Categorias
Comportamento Crônica Literatice Parece Poesia Paulo-Coelhismo Sem categoria Umbigada

Bu!

No caminho para a Lapa, uma coleção de personagens-situações de dar inveja em qualquer Rick Drekard. “Blade Runner”, cara, “Blade Runner”. O bom e velho… Turistas na escadaria. Gentrificação anunciada em mais um beco. Palavras surgindo na ida e fugindo na volta como que para garantir que não haverá registro. Crenças ensaiando um rascunho descontrolado. Explicações em todos os cantos, quase aos gritos. Uma mentira como sinônimo de roubo. Sol dando pinta de que vai deixar chover. Este é o nosso Show Sambapunk de Rádio.

O papel que o tiozinho usa para embrulhar as flores, no sábado, ali na feira, lembra a folha que cobria o pão de antigamente. Hoje em dia, pão é só em saquinho, praticamente. As flores deram mais sorte do que as bisnagas. Seu Zé e o Moleque cobrem tudo direitinho para garantir a elas alguma proteção. Antigamente, na volta para casa, o pão ficava descoberto com facilidade. O que será do pão, no futuro? O que será da flor, no futuro? O papel, pobre coitado, nem vamos perguntar sobre o que vai acontecer com o papel.

A pequenina ensaiando uma expressão de extremo desgosto, diante de um vídeo de entrevista ao qual o pai assiste. O coroa percebe e num flash vai até a própria infância, quando tinha vontade de voar ao ver o velho-mais-velho-ainda dando moral para comentaristas de futebol na TV. Todas estas teorias quântico-físicas devem ter algum fundamento, quando o caô é voltar ao passado. Sim, você já ouviu esta.

Ninguém jamais vai cantar “Modern love” como o próprio Bowie. Outro dia, pulava do celular uma versão caprichada/carregada nos graves para “Take my breath away”, mas, porra, aí é outra coisa. Outro naipe, não resiste ao corte.  Os amores modernos. Sempre os modernos. Sempre os amores. Sempre Bowie, esteja onde estiver. Seja o fantasma que for. Será que algum fela fez versão disso no esquema pagode? Até que pode ficar engraçado, hein!? Este é o nosso Show Sanbapunk de Rádio.

Há quem se assuste com facilidade. Há quem diga o tempo todo que se assusta com facilidade. Há a facilidade para assustar os outros, hoje em dia. Há os sustos que fazem a gente quase se mijar. Há os cheques sustados, mas aí é bem outra coisa. Por falar em coisas, há aquelas com as quais a gente não se acostuma. Não tão assustadoras quanto aquelas com as quais não estamos dispostos a nos acostumar. Geral está muito mal-acostumado. Até o próximo programa.

Categorias
Beber Comer Comportamento Crônica Literatice Umbigada

Cuidados

Passou pelo Largo do Machado sabendo bem do horário porque se programou para curtir os sons do meio-dia, principalmente/especificamente os sinos daquela igreja onde dois anos antes — na missa de sétimo dia de falecimento da mãe — tinha testemunhado um sacerdote assustadoramente vacilão fazer “piada”  dizendo que catequistas seriam fuziladas. Teve dificuldade para driblar as poças d’água, a caminho da feira, já que ia no automático desatento às provocações da chuva; querendo parar de pensar que já era tarde para conseguir bons camarões. Tudo contribuiu para que Pê chegasse atrasado ao encontro com Gê.

Os dois tinham marcado um papo que Gê chamou de “sessão”. Aconteceu, isso, após o mais velho ter acreditado perceber mudanças que considerou significativas no comportamento de Pê. Já eram conhecidos havia o quê, uns bons dez anos? Por aí. Talvez 12. A amizade começara na época do nascimento da filha de Pê, que por meses tinha se transformado numa espécie de atração na hora do almoço no restaurante que os dois frequentavam. Era mesmo uma graça, a menina. Gê ia lá para comer. Pê, para beber: achava que o fato de o lugar ser conhecido como restaurante e não como bar garantia uma dichavada que não fazia mal a ninguém.

