrer através de um aplicativo. Se as pessoas escolhem seus pares passando dedos em telas de telefone, daí para usarem o mesmo método para apontarem quem irá desta para melhor é um pulo. Quer dizer, um clique. No século passado, o Schwarza — eita cara bom de matar gente na grande tela — protagonizou um filme em que um troço mais ou menos assim acontecia num show de TV. Qualquer semelhança com os programas de hoje em dia depois do almoço não é mera coincidência.

É claro que a Inteligêntsia sempre vai poder bater no peito bronzeado e eventualmente bem agasalhado para dizer que a Morte faz parte do jogo. Ah, a Inteligêntsia e seu desprendimento. Ah, a Inteligêntsia e suas referências. Vão dar um jeito de desenterrar “O sétimo selo”. Se bem que vão tirar isso do grande caixão da História mas, apesar de — OK — ser uma grande fita, quem é que vai ter paciência de assistir ao que fez o Bergman, hoje em dia, para depois discutir a respeito? Isso morreu! Nem os psicanalistas fazem mais isso.

Ninguém vai ficar pra semente, como garante a tiazinha do bar, enquanto faz pular as chapinhas dos litrões que os eternos estudantes pediram para a nova rodada de ressurreições. Depois de amanhã, ela diz, com cara séria, “é aniversário de morte da minha irmã”. Um momento de silêncio. E alguém levanta um brinde em homenagem a dona Marli. Beber para jogar Luz no caminho de alguém. Taí. Uma hora alguém ia achar uma coisa boa pra fazer com essa história toda de Morte. Saúde!

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Boteco Connection #10 — Calçada unida

Dezembro nem começou direito e parece que é a premissa é: “Mês de sentir saudades”. Teria sido a conclusão mais “lógica” de cinco pessoas que se encontraram sem-querer-querendo, numa calçada, ainda agora. Mas cinco cervejas para cada um e os pensamentos acompanham a vibração: começam uns a querer falar mais alto que os outros sobre o que lhes apertava o peito. Não é que pensamento e cerveja não combinem. É que o papo era saudade, não era combinação. O que combina com saudade? Atravessar a rua, rabiscar toda uma parede com o nome de alguém, mensagens que batem recordes de doçura, flores amarelas, café com canela?

Cinco pessoas, isso. Cinco itens, isso, também. Cinco segundos de silêncio e alguém dispara, no embalo de uma conversa que passa a ser temperada por sacanagens diversas: “A Help era o coração do Brasil. Quando fechou aquilo, você matou o Brasil. Por isso é que aquele museu não vai, gente, não vai pra frente, virou tipo um cemitério de índio.” Foi tão bem construído e certeiro, o negócio, que os cinco segundos seguintes pareceram cinco minutos. A resposta, ninguém viu bem de onde veio, mas provocou de xingamentos a risadas, ambas tímidas: “Tá com saudade da putaria, né?”

“As ideias são como um prêmio para quem trabalha. Quem trabalha merece ter ideias. No meio dessa demolição da intelectualidade, o problema é que a gente tá com muito mais trabalho. E poucas ideias…” Frase complexa é assim. Por um lado, pode fazer todo mundo pensar que talvez tenha bebido demais. Por outro, faz todo mundo pensar e isso é bom. Era o caso de aproveitar, ali, naquela assembleia, o fato de que estava todo mundo a fim de pensar. Alguns até sofriam com isso. Para estes, pintou uma frase, mais curta, ainda com tapa-na-cara-mode-on: “Bora! Bora! Bora!” Tipo na academia, isso mesmo.

Foi possível sentir no ar um sopro de confiança. Ou estava todo mundo meio desnorteado mesmo. Talvez alguns até se perguntassem se seria possível retomar o papo, a partir daquele ponto. A autora do veredicto estava quase envergonhada por ter soltado aquilo, como se fosse culpada pelo silêncio que se seguiu. Era o caso de sentir-se orgulhosa. Mas não adiantou aquele outro maluco dizer isso a ela, baixinho. O movimento gerou até desconforto, porque parecia uma divisão do time. Não que a divisão fosse proibida, ali, mas… Ainda estava fresquinho na cabeça de geral aquela vontade de unir. “Calçada! Unida! Jamais será vencida!” Quase dava para imaginar o pessoal saindo com isso aos gritos: “Calçada! Unida! Jamais será vencida!”

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Boteco Connection #9 — Fordismo

O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo.  O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.

Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…

Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.

Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.

Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.

“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”

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1990 ou O-Ano-Da-Pantera (quase, quase Boteco Connection #9)

Ela não queria apelar para as ferramentas de pesquisa na internet. Não era uma decisão fácil, esta, porque o telefone estava ali, o tempo todo. Mas mantinha-se firme, mesmo que fosse uma tentação mergulhar no protagonismo de uma daquelas sequências em que, após uns poucos segundos de concentração, arrumando os cabelos bem pretos, ela pegaria o aparelho e, com a firmeza de quem enxerga muito bem, deslizaria as unhas pintadas de vermelho cintilante pela telinha. Andava digitando com o dedo até um pouco de lado, por causa do tamanho das garras. E assim como não era exagero falar em “garras”, também não era demais falar dela como uma pantera. Mas estamos apontando alguém que pretendia voltar aos dias de “jovem felina 1990”, quando tinha 9 anos e foi, com o pai, ver um jogo de futebol na maior cidade do país. Não qualquer jogo. Mas aquele que faria com que ela trocasse de time. O que será que uma ferramenta de busca nos mostraria como dicotomia se fôssemos opor “jovem felina 1990” e “pantera 2022”?

