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Oinc! Oinc!

“Confio mais na Elma Chips do que em mim.” Foi após esta frase, disparada pelo mais “forte” do grupo, que o quarteto mereceu atenção. Eram barbados de camisetas pretas, primeiro falando sobre um amigo que havia morrido recentemente e depois sobre comida. “O bróder empacotou por causa daquela mulher”, concordaram. Conseguiam emendar assuntos aparentemente bastante distintos. Cerveja sempre ajuda, em casos assim. Depois de falarem do falecido, por exemplo, explicaram por que — tirando o “mais forte” — precisavam fazer batata palha em casa: queriam, vejam só, que nas noites de estrogonofe os filhos tivessem uma experiência mais especial.

Comiam empadas como porcos. Era farelo para tudo quanto era lado. As barbas ficavam horríveis, fazendo a gente da plateia pensar como ficariam, também, nas noites de estrogonofe, as tais reservadas para experiências mais especiais. Cerveja pode piorar as coisas, em casos assim. Ao menos, eram porcos solidários. Sujavam-se juntos e pareciam capazes de engordurar, sem muita cerimônia, quem estivesse próximo. No balaio de pautas, pegavam e devolviam histórias, mas voltavam sempre à morte daquele sujeito. Era de se esperar que estivessem tocados com a perda do amigo. Repetiam informações, reafirmavam as teorias. Havia um discurso digamos afinado sobre o que havia sido a pedra no caminho do falecido: “A companheira dele.” A insistência nisso podia alimentar a curiosidade de quem estava perto.

Pegando esta trilha, naquele volume, dava para desconfiar que de alguma maneira queriam envolver toda a calçada na história. Com cerveja ou sem cerveja, pareciam confortáveis no papel, isto é, diante do risco de serem apontados não apenas como porcos, mas como “porcos escrotos”. “Ela parecia a mulher ideal. Os dois eram baixinhos, como personagens de ‘O Senhor dos Anéis’. Depois, cara, ela virou um monstro.” Lá pelas tantas, tiraram lenha da fogueira da encenação, como que cansados de esperar por aplausos. Indicavam o fim do espetáculo. Pareciam assim reduzir a sugestão de castigo que certamente viria após a descida das cortinas e o abandono do palco. Nas naquela altura, era já certo que a condenação viria, indiscutível, provavelmente anunciada com caras enfezadas pelo tribunal de beira de rua. Não dava mais tempo de amenizar nada, nem com a frase final sobre o caso, esclarecendo que a vítima “já tinha trombose, desde cedo”.

Pagar a conta, ao contrário da performance, foi um detalhe que protagonizaram quase em silêncio absoluto, como se alguma “consciência” ou “culpa” tivesse passado a dominar o chiqueiro virtual deles. Apontaram para as maquininhas de cartões, indicando que era daquela maneira que acertariam as coisas. “Crédito ou débito, hein?” Foi quase engraçado ouvir cada um deles respondendo secamente sobre a transação… “Crédito.” “Crédito.” “Crédito.” “Crédito.” Porcos unidos jamais serão vencidos?

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Boteco Connection #9 — Fordismo

O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo.  O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.

Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…

Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.

Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.

Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.

“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”

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Tum!

Sabe o surdo? Tem aquele abatimentozinho provocado pela cuíca, mas é o surdo que pode definir os contornos de uma tristeza mais absoluta, um desespero sem saída, uma saudade aparentemente sem cura. É o surdo, ou — surpresa! — a falta dele, que faz o cara parar e pensar. Surdo é parada, é intervalo, é um mergulho num hiato muito breve que pode te afogar pela eternidade.

Os carnavais acabam. Conforme-se. Há quem defenda agora que não devíamos ter tido a folia do início deste ano. Agora é tarde. Porque ela já aconteceu. Se fizesse sentido falar no que não deveria ter acontecido, gente, o mundo seria ainda mais confuso do que este que você está testemunhando aí, ó. Se fosse para brincar de túnel do tempo, não é o carnaval deste ano que este escriba tiraria do mapa. É “mapa” que se fala, quando a referência tem a ver com a linha do tempo? Calendário?

Sempre existirão as questões que lhe são caras e que, pra outrem, não passam de cagadas. Maturidade, ou “a fina arte de aprender a tocar o surdo”, pode ser o estágio em que você aprende a não relativizar isso. E a não se preocupar. Porque relativizar é o de menos, ainda mais na hora em que você pensa que pode estar no caminho da morte.

Pizza e surdo combinam. Porque a base superior do instrumento — bem ali onde se bate — pode servir de bandeja. Nesse sentido, combinaria com qualquer alimento. Mas é que pizza é aquela coisa da qual a gente pode pegar uma fatia com as mãos (bem lavadas, claro) mesmo e comer sem muita cerimônia. Ainda mais se o comilão for um ianque. Está para nascer gente tão despreocupada com a maneira de comer pizza. E isso não é um ponto contra eles.

Em Botafogo, anos atrás, um casal discutia sobre a divisão de uma pizza. Não era bem uma discussão, mas, sim, um cara sendo acusado de comer uma última fatia sem autorização. Entre os intervalos na ladainha da acusação, quase dava para sacar as batidas de um surdo. Pizzas mal divididas podem dar em fins de namoros. Mas são as batidas de surdo que tornam dolorosas fins e despedidas — mesmo as que vêm de surpresa. Ou que não foram anunciadas. O surdo sempre está lá. Tum…!