“E aí, compadre?” “Fala!” Mãos apertadas. Abraço dado. Sorrisos leves, largos e demorados. Respirações profundas. Depois que as cabeleiras balançaram sob o ritmo de gargalhadas-bênção, houve um bom minuto de silêncio. “O que tá rolando, cara?” Quem fez a pergunta foi o mais novo, ao contrário do que parecia programado para o encontro. Gê encolheu-se, para responder. Comentou sobre o trabalho do qual não estava dando conta. Das despesas que aumentaram sem que ele conseguisse entender por quê. Revelou um flerte com uma droga nova. Confessou ter ficado viciado em xadrez online. Deu um jeito de reclamar do professor de Matemática que teve aos 14 anos e levantou-se para ir ao banheiro.

Pê, neste intervalo, quis revisitar as respostas do amigo. Mas sentiu que se insistisse nisso perderia de vista a lista que estava elaborando. A relação do que guardara para soltar naquele encontro com o camarada; era essa, a lista. Viu pingos — muita gente, mas separadamente e por isso “pingos” — de uma enxurrada em direção às academias e sentiu que, se fixasse a atenção naquelas personagens, também perderia sua programação para a conversa. Sabia que se desconcentrava fácil, fácil, e que talvez pudesse ser este um dos pontos a comentar com o parça. Pode ser que o xixi do outro não tenha demorado o suficiente para que Pê se organizasse. Seja como for, o que aconteceu foi que na volta tudo que Gê ouviu foi “Cara, está tudo na mesma. Não tem muita coisa acontecendo.”

Mais um tempo de silêncio. Então, um intervalo maior. Durou do instante em que o garoto dos amendoins derramou, sobre a mesa, em cima de um papel verde, uma amostra do que estava vendendo e o momento em que este mesmo sujeito voltou para recolher a iguaria. As cabeças balançaram de novo mas aí já não havia nenhuma gargalhada no ar, era só para dizer não ao Vê. Os copos se esvaziaram, vieram mais duas garrafas. Iam experimentar uma bebida diferente.

Categorias
Comportamento Crônica Literatice Paulo-Coelhismo Sem categoria Tipo Poesia Umbigada XXX

Boteco Connection #11 — O monstro e o lago

Parecia perdida, ela. Olhos arregalados. Ofegante, sim; ofegante mesmo. Sem saber para onde ir e algo exausta. Suada. A calçada, que se lhe apresentava meio como um labirinto, carregava também traços bastante familiares: os poucos pinos perto do meio-fio, que estavam ali para inibir os motoristas de táxi em seus devaneios secundaristas, faziam o papel de pilastras, de tão grandes que tinham ficado. Tudo isso, sob o olhar da moça; antes de ela investir no primeiro gole de cachaça. Com as unhas dos pés e das mãos bem pintadas de vermelho, olhava para os lados como se aguardasse o Minotauro, que apareceria para gritar “Bu!”. Como que numa tentativa de manter-se lúcida, fez a piada: “Será que o Minotauro faz ‘Bu!’ ou será que faz ‘Mu!’?” Estava falando consigo mesma, mas no esquema voz-alta-mode-on. Foi a chance que o maluco do lado esperava para tentar engatar uma conversa: “Me dá também uma cachaça dessa, dona Marlene! Igual à da moça…”

Vera respirou aliviada. “É só um mané, não é o Minotauro”, comentou, depois de mexer rapidamente no painel e garantir voz-alta-mode-off. Na avaliação cordial dela, estava lidando com alguma espécie de monstrinho. Mas não teve medo. E resolveu jogar. Deu ao boy uma chance, revisitando uma gracinha antiga, apostando que assim assustaria o cara: “Oi, eu sou a Vera. Estou aqui à vera.” A parada era dizer isso bem rápido, meio que se fazendo de bêbada, meio que disparando um teste. O cara não mordeu a isca. Respondeu com um pobre “Nino. Prazer.”