Puxar pela memória tinha começado como uma diversão. Sempre que esbarrava com alguém que parecia entender de futebol, ela engatilhava o assunto, mencionando a conquista de um título, naquele ano, e comentando resultados. Era boa com placares históricos, o que excitava marmanjos metidos a entender de futebol. Recheava suas crônicas — porque eram mais do que memórias — falando da eleição de uma mulher nordestina para a prefeitura de São Paulo. E enchia-se de orgulho recapitulando o episódio em que, no metrô, desafiou skinheads para proteger o irmão mais novo. Enxergava bem e tinha boa memória, a pantera. E se divertia, diante de barbudos entendedores do jogo da bola, vendo-os sem resposta para questões que, ela deixava claro, trariam grande felicidade para ela. Mobilizava os caras, sem muito esforço.

Na verdade, mais do que conseguir respostas, mais do que ser capaz de organizar na cabeça um almanaque definitivo sobre aquele jogo, ela elevava, a cada menção/tentativa, um castelo de paixões — pelo time, pela vida, pelo mar, por…. Uma construção que ia ficando sempre mais e mais imponente. Depois da pandemia do início dos Anos 2020, nossa personagem parecia estar diante da necessidade de tomar uma outra grande decisão, algo que poderia ser tão transformador quanto trocar de time, e talvez por isso mais importante do que conseguir respostas definitivas eram as chances de visitar, mentalmente, os sabores de um novo horizonte.

Ela enxergava bem e pensava também muito bem. E, ao contrário do que tinha imaginado até ali, talvez fosse possível trocar de time mais de uma vez na vida. O tempo passa. Ou, como ela dizia parecendo querer desconcertar seus interlocutores: “O tempo tem o próprio tempo. É assim que se constrói intimidade.” Se um só pensamento preenche a imensidão, também com esta medida se ergue uma fortaleza, um castelo.

Pegou-se ontem começando uma conversa, numa calçada de boteco. Tinha testemunhas, gente que já a tinha visto armar aquela arapuca. Houve até quem comentasse: “Pô, de novo, esse papo de 1990? Sério?” Era uma deixa, tal tipo de comentário, para que ela mostrasse outro talento: o sorriso. Sorria que era uma beleza. E invariavelmente seguia, firme, na prosa. Esse cara da calçada era mais ou menos da idade do pai dela, e fanático pelo mesmo clube. Sentindo o desafio, o malandro não recuou: “Mas a gente jogou nesse estádio, em 1990?” A mulher respondeu que “Sim… E a gente perdeu…” E foi quando ouviu o que precisava, sem saber que era aquilo que precisava: “Ah, é por isso então qu’eu não lembro.”

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X, quadrado, triângulo, ondinhas, raios

Era alto e gordo, o Comandante. Carregava esse apelido mas era engenheiro, não milico. Do time dos escrotos, sem dúvida, tratado como “doutor” pelos homens que trabalhavam com ele. Tinha sido “presenteado” co’a chance de ser padrinho do Tito, filho do seu empregado mais antigo. “Presenteado” era como dizia a mãe dele, que enxergava naquilo uma chance de aprendizado para o filho. Com o vocabulário fofo dela e um considerável apanhado de orações, rogava por um cabra mais gente fina. Ao longo de 20 anos, o gesto mais carinhoso dele na direção de Tito tinha sido deixar para o garoto o troco que ficou de 300 gramas de salaminho que mandou comprar na padaria do outro lado da avenida. Foi também uma das poucas vezes em que a “plateia” que sempre o cercava deixou de seguir a regra de rir das “graças” que pintavam: naquela ocasião, apostou que o garoto poderia não voltar da missão porque atravessar a avenida era coisa perigosa para uma criança daquela idade.

Aos sábados, aquele escroto vestia uma fantasia de discotecário. Ou quase. Ficava numa parte da sala da casa, onde acumulava discos antigos, a maioria de rock progressivo, e se enlameava naquele repertório. Ninguém o incomodava. Porque não ousariam fazer isso, de um modo geral, e também porque a seleção musical era mesmo bem chata e repetitiva. No Dia do Juízo Final dos Discotecários, se for julgado também nesta categoria, terá garantido um dos lugares na lista de Piores de Todos os Tempos. Voltava sempre às mesmas músicas, aos sábados, entre 14h e 17h. Pode-se dizer que tinha um set bem amarradinho. Gostava de se sentar numa poltrona que ficava perto da janela, e, durante aqueles 18 intermináveis minutos de duração média de cada faixa, fazia de conta que estava pensando. Tinha a mania de vestir-se de preto, nestas ocasiões. O que fez com que uma amiga da mãe — porque ele morava com a mãe — achasse que se tratava de uma assombração. Aconteceu porque ele estava agachado no canto, perto da prateleira onde ficavam os LPs, e ali havia pouca iluminação. Uma pessoa desavisada, embalada por aquela música danada de ruim, poderia ter a impressão de que se tratava de um ser de outro mundo, em vez de um vacilão daqui da Terra mesmo.

