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Boteco Connection #14 — Luz, câmera… goró e ação!

Que sofrimento, transmitia aquele casal, lá, naquela mesa. Que lavada, a mulher deu no cara. E ele calado.  Ela puxou o que parecia ser toda a história recente do sujeito. Era um daqueles casos em que ninguém precisava se esforçar para ouvir o que estava sendo sussurrado. Roupa suja pode mesmo cheirar mal à beça. Surgiram nomes. Escorreram detalhes . O cara, calado, só garantia que os copos estivessem sempre abastecidos de cerveja. Parecia que um pedido de isqueiro emprestado aliviaria a tensão. O movimento foi feito por alguém que passava, porque ninguém que estava ali perto teria coragem para tanto. Foram seis de 600ml, em pouco mais de meia hora. A virada veio, depois da sétima. “Fala de amor, fala de sentimentos. Eu fiquei lá… A gente combinou. Eu olhava. Vi um cara alto e voltei. Que susto, ali, naquele momento.”

No bar ao lado, um som alto. E um outro personagem, parecendo protagonizar o trailer de outro episódio de “Histórias desgraçadas”. Só podia ser isso que estavam filmando, mas ninguém via as câmeras. A porcaria de música escolhida, ali, não impedia o “público” de enxergar situações. Diante daquela garrafa de cachaça, que ia e vinha, alguém se debruçava sobre o momento que havia sido feita uma importante troca: em vez de amor em migalhas, amor em goles. A garrafa não ficava na mesa, mas não dava para afirmar que era por isso que os goles eram lentos. Apenas ia e vinha, nas mãos de um garçom que parecia querer cumprir corretamente o protocolo de encher o cálice até a beirada, até derramar/escorrer um pouquinho. Dava para apostar que em pouco tempo o bebedor escorregaria da cadeira. Mas não era um programa de apostas. Era uma minissérie sobre amor-lixo ou algo assim. Não era rodriguiano. Era escroto.

Duas meninas pareciam alheias a tudo. Tinham aparência de muito novas e devem, provavelmente, ter que mostrar os documentos para comprovar que estão na idade de consumir álcool. A pitada de terror da filmagem se deu com estas duas. Foram abordadas por um homem em situação de rua: grande e parrudo, com calça Adidas preta bem justa e uma camiseta verde. O que assustava nele era o tamanho. Parou em frente às meninas e deu para entender que se referiu a uma delas chamando-a de Teresa. Ele levou a mão direita ao próprio peito, quando abordou a duas, como se estivesse se desculpando pelo inconveniente. Teresa estava preparando um cigarro. É, um cigarro desses que a gente enrola com tabaco, pondo um filtro para reduzir danos, e acende fazendo pose de quem não está se matando… Depois do amor em migalhas e do amor em goles, surgiria, então, o amor em baforadas. Ela olhou para aquela com quem dividia a mesa, como que pedindo aprovação, e ofereceu o cigarro ao homem. Ele aceitou. As duas pegaram então suas latinhas, encostaram uma na outra, provavelmente sem conseguir com isso provocar nenhum tim-tim, e saborearam longos goles.

Num terceiro pico, estavam dois homens. Cada um com um celular, porque não dá para imaginar o mesmo aparelho para duas pessoas, né? Com boa vontade, era possível engolir o que os roteiristas queriam empurrar para a galera: o amor em kkkk. Parecia ser o tipo que termina mesmo mais rápido.

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Ghibli: Dez! Nota dez

Fogo. Fogos. Gente correndo. Bichos falando e impondo desafios. Sapos que se empilham e, em segundos, são capazes de encobrir um moleque. Periquitos afiando facas. Questões amorosas escorrendo por todo lado. Portais entre mundos/dimensões diferentes. Momentos de silêncio. Momentos de silêncio? Se não fossem estes instantes em que quase se conseguia ouvir a respiração da pessoa na poltrona ao lado, a gente poderia estar fazendo uma alusão à folia de Momo, que, apesar dos avisos do calendário, ainda se faz presente na cidade. Mas é melhor do que isso: o negócio é a pré-estréia de “O menino e a garça”, filme de Hayao Miyazaki — a.k.a. Studio Ghibli. Lançada no Japão, em julho de 2023,  a animação chega agora a esta parte do globo.