A tiazinha que controlava o outro lado do balcão fingiu não ouvir o pedido do rapaz. Porque ela sabia que era cliente de gelada e não de quente. Queria evitar problemas. Vera, por sua vez, começou a falar num “lago escuro”, onde ela não tinha certeza se “pulava ou não”. Foram uns bons 15 segundos de silêncio, depois daquilo. Até que sob a sombra de um certo juízo o rapaz retomou suas práticas mais tradicionais: “Dá uma cerveja, dona Marlene. Bem gelada.” Ele e a tiazinha se entreolharam e trocaram um breve sorriso, e, estando ambos calibrados para voz-alta-mode-off, trocaram também uma frase que parecia ensaiada: “Não pode mais chamar de canela de pedreiro…” Riram alto, como se às vezes esquecessem das regulagens que fazem em seus painéis.

Cada um com seu goró. Como tinha que ser. Minotauro ia, à-vera vinha, taxistas iam, taxistas vinham e… o lago escuro não saía da pauta. Ela insistia no assunto. Falava de mergulhos. Citava encruzilhadas e igrejas. Apontava dúvidas. Mencionava o pai. Olhava inquisidora para os olhos do rapaz e falava em “transferência”. E quando ele começava qualquer frase ela devagarinho batia palmas, como que conduzindo um samba; sugerindo uma melodia, um andamento. Num primeiro momento, Nino não percebeu aquilo; mas, depois do segundo litrão, muita coisa foi ficando mais clara. Vera no entanto não parecia disposta a abrir mão de controlar o jogo. Na cabeça da moça, era o seguinte: se do outro lado do ringue não estava o Minotauro, não havia o que temer. Ou o que perder.

Em jogos de sedução, com ou sem monstros míticos, chega uma hora em que um dos dois lados pode mudar de estratégia. O que dizer sobre uma brincadeira que ocupa uma preciosa e disputada mesinha de calçada por três horas? Dona Marlene não dizia nada, ainda mais que o casal estava bebendo bem. Já eram vistos como um casal. Compraram amendoins dos moleques que passaram vendendo a iguaria. Investiram em paçoca, gomas de mascar; ajudaram uma mãe que precisava de fraldas para o bebê. O Minotauro estava demorando demais. O monstro estava perdendo. O playboy tinha chances de vencer.

Categorias
Comportamento Crônica Freudcast Literatice Sem categoria Umbigada XXX

Boteco Connection #10 — Calçada unida

Dezembro nem começou direito e parece que é a premissa é: “Mês de sentir saudades”. Teria sido a conclusão mais “lógica” de cinco pessoas que se encontraram sem-querer-querendo, numa calçada, ainda agora. Mas cinco cervejas para cada um e os pensamentos acompanham a vibração: começam uns a querer falar mais alto que os outros sobre o que lhes apertava o peito. Não é que pensamento e cerveja não combinem. É que o papo era saudade, não era combinação. O que combina com saudade? Atravessar a rua, rabiscar toda uma parede com o nome de alguém, mensagens que batem recordes de doçura, flores amarelas, café com canela?

Cinco pessoas, isso. Cinco itens, isso, também. Cinco segundos de silêncio e alguém dispara, no embalo de uma conversa que passa a ser temperada por sacanagens diversas: “A Help era o coração do Brasil. Quando fechou aquilo, você matou o Brasil. Por isso é que aquele museu não vai, gente, não vai pra frente, virou tipo um cemitério de índio.” Foi tão bem construído e certeiro, o negócio, que os cinco segundos seguintes pareceram cinco minutos. A resposta, ninguém viu bem de onde veio, mas provocou de xingamentos a risadas, ambas tímidas: “Tá com saudade da putaria, né?”