Os discos ficavam organizados numa prateleirinha e também num armário. Na prateleirinha, os compactos. No armário, os grandões: de 10 e 12 polegadas. Todos os formatos ficavam abrigados em plásticos novos, que protegiam as capas em que invariavelmente o Comandante escrevia seu nome com esferográfica azul. Era neste detalhe que ele entregava que além de mau DJ era também um colecionador porcalhão. Arrumava os bolachões numa ordem que não era alfabética, mas, sim, de preferência. Da esquerda para a direita, de cima para baixo. O disco que mais ouvia era o primeiro da prateleira de cima. Se algum louco fosse surrupiar uma bolacha dali e pegasse a primeira de cima, estaria levando o disco mais ouvido pelo pior DJ do mundo. Entrar na casa para subtrair dali qualquer coisa seria tarefa não muito simples mas, sim, possível para alguém que conhecesse a rotina de (falta de segurança) daquela condomínio de casas.

O mané quase teve um troço quando pegou o preferidão dos sábados e, ao tirar da capa, deu de cara com uma bolacha marcada por um X que deve ter sido “esculpido” com um bom estilete, canivete ou faca. Chamava a atenção a simetria com que os dois lados do LP tinham sido marcados. Parecia casar direitinho, um X com o outro do lado oposto. O autor da obra deve ter ficado orgulhoso. Mas a reação do Comandante, surpreendentemente, não passou dos olhos arregalados. Manteve o que pode-se chamar de “calma”,  na sequência. Decidiu pegar o segundo disco da fileira e, neste, encontrou riscada de cada lado a figura de um quadrado. Sentou-se na cadeira e lembrou do Tito, que segundo o pai, havia viajado para o Nordeste. “De Niterói para o Nordeste é um pulo grande”, havia pensado, quando ouviu do empregado a informação. Ainda sentado, experimentando aquela sensação completamente nova, não sabia que ainda encontraria nos três discos seguintes figuras geométricas diferentes.

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Quadro colorido

Foi um diálogo rápido. Mas chamou a atenção porque era um pouco Doce contra Salgado. E Doce contra Salgado mobiliza as pessoas. O “contra” não revelava uma oposição, exatamente, mas talvez uma impossibilidade, ou incapacidade — de ambas as partes — de chegar a um acordo. Porque a opção pelo desacordo criava pelejas como aquela. Durou uma meia-hora. Divertido, às vezes, para quem teve a sorte de acompanhar. Houve até quem fizesse vídeo, sob a promessa de não publicar em lugar nenhum mas, sim, guardar as imagens apenas como… Recordação? Recordação de uma discussão? Big-brothermente falando, fica difícil hoje em dia filmar algo e não publicar, mas a questão ali era o Doce contra o Salgado, então o pessoal soube se concentrar no que importava: nos ensinamentos.

“Você tem 39 anos e nunca entrou num banheiro de Salgado”, perguntou Salgado ao Doce. “Como é que pode isso?” E com o sorriso de quem parecia conhecer segredos do oponente seguiu no ataque: “Banheiro é território de liberdade. Você não precisa ter medo de sair do seu e entrar no do outro…” Foi possível perceber o desconforto com que Doce ouviu aquilo. Parecia saber que se tratava de uma piada. Entendia a provocação, porque era isso, uma provocação, mas não queria perder tempo pesando consequências e atirou: “Você está muito enganado!” Não era só defesa. Era também ataque.

A conversa começou com os dois professores falando de questões estéticas. O que está escrito em banheiros masculinos será parecido com o que fica registrado nos femininos? Tipo isso. “Eu não sei, porque não frequento banheiros masculinos”, declarou a professora, tranquilamente, sem imaginar o ataque que viria em seguida: “Ah, mas vai dizer que você nunca entrou em um?”. Era uma provocação, claro. E talvez entregasse que havia, ou que tivesse havido, entre eles, mais do que uma relação cordial.

Cada um bebeu um gole de cachaça, a bebida disponível, ali, por perto, em copinhos minúsculos e com detalhes que permitiam identificar o que era de quem. Copinhos que pareciam dizer: cuide do que é seu, não do que é dos outros. E era como se Doce e Salgado precisassem também de marcas mais visíveis, para que pudessem entender quem era de quem. Ou melhor: que ninguém era de ninguém. Ver duas pessoas discutindo por uma coisa e perceber que, na verdade, há outros pontos em jogo, é divertido. Pode ser assustador, mas, ali, estava divertido. Ainda bem que existe cachaça.

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@monteiro4852 #120

“Não tá fácil pra ninguém?” É isso que você tem pra me dizer?