Após um início já muito intenso, é possível pensar que o filme deve estar na prateleira em que ficam coisas para adultos. Tem morte. Tem guerra. Mas tanto o menino Mahito revela-se um homenzinho corajoso, capaz de lidar com questões “de outro mundo”, quanto, no decorrer da fita, a sucessão de “loucuras” garante sorrisos e ruídos de satisfação à plateia mesmo que ela seja bem heterogênea. O filme é uma adaptação de “How do you live?”, história de Genzaburo Yoshino que o Google informa ter sido publicada pela primeira vez em 1937.

Em duas horas e quatro minutos, o público fica assombrado com detalhes que — não há como evitar — trazem à lembrança os maravilhosos “Ponyo: Uma amizade que veio do mar” (2008), “O castelo animado” (2004) e “Meu amigo Totoro” (1988). Numa brincadeira/tentativa de fazer associações com outras histórias, não é difícil comparar sete senhorinhas com os anões da Branca de Neve. Os prazeres visuais, isto é, os lugares aonde Miyazaki pode te levar dependem um pouco, claro, da tua capacidade de associar as imagens que ele apresenta com referências que já existem. A tal da tua bagagem. Mas mesmo os menos iniciados no circuito da realidade fantástica animada podem ficar atônitos com todo aquele surrealismo-pouco-é-bobagem.

Vale investir num ingresso para ter esta experiência numa sala escura com uma tela gigante lá na frente. Enquanto os celulares não destroem também isto. Ao mostrar gente velha, sopas sendo preparadas, animais, lama e personagens construídos com traços de dor, rigidez e nobreza, Miyazaki como que convida a um exercício de mergulho interno e de resistência. E quando parece que vamos ficar no conforto do entendimento, flertar com um happy end bem explicadinho, o que se ganha é um tapa na cara, seguido pelos créditos.

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Codinome Dondoca

Se você é duma geração que teve a sorte de assistir ao “Agente 86”, deve lembrar de quando no seriado Maxwell Smart, aquele do sapatofone, recomendava ao Chefe o uso do Cone do Silêncio. Era um dos melhores momentos dos dois. O ator Don Adams nasceu para aquele papel, o de espião do Controle. O nome da agência deles era Controle. O Chefe, vivido por Edward Platt, ficava doido, quando Max sugeria o Cone para que tratassem de algum assunto sério. Era o protocolo, mas o Chefe sabia que o dispositivo não funcionava bem. Eles gritavam, dentro daquele troço, e não se entendiam. Era como se o Cone do Silêncio fizesse justamente o contrário do que deveria: em vez de proteger uma conversa, fazia com que ela fosse revelada ao mundo. Mais ou menos como um aparelho de celular pode fazer, hoje em dia.

Pode, sim. Olha só. A moça começou falando tranquilamente, mas parecia querer manter livres as mãos. Para poder beber sua água mineral gasosa cara, brincar com o cachorro que a acompanhava, mexer toda hora no cabelo na tentativa de impedir a ação do vento que teimava em deixá-la despenteada… Sabe-se lá. Ela então fez com que o aparelho funcionasse no modo viva-voz. Isso, depois de aparentemente encontrar já, antes, certa dificuldade para ouvir e ser ouvida pela pessoa que estava do outro lado da linha. Antes do modo viva-voz, ela tentou o esquema de encostar/grudar no ouvido a borda menor do retangulozinho mágico. Como se fosse inserir o aparelho na cabeça, através da orelha. Não rolou.

Era cedo, ainda, mas já se podia ver na rua outras pessoas, também com seus cachorros e garrafinhas de água, além, claro, de seus próprios e maravilhosos retangulozinhos mágicos. Se havia ali algum sortudo da Era Maxwell Smart, certamente lembrou do Cone do Silêncio. Como que para manter o clima de agência de espionagem, nasceu naquele momento um codinome: Dondoca. Melhor: Dondoca Smart.

A Dondoca Smart falava quase aos berros, mas mantendo o que se podia chamar de “elegância”. O vento e a garrafinha verde de vidro contribuíam. A missão revelada por ela era ajudar a organizar a festa de aniversário da avó. Soubemos logo em seguida que a coisa toda acontecerá em Brasília, para onde irão primos, primas, tios. Não se falou em cunhados ou cunhadas. Vai ser em outubro. E “vai ter até ministro”. Se alguém da Caos — a agência rival/inimiga do Controle — estivesse ali, teria pescado informações preciosas.