“As ideias são como um prêmio para quem trabalha. Quem trabalha merece ter ideias. No meio dessa demolição da intelectualidade, o problema é que a gente tá com muito mais trabalho. E poucas ideias…” Frase complexa é assim. Por um lado, pode fazer todo mundo pensar que talvez tenha bebido demais. Por outro, faz todo mundo pensar e isso é bom. Era o caso de aproveitar, ali, naquela assembleia, o fato de que estava todo mundo a fim de pensar. Alguns até sofriam com isso. Para estes, pintou uma frase, mais curta, ainda com tapa-na-cara-mode-on: “Bora! Bora! Bora!” Tipo na academia, isso mesmo.

Foi possível sentir no ar um sopro de confiança. Ou estava todo mundo meio desnorteado mesmo. Talvez alguns até se perguntassem se seria possível retomar o papo, a partir daquele ponto. A autora do veredicto estava quase envergonhada por ter soltado aquilo, como se fosse culpada pelo silêncio que se seguiu. Era o caso de sentir-se orgulhosa. Mas não adiantou aquele outro maluco dizer isso a ela, baixinho. O movimento gerou até desconforto, porque parecia uma divisão do time. Não que a divisão fosse proibida, ali, mas… Ainda estava fresquinho na cabeça de geral aquela vontade de unir. “Calçada! Unida! Jamais será vencida!” Quase dava para imaginar o pessoal saindo com isso aos gritos: “Calçada! Unida! Jamais será vencida!”

Categorias
Comportamento Conto Crônica Ctrl + C -> Ctrl + V Freudcast Literatice Música Paulo-Coelhismo Sem categoria Umbigada

Boteco Connection #9 — Fordismo

O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo.  O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.

Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…

Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.

Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.

Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.

“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”

Categorias
Cinema Comportamento Crônica Desenho Literatice Parece Poesia Paulo-Coelhismo Sem categoria Umbigada

Formigamento

Um passeio pela praça. Crianças brincando. Ninguém parecendo ligar para a promessa de chuva. Nenhum ambulante vendendo cerveja. Cachorros que chegam perto, atraídos sabe-se lá pelo quê — a ponto de pegar as bolinhas que os donos jogavam para, na volta, perderem o rumo. Como se a recompensa tivesse mudado de lugar. Os pombos davam uma trégua, até porque não havia nenhuma migalha por perto. Não era uma tarde de restos. Era sim um pico, um pontinho de intensidade. Talvez no plural mesmo: in-ten-si-da-des. Uma praça é uma promessa.

A história da senhorinha do prédio branco de janelas azuis é a seguinte: ela morava ali com o marido. Foi por décadas o endereço deles. E parece ainda ser, mesmo que nenhum dos dois esteja mais por lá. As janelas daquele andar revelam-se as mais desbotadas, como se há muito não fossem acariciadas com tinta nova. Janelas fechadas-fechadas-mesmo, não como as outras em que o pessoal parece se contentar em se esconder atrás de vidros. Contam que o casal de velhinhos ia sempre à feira que rola ali perto, aos domingos.

As formigas ensaiam uma mobilização. Como se estivessem estudando desenho. Figurativo mesmo, o negócio. Formigas inteligentes. Terão sido inventadas, na última hora, elas, e já estavam tomando conta de Copacabana? Estarão aliadas aos cachorros, naqueles desvios de comportamento? Será que estes bichos riem, agora entendendo a estranheza que provocam na gente que fica sentada se beijando, alheia a tudo, celebrando um amor que parece o mais intenso de todos? De todos os tempos.

