O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo. O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.
Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…
Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.
Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.
Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.
“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”