Outra grande questão que se apresentou foi sobre a hospedagem daquela parentada toda. Foi nesse momento que a Dondoca Smart entregou um ponto fraco. Preocupava-se com o conforto das pessoas mais velhas. Pelo menos de uma. Isso ficou claro porque, ao falar do assunto, debruçada sobre o retangulozinho mágico que repousava naquela mesa de concreto, numa praça pública, insistiu com firmeza: “Tem que ver onde a tia Gertrudes vai dormir. Tem que ver onde a tia Gertrudes vai dormir. Tem que ver onde a tia Gertrudes vai dormir.” Alvo fácil para o Caos, quer dizer, a Caos. Uma Dondoca Smart não pode dar aquele “mole” todo.

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O sobrevivente

Nas imortais palavras de Wander Wildner, “Boa sorte, boa morte”. É assim que o sempre-Replicante, atual punk-brega, ícone-ídolo dos corações revoltados de outrora e agora porta-voz de suspirantes-crentes-no-amor terminava “Boa morte”, faixa da sensacional fitinha do grupo Sangue Sujo (da época em que WW era mais “só punk mesmo”). O cassete morreu, mas, por sorte, podemos usar o YouTube para comprovar a existência da máxima. Sorte? Morte? Palavras que, claro, não surgem à toa. Confissões chorosas que podem, sei lá, saltar duma mesa bem ao lado, são capazes de anunciar que o fim está próximo. E no fim das contas — como também diz a letra — “Um dia qualquer no fim das contas você vai morrer”.

Rebobinando ainda mais, e ainda mantendo a atenção ao que vaza da conversa na vizinhança, o escriba revive/constata o drama de Aloisio Dantas, ou Alolô, como zoavam os amigos antes de jogarem pra cima dele o terrível Já-Morreu. Ah, nada como uma reunião de amigos de colégio (suspiro) para conseguir inspiração. Como cresce um garoto, depois de ganhar um apelido assim? Naquela época, não chamavam isso de bullying. Era só sacanagem mesmo. Talvez por isso tenhamos nos transformado num país campeão na formação de psicólogos. O curso atualmente é dos mais procurados, como apontou uma edição da ainda — e surpreendentemente — viva “Folha de S. Paulo”.

Sermos campeões no número de dentistas não fez de nós, ao longo de décadas passadas, uma nação menos boca-suja. Vamos ver o que o pessoal da Psicologia vai conseguir, nas próximas eras. Se serão capazes de ajudar a gente a lidar melhor com a inevitabilidade do Fim. Ou, o que já pode ser um grande adianto, a aproveitar as pequenas mortes. Como no francês, sabe? Pequena morte, sacou? Sacou?

Vestir o paletó de madeira virou assunto banal. Há para isso a contribuição do jornalismo-lixo dos programas televisivos de depois do almoço. A gente diz “jornalismo-lixo” porque o jornalismo mais romântico não sobreviveu para ser/manter-se fã de Wander Wildner. Morreu faz tempo, o pobre coitado. A morte parece hoje tão líquida quanto as relações. Não vão achar absurdo, daqui a um tempo, escolher quem vai morrer através de um aplicativo. Se as pessoas escolhem seus pares passando dedos em telas de telefone, daí para usarem o mesmo método para apontarem quem irá desta para melhor é um pulo. Quer dizer, um clique. No século passado, o Schwarza — eita cara bom de matar gente na grande tela — protagonizou um filme em que um troço mais ou menos assim acontecia num show de TV. Qualquer semelhança com os programas de hoje em dia depois do almoço não é mera coincidência.

É claro que a Inteligêntsia sempre vai poder bater no peito bronzeado e eventualmente bem agasalhado para dizer que a Morte faz parte do jogo. Ah, a Inteligêntsia e seu desprendimento. Ah, a Inteligêntsia e suas referências. Vão dar um jeito de desenterrar “O sétimo selo”. Se bem que vão tirar isso do grande caixão da História mas, apesar de — OK — ser uma grande fita, quem é que vai ter paciência de assistir ao que fez o Bergman, hoje em dia, para depois discutir a respeito? Isso morreu! Nem os psicanalistas fazem mais isso.

Ninguém vai ficar pra semente, como garante a tiazinha do bar, enquanto faz pular as chapinhas dos litrões que os eternos estudantes pediram para a nova rodada de ressurreições. Depois de amanhã, ela diz, com cara séria, “é aniversário de morte da minha irmã”. Um momento de silêncio. E alguém levanta um brinde em homenagem a dona Marli. Beber para jogar Luz no caminho de alguém. Taí. Uma hora alguém ia achar uma coisa boa pra fazer com essa história toda de Morte. Saúde!