Terão os bichos respostas sobre o futuro ou será que estão limitados aos desenhos que parecem capazes de fascinar um estudante do Parque Lage? Um colecionador investiria algum trocado naquilo? Talvez depois de pesquisar quanto tempo vive uma formiga e calcular como será a produção anual da turma daquela área. Um vento fresco surge para espantar as contas e evidenciar o calor. Um sopro que gela um pouco o suor e espalha cheiros doces. Gente vendendo amendoim, ali perto, amendoim doce, contribui com o adoçamento. A pergunta passa a ser sobre a influência que aquele cheiro pode ter sobre a produção artística das formigas. O espetáculo parece continuar só com as formigas, porque depois de um tempo os cachorros deixam claro que se cansam logo.

Somos todos formigamentos, organizadinhos em nossos sonhos de desenhos. Crianças num cercadinho misturando suor e poeira, vendedores de estalinhos e outros brinquedos num quadrado que deve ter sido definido pelos coronéis das redondezas, bancos convidativos com espaço para cinco mas sendo usados invariavelmente por dois caras. Um casal. Tem alguma coisa acontecendo, ali…

Categorias
Comportamento Conto Crônica Ctrl + C -> Ctrl + V Freudcast Literatice Sem categoria Umbigada

1990 ou O-Ano-Da-Pantera (quase, quase Boteco Connection #9)

Ela não queria apelar para as ferramentas de pesquisa na internet. Não era uma decisão fácil, esta, porque o telefone estava ali, o tempo todo. Mas mantinha-se firme, mesmo que fosse uma tentação mergulhar no protagonismo de uma daquelas sequências em que, após uns poucos segundos de concentração, arrumando os cabelos bem pretos, ela pegaria o aparelho e, com a firmeza de quem enxerga muito bem, deslizaria as unhas pintadas de vermelho cintilante pela telinha. Andava digitando com o dedo até um pouco de lado, por causa do tamanho das garras. E assim como não era exagero falar em “garras”, também não era demais falar dela como uma pantera. Mas estamos apontando alguém que pretendia voltar aos dias de “jovem felina 1990”, quando tinha 9 anos e foi, com o pai, ver um jogo de futebol na maior cidade do país. Não qualquer jogo. Mas aquele que faria com que ela trocasse de time. O que será que uma ferramenta de busca nos mostraria como dicotomia se fôssemos opor “jovem felina 1990” e “pantera 2022”?

Puxar pela memória tinha começado como uma diversão. Sempre que esbarrava com alguém que parecia entender de futebol, ela engatilhava o assunto, mencionando a conquista de um título, naquele ano, e comentando resultados. Era boa com placares históricos, o que excitava marmanjos metidos a entender de futebol. Recheava suas crônicas — porque eram mais do que memórias — falando da eleição de uma mulher nordestina para a prefeitura de São Paulo. E enchia-se de orgulho recapitulando o episódio em que, no metrô, desafiou skinheads para proteger o irmão mais novo. Enxergava bem e tinha boa memória, a pantera. E se divertia, diante de barbudos entendedores do jogo da bola, vendo-os sem resposta para questões que, ela deixava claro, trariam grande felicidade para ela. Mobilizava os caras, sem muito esforço.

Na verdade, mais do que conseguir respostas, mais do que ser capaz de organizar na cabeça um almanaque definitivo sobre aquele jogo, ela elevava, a cada menção/tentativa, um castelo de paixões — pelo time, pela vida, pelo mar, por…. Uma construção que ia ficando sempre mais e mais imponente. Depois da pandemia do início dos Anos 2020, nossa personagem parecia estar diante da necessidade de tomar uma outra grande decisão, algo que poderia ser tão transformador quanto trocar de time, e talvez por isso mais importante do que conseguir respostas definitivas eram as chances de visitar, mentalmente, os sabores de um novo horizonte.

Ela enxergava bem e pensava também muito bem. E, ao contrário do que tinha imaginado até ali, talvez fosse possível trocar de time mais de uma vez na vida. O tempo passa. Ou, como ela dizia parecendo querer desconcertar seus interlocutores: “O tempo tem o próprio tempo. É assim que se constrói intimidade.” Se um só pensamento preenche a imensidão, também com esta medida se ergue uma fortaleza, um castelo.

Pegou-se ontem começando uma conversa, numa calçada de boteco. Tinha testemunhas, gente que já a tinha visto armar aquela arapuca. Houve até quem comentasse: “Pô, de novo, esse papo de 1990? Sério?” Era uma deixa, tal tipo de comentário, para que ela mostrasse outro talento: o sorriso. Sorria que era uma beleza. E invariavelmente seguia, firme, na prosa. Esse cara da calçada era mais ou menos da idade do pai dela, e fanático pelo mesmo clube. Sentindo o desafio, o malandro não recuou: “Mas a gente jogou nesse estádio, em 1990?” A mulher respondeu que “Sim… E a gente perdeu…” E foi quando ouviu o que precisava, sem saber que era aquilo que precisava: “Ah, é por isso então qu’eu não lembro.”

Categorias
Comportamento Conto Crônica Literatice Sem categoria Umbigada

Contagem regressiva para o festival

Atravessou a rua, sem olhar para os lados. Uma aposta bem pouco prudente, pensou, no ato, mas a torcida do time adversário bloqueava o trânsito, ele sabia; havia um cálculo naquele espasmo de amor-mucho-mucho-loco. O movimento não era a esmo, não. Tirou a camisa suada, como se bastasse aquilo para realizar o sonho do abraço demorado. Estava um pouco bêbado, mas… Mas acreditava merecer aquele encontro com palavras colhidas na hora, fresquinhas. Acreditava num futuro com sorrisos de aprovação. Não qualquer aprovação, mas uma daquelas que a gente alcança já no terceiro trimestre e sugerem vagabundagem de primeira no que resta de ano letivo.

Acertar a entrada da chave, sem olhar para a fechadura era mais difícil do que cruzar a rua. Equilibrar-se para tirar as meias sem precisar apelar para a banqueta, idem. Chegar a uma conclusão sobre a necessidade de novos jatos de desodorante, também. No primeiro lugar da lista de impossibilidades estava “Lembrar em que fase estava a Lua”, então, o negócio era continuar arriscando. Pegou o celular e com cuidado vasculhou o aparelho. O protetor de tela estava quebrado e dificultava as coisas. “Pra que facilitar, né?”, perguntou-se, sabendo que não haveria resposta. “Aposto que ela está por perto. Vou mandar mensagem”, programou-se.

Tinham tomado juntos um café, no dia anterior. E pela primeira vez — ele achava que tinha sido a primeira vez, pelo menos — escolheram docinhos diferentes. “É bom que as diferenças apareçam”, digitou. Mas antes de mandar a mensagem, percebeu que não era aquilo que deveria ser dito num momento regido pelo sonho do abraço demorado. “Porra, maluco, tá de bobeira!?” “Calma, calma…” E aí sim digitou, de uma tacada só, uma daquelas mensagens de tela inteira, em que falava uma coisa, emendava com outra, tentava uma piada e não dizia o que queria de verdade.

“Tropix” estava esparramado no prato do toca-discos. Era como se não tivesse coragem de tirar de lá aquele álbum. “Ela trouxe um disco, cara!” Ninguém sabia, mas, ultimamente, quando precisava de um pico de coragem para fazer ou falar alguma coisa, um dos recursos era colocar aquela bolacha para rodar. Outra possibilidade era apelar para uma dose de Januária, mas, ali, naquela hora, não, era melhor manter alguma sobriedade para o instante do abraço. Precisava de um abraço. Só isso. “Só isso tudo!”, como diziam na época do ensino médio. Alcançou alguma concentração e escreveu: “Muita, muita saudade!”