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Formigamento

Um passeio pela praça. Crianças brincando. Ninguém parecendo ligar para a promessa de chuva. Nenhum ambulante vendendo cerveja. Cachorros que chegam perto, atraídos sabe-se lá pelo quê — a ponto de pegar as bolinhas que os donos jogavam para, na volta, perderem o rumo. Como se a recompensa tivesse mudado de lugar. Os pombos davam uma trégua, até porque não havia nenhuma migalha por perto. Não era uma tarde de restos. Era sim um pico, um pontinho de intensidade. Talvez no plural mesmo: in-ten-si-da-des. Uma praça é uma promessa.

A história da senhorinha do prédio branco de janelas azuis é a seguinte: ela morava ali com o marido. Foi por décadas o endereço deles. E parece ainda ser, mesmo que nenhum dos dois esteja mais por lá. As janelas daquele andar revelam-se as mais desbotadas, como se há muito não fossem acariciadas com tinta nova. Janelas fechadas-fechadas-mesmo, não como as outras em que o pessoal parece se contentar em se esconder atrás de vidros. Contam que o casal de velhinhos ia sempre à feira que rola ali perto, aos domingos.

As formigas ensaiam uma mobilização. Como se estivessem estudando desenho. Figurativo mesmo, o negócio. Formigas inteligentes. Terão sido inventadas, na última hora, elas, e já estavam tomando conta de Copacabana? Estarão aliadas aos cachorros, naqueles desvios de comportamento? Será que estes bichos riem, agora entendendo a estranheza que provocam na gente que fica sentada se beijando, alheia a tudo, celebrando um amor que parece o mais intenso de todos? De todos os tempos.

Terão os bichos respostas sobre o futuro ou será que estão limitados aos desenhos que parecem capazes de fascinar um estudante do Parque Lage? Um colecionador investiria algum trocado naquilo? Talvez depois de pesquisar quanto tempo vive uma formiga e calcular como será a produção anual da turma daquela área. Um vento fresco surge para espantar as contas e evidenciar o calor. Um sopro que gela um pouco o suor e espalha cheiros doces. Gente vendendo amendoim, ali perto, amendoim doce, contribui com o adoçamento. A pergunta passa a ser sobre a influência que aquele cheiro pode ter sobre a produção artística das formigas. O espetáculo parece continuar só com as formigas, porque depois de um tempo os cachorros deixam claro que se cansam logo.

Somos todos formigamentos, organizadinhos em nossos sonhos de desenhos. Crianças num cercadinho misturando suor e poeira, vendedores de estalinhos e outros brinquedos num quadrado que deve ter sido definido pelos coronéis das redondezas, bancos convidativos com espaço para cinco mas sendo usados invariavelmente por dois caras. Um casal. Tem alguma coisa acontecendo, ali…

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O herói da estação

Um estêncil “incômodo” com o qual a gente precisou se acostumar a conviver é o “Não desvie o olhar”. Um desagrado bom/necessário, nos dias de hoje, parecendo pretender convidar ao pensamento crítico. De um modo geral, fica(va) em postes, na parte baixa, rente à rua. Como que numa alusão à população que rasteja também ali naquela altura. Eles, os pedintes. Pessoas em “situação de rua”, como dizem. Quando A. parou na esquina, naquela sexta, estava perto de um daqueles sinais. Pensava na Primavera, sobre a qual tinha ouvido muita gente falar, naquelas últimas horas. Era o primeiro dia da estação. Estava avexado, mesmo antes de encarar a sentença pintada em azul. Não queria ler. Queria ser lido. Chegou a imaginar que, talvez por isso, para se mostrar, estivesse parado, ali naquele cruzamento. Mas não teve jeito: foi incapaz de fingir que não viu.

Tinha aprendido que ficar parado numa esquina representa risco. O ensinamento viera de um policial, anos antes. O sujeito disparou num bar algo do tipo “O cara fardado não pode ficar de bobeira, pra não virar alvo”, e, mesmo sem farda, fez todo mundo ali entender que estava diante de um prisioneiro de uma daquelas roupas. Quase todo mundo fingiu que não ouviu. Um flash silencioso e nada mais, foi o que aconteceu. A bebida é mesmo um ótimo entretenimento, às vezes. Mas o bagulho ainda ecoava nas entranhas de A., anos depois. “Porra, cadê as flores?”, reclamava, ali, parado, sem conseguir decidir se estava mais amolodado com as lembranças ou com a frase na grande estaca de concreto. Fingir, isto é, representar não era assim tão fácil.

Parecia ter chegado a hora de tornar mesmo aquele momento um troço mais cinematográfico. Como? Acendendo um cigarro. “Mesmo sem Zippo, funcionou”, concluiu, rindo sozinho, quando uma mulher parou e pediu informação sobre uma rua. Sentiu-se, aí, sim, um ator num filme. Era como se naquele momento a Primavera tivesse finalmente começado para ele. Respirou como um herói: preocupado com o pessoal jogado nas calçadas, conhecedor dos nome das ruas da vizinhança, com a camisa bem passada. Ah, sim: calculou um movimento para ajeitar a roupa. “Herói tem que ser um pouco vaidoso”, desculpou-se, num cálculo-pensamento na velocidade da luz. Ouviu um bem-te-vi. E, ainda com aquela aceleração impressionante, rimou com quero-te-ouvir. “Ela quer me ouvir, é isso que ela quer…”, falou, deixando confusa a interlocutora que, com olhos um pouco arregalados, apressou o passo e saiu daquela cena.

Desconcertado, A. olhou em volta. Não sabia bem o que estava procurando. Era como se o silêncio o isolasse. Pensava em por que os carros tinham parado de fazer barulho. Tentava entender como as crianças jogando bola do outro lado da rua conseguiam fazer aquilo em silêncio absoluto. Teve medo de perder os super-poderes. Olhava para todos os cantos, como que num daqueles passatempos de antigamente, o Jogo dos Sete Erros. Foi quando viu uma mulher e duas crianças, protegidas por uma marquise de prédio. “Porra”, soltou alto, colocando a mão no bolso enquanto ainda não estava completamente certo do que dar a eles como almoço. Não queria perguntar. Ia fazer surpresa. O bem-te-vi de novo cantou, naquele instante, e meio que confirmou que como herói era aquilo mesmo que A. deveria fazer.

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Minguante

Os balcões dão à gente a chance de ouvir muita coisa. Tem muita bobagem. Mas conte também com razoáveis lições de vida. E piadas. De todos os tipos, sendo que a maioria não é razoável, se é que se pode mesmo esperar isso de um chiste. Dava para dispensar as chatices tipo as do pessoal que reclama dos pedintes que “daqui a pouco vão ter máquina de cartão para tirar dinheiro nosso”. Dava também para não ter assim tantas baratas na calçada, porque, ao contrário dos balcões, elas rendem mais gritinhos histéricos do que ensinamentos. Além de quase invariavelmente piorarem o carma da rapaziada que se vale de pesados calçados na condução de esmagamentos atabalhoados e bem pouco cinematográficos.

“É, a gente brigou. É sempre assim, a senhora sabe”, choraminga a moça que, parecendo exausta,  desaba debruçada sobre uma mochila, duas sacolas de mercado e uma quarta bolsa que parece mais pesada do que todas as três primeiras juntas. Quase um acampamento. Ela reclama do marido, numa ladainha que pelo sorriso — debochado? desdenhoso? — a atendente parece reconhecer. E como que para eleger a noite como definitivamente apropriada para a piora dos carmas dos presentes, aquela-que-dá-cervejas-a-quem-pede-desde-que-pague-na-hora coloca uma pilha bem errada: estimula a falação da cliente sofredora. Sob os olhares desaprovadores de todos os outros presentes, que chegam a oito cabeças, porque é um balcão comprido, a reza se estende por uns bons 15 segundos. E, de repente, como acontece nos balcões, o pessoal conseguimos a liberdade, fugindo completamente daquele teaser de novela mexicana.

Nada contra as tramas televisivas daquela nacionalidade. Estão repletas de ensinamentos, assim sem aspas mesmo, e assim como os balcões. Quando acontece de os dois universos se misturarem, aí, olha, aí é um prêmio na loteria. Uma chance de lidar melhor com o desembrulhar do carma. Quer coisa melhor do que perceber o incômodo na voz de um intelectual cachaceiro? Ah, sim, o capítulo que estava em andamento: o beberrão seboso se incomoda com  os movimentos de um outro que, rapidamente, consegue embrenhar-se na prosa de duas moças. Elas, além de darem trela, dão sorrisos, o número do WApp, aceitam cervejas, cobrem de elogios a empadinha já famosa que toparam também como mimo e… E está mexicanizada, a novela do bar. Olhares dos quais escorrem ódios. Falas que desenterram problemáticas antigas. Espetáculos assim não são pra qualquer um. Quem ficou atento ao início mal pode esperar pelas próximas cenas. A noite naquela calçada úmida promete ser quente. O pico deve ficar árido.