Toda essa conversinha aí sobre amores líquidos, os fantasmas que o ajudaram a atravessar a rua, a conta que ficou pendurada no bar, o moleque com a camisa do tamanho errado mas do time certo lhe pedindo dinheiro e ele dando. A conversa dos escolados esclarecidos e suas verdades bem arrumadinhas, a banca de jornal que virou tabacaria, essa gente que entende de cervejas e de vinhos e de comidinhas. Por um instante, ficou em dúvida: o botão certo era o de fugir ou o de enviar?

Um scroll-down-sem-fim, um benza-Deus-por-um-rim. O Zé dizendo pra segurar a onda que o sofrimento ia ter fim, Maria concordando e dizendo que sim. Que falta passou a fazer um doce de limão. Como podia um percurso pesar tanto assim? Uma intimidade tão desejada que era como se tivesse sempre existido, uma prova em que dez era a única nota possível. “Vamos almoçar então?” “Vamos. Vamos, sim.”

Categorias
Comportamento Conto Crônica Freudcast Literatice Música

X, quadrado, triângulo, ondinhas, raios

Era alto e gordo, o Comandante. Carregava esse apelido mas era engenheiro, não milico. Do time dos escrotos, sem dúvida, tratado como “doutor” pelos homens que trabalhavam com ele. Tinha sido “presenteado” co’a chance de ser padrinho do Tito, filho do seu empregado mais antigo. “Presenteado” era como dizia a mãe dele, que enxergava naquilo uma chance de aprendizado para o filho. Com o vocabulário fofo dela e um considerável apanhado de orações, rogava por um cabra mais gente fina. Ao longo de 20 anos, o gesto mais carinhoso dele na direção de Tito tinha sido deixar para o garoto o troco que ficou de 300 gramas de salaminho que mandou comprar na padaria do outro lado da avenida. Foi também uma das poucas vezes em que a “plateia” que sempre o cercava deixou de seguir a regra de rir das “graças” que pintavam: naquela ocasião, apostou que o garoto poderia não voltar da missão porque atravessar a avenida era coisa perigosa para uma criança daquela idade.

Aos sábados, aquele escroto vestia uma fantasia de discotecário. Ou quase. Ficava numa parte da sala da casa, onde acumulava discos antigos, a maioria de rock progressivo, e se enlameava naquele repertório. Ninguém o incomodava. Porque não ousariam fazer isso, de um modo geral, e também porque a seleção musical era mesmo bem chata e repetitiva. No Dia do Juízo Final dos Discotecários, se for julgado também nesta categoria, terá garantido um dos lugares na lista de Piores de Todos os Tempos. Voltava sempre às mesmas músicas, aos sábados, entre 14h e 17h. Pode-se dizer que tinha um set bem amarradinho. Gostava de se sentar numa poltrona que ficava perto da janela, e, durante aqueles 18 intermináveis minutos de duração média de cada faixa, fazia de conta que estava pensando. Tinha a mania de vestir-se de preto, nestas ocasiões. O que fez com que uma amiga da mãe — porque ele morava com a mãe — achasse que se tratava de uma assombração. Aconteceu porque ele estava agachado no canto, perto da prateleira onde ficavam os LPs, e ali havia pouca iluminação. Uma pessoa desavisada, embalada por aquela música danada de ruim, poderia ter a impressão de que se tratava de um ser de outro mundo, em vez de um vacilão daqui da Terra mesmo.

Os discos ficavam organizados numa prateleirinha e também num armário. Na prateleirinha, os compactos. No armário, os grandões: de 10 e 12 polegadas. Todos os formatos ficavam abrigados em plásticos novos, que protegiam as capas em que invariavelmente o Comandante escrevia seu nome com esferográfica azul. Era neste detalhe que ele entregava que além de mau DJ era também um colecionador porcalhão. Arrumava os bolachões numa ordem que não era alfabética, mas, sim, de preferência. Da esquerda para a direita, de cima para baixo. O disco que mais ouvia era o primeiro da prateleira de cima. Se algum louco fosse surrupiar uma bolacha dali e pegasse a primeira de cima, estaria levando o disco mais ouvido pelo pior DJ do mundo. Entrar na casa para subtrair dali qualquer coisa seria tarefa não muito simples mas, sim, possível para alguém que conhecesse a rotina de (falta de segurança) daquela condomínio de casas.