Quem está sob a luz da lua, que naquela noite de dança dos agravamentos cármicos é por acaso minguante, tem a chance de perceber a Fiscalização se aproximando. Geral parece saber que é assim, com maiúsculas, que aquele pessoal uniformizado gosta de ser tratado. É quando há uma união, mesmo que rápida, entre o pessoal que acha que está enricando além da conta o dono do bar. Há temor, além de um inexplicável desejo de desafiar a Lei. Referem-se à Lei, assim, com maiúscula, mas com dúvida. E isso aumenta o desejo de pagar para ver. Ainda mais que quem vai pagar mais caro, no fim de tudo, é o proprietário do estabelecimento. Ele preferia que a “brincadeira” ficasse só na questão do carma. Mas nem sempre é assim.

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Segundo tempo

Teve sorte: conseguiu parar o carro bem em frente à casa do maluco. Deu uma ajeitada no banco, mexeu nos espelhos e só depois disso tudo mandou uma mensagem, para dizer que já estava lá. Tinha tempo. Enquanto escrevia, e graças aos ajustes que havia feito no assento, percebeu que em volta dava para contar três outros veículos brancos estacionados por perto. Era difícil manter a concentração para digitar frases; preferia mensagens de voz. Por um momento, sorriu, pensando que o amigo talvez tivesse dificuldade para encontrá-lo, quando descesse com o pen-drive. Estava ali para resgatar arquivos importantes, mas não havia mal nenhum em dar umas risadas vendo o Porco indeciso sobre que direção tomar.

Eles se tratavam assim. Um era o Porco. O outro, Animal. Morricone, Banhão, Cezinha, Rocky e Arrombado completavam o time. Ninguém era bom de futebol. Com o Arrombado, era um problema, porque era um apelido/termo que usavam também como tratamento de um modo geral e ainda para demonstrar “carinho”. Era comum ouvir coisas do tipo “E aí, arrombado?” ou “Eu te amo, arrombado”.  Eram manés carinhosos. Tinha de tudo: os que não acreditavam mais em Direita e Esquerda e os que sentiam saudade da época em que se ensaiava uma revolução qualquer. Com os apelidos, sentiam-se num universo tarantinesco. Percebiam-se adolescentes. Havia inclusive quem se sentisse mais “macho”, caso do Rocky, e por conta disso os amigos precisavam tomar conta dele quando o encontro era em algum boteco e bebiam demais.

“Para encontrar diversão, você precisa estar disposto a encontrar diversão.” Foi disso que o Arrombado lembrou quando o Porco apareceu, de repente, quase lhe dando um susto, sem-querer-querendo. E aí, por cinco segundos, o abençoado-que-usa-o-veículo-da-firma sentiu-se um sujeito de sorte. Não tivera a chance de testemunhar o amigo perdido entre os vários carros brandos da área, mas a gargalhada havia chegado, anyway, com aquele quase-susto. Naquele parêntese, ali, sentiu-se um homem de sorte, por conseguir rir. As pessoas de um modo geral não andavam rindo muito. O Arrombado gostava de sentir-se alguém “fora da curva”.

“E aí, viu o filme?” “Vi, cara, e porra achei muito maneiro.” “A ideia era essa. A mina curtiu?” “Porra, supercurtiu.” “A ideia era essa.” “Quando é que a gente vai beber uma cerveja?” “Porra, tá foda esse negócio de conseguir parar pra beber uma cerveja.” “O amigo até tem conseguido de vez em quando sair cedo do trampo, né? Maneiro, isso.” Houve um momento de silêncio. Sempre havia. Parece até que esperavam por isso. E também como sempre acontecia um dos dois falou: “Porra, cara, eu te amo. É sempre um prazer ver o amigo.” Combinaram cerveja, acertaram churrasco, sacanearam o Morricone, reclamaram da mulher do Rocky. Repetiram a declaração de amor e se despediram, satisfeitos pra caramba com aquela meia-dúzia de bobagens que haviam dito um pro outro.