O mané quase teve um troço quando pegou o preferidão dos sábados e, ao tirar da capa, deu de cara com uma bolacha marcada por um X que deve ter sido “esculpido” com um bom estilete, canivete ou faca. Chamava a atenção a simetria com que os dois lados do LP tinham sido marcados. Parecia casar direitinho, um X com o outro do lado oposto. O autor da obra deve ter ficado orgulhoso. Mas a reação do Comandante, surpreendentemente, não passou dos olhos arregalados. Manteve o que pode-se chamar de “calma”,  na sequência. Decidiu pegar o segundo disco da fileira e, neste, encontrou riscada de cada lado a figura de um quadrado. Sentou-se na cadeira e lembrou do Tito, que segundo o pai, havia viajado para o Nordeste. “De Niterói para o Nordeste é um pulo grande”, havia pensado, quando ouviu do empregado a informação. Ainda sentado, experimentando aquela sensação completamente nova, não sabia que ainda encontraria nos três discos seguintes figuras geométricas diferentes.

Categorias
Comportamento Crônica Freudcast Literatice Sem categoria Umbigada

Quadro colorido

Foi um diálogo rápido. Mas chamou a atenção porque era um pouco Doce contra Salgado. E Doce contra Salgado mobiliza as pessoas. O “contra” não revelava uma oposição, exatamente, mas talvez uma impossibilidade, ou incapacidade — de ambas as partes — de chegar a um acordo. Porque a opção pelo desacordo criava pelejas como aquela. Durou uma meia-hora. Divertido, às vezes, para quem teve a sorte de acompanhar. Houve até quem fizesse vídeo, sob a promessa de não publicar em lugar nenhum mas, sim, guardar as imagens apenas como… Recordação? Recordação de uma discussão? Big-brothermente falando, fica difícil hoje em dia filmar algo e não publicar, mas a questão ali era o Doce contra o Salgado, então o pessoal soube se concentrar no que importava: nos ensinamentos.

“Você tem 39 anos e nunca entrou num banheiro de Salgado”, perguntou Salgado ao Doce. “Como é que pode isso?” E com o sorriso de quem parecia conhecer segredos do oponente seguiu no ataque: “Banheiro é território de liberdade. Você não precisa ter medo de sair do seu e entrar no do outro…” Foi possível perceber o desconforto com que Doce ouviu aquilo. Parecia saber que se tratava de uma piada. Entendia a provocação, porque era isso, uma provocação, mas não queria perder tempo pesando consequências e atirou: “Você está muito enganado!” Não era só defesa. Era também ataque.

A conversa começou com os dois professores falando de questões estéticas. O que está escrito em banheiros masculinos será parecido com o que fica registrado nos femininos? Tipo isso. “Eu não sei, porque não frequento banheiros masculinos”, declarou a professora, tranquilamente, sem imaginar o ataque que viria em seguida: “Ah, mas vai dizer que você nunca entrou em um?”. Era uma provocação, claro. E talvez entregasse que havia, ou que tivesse havido, entre eles, mais do que uma relação cordial.

Cada um bebeu um gole de cachaça, a bebida disponível, ali, por perto, em copinhos minúsculos e com detalhes que permitiam identificar o que era de quem. Copinhos que pareciam dizer: cuide do que é seu, não do que é dos outros. E era como se Doce e Salgado precisassem também de marcas mais visíveis, para que pudessem entender quem era de quem. Ou melhor: que ninguém era de ninguém. Ver duas pessoas discutindo por uma coisa e perceber que, na verdade, há outros pontos em jogo, é divertido. Pode ser assustador, mas, ali, estava divertido. Ainda bem que existe cachaça.