Quando o Arrombado ligou o carro para embicar na direção do Méier, percebeu um barulho estranho. Trabalhava com aquilo, com barulhos estranhos, e ficou feliz por ter aquela habilidade/sensibilidade. Desligou de novo o motor. Desta vez, não arrumou o banco para digitar a mensagem, que seria para a patroa. Estava treinando mensagens de texto. Queria avisá-la do problema na carroça da empresa, porque aquilo significava que, no finde, talvez não fossem viajar. Meio que para compensar, avisou que levaria um galetinho e cervejas bem geladas compradas na Marlene. Não queria confusão com a patroa. Não tinha tempo para isso.

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Magnéticas

Tinha 13 anos e quando percebeu que acreditava que seguir as pessoas certas pod(er)ia “dar dinheiro, um dia”, no Grande Jogo. Estava com a razão. Aos 31, tinha um carro que era o mais caro da vizinhança. E era uma vizinhança fresca, vale dizer, não a região miserável onde havia passado a infância e a adolescência de cara para o computador, aquele único grande luxo a que tivera certo acesso. Estava satisfeito por conseguir seguir as pessoas certas. Sentia aquilo como um dom. Dom dom mesmo, não dom de domingo.

Começaram a inventar um monte de coisa. Cada coisa… Precisavam criar, inventar. Era o jeito. Jeito de quê? De fazer o cascalho circular. Assim, rolou de os engravatados — porque estávamos numa nação de pessoas apaixonadas por gravatas e engravatados — criarem/flexibilizarem regras que transformariam milhões de seguidores em milhões de pingadores-contribuintes. Começar a seguir alguém na hora certa podia fazer de um adolescente de Rox Mix um playba com bala n’agulha.

Havia quem acreditasse que aquilo era uma nova onda de Young Urban Professionals, que outrora haviam sido enquadrados como Yuppies. Ums cusparada para o alto. O pombo que nasceu para acabar com a alegria do bancário na hora do almoço. Tem “Yupicide” escrito num encarte qualquer de uma banda californiana de punk rock. E aí o moleque percebeu que tinha um “talento” para ir atrás de, sei lá, rappers que um dia se transformariam em sucessos-fenômenos de massa. E modelos. E jogadores de futebol. Imagina ser o “dono” de cadeiras na primeira fila de estádios virtuais. Estava nos filmes de antigamente: lugares em estádios são bens preciosos.

Chegaram ao cúmulo de vender posições. Quanto cascalho rolando. Vender posições? É, vender posições. Se você é o centésimo mané, digo, investidor-cidadão a clicar naquele botão, pode ser que, dali a algum tempo, quando outras 37 milhões de pessoas tiverem feito o mesmo, aquela posição no ranking valha algum cascalho. Porque vira ranking. É como pagar mais para ter um bom lugar no estádio em que aquela celebridade vai aparecer. Quase isso mesmo.

Andava pensando em alianças. Carregava na cabeça a frase que havia lido, fazendo alusão às posses de um jogador de futebol. “O cara carrega um apartamento nos dedos.” “Que dinheirinho bom, hein, hein?” Joias. Queria ter joias. Tinha seguidores. Seguia e era seguido. Na “humildade”. Estava no caminho certo. Joinhas.

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Em nome de Lynch e Maradona: amém

Se tem uma grande sacanagem que o PPP fez foi emporcalhar o “conceito” de oração. PPP, você sabe, é o Projeto Pentecostal de Poder. Letras bastante razoáveis, estas, né: não sustentam nenhum palavrão e deixam bem claro o que há por trás (e pela frente, e de ladinho) daquela Igreja. Igreja contra Igreja é uma equação que soa beeem velha. Mas por que falar de oração, então? Por causa do Maradona, que nos deixou. E por conta dos vídeos do David Lynch.

Teve um Argentino, o Emi, que frequenta um bar ali de Laranjeiras, que chorou e tudo. Não foi zoado por nenhum de seus compadres de copo. Todos foram solidários. Ali tinha/era, claro, entre muitas coisas, uma celebração da macheza, defensores do pinto como centro do mundo sendo bróders uns dos outros. A despeito dos vômitos que isso possa ter causado nas feministas da área, foi fofo, foi o reconhecimento, a celebração da “obra” de um cara que fez bonito na sua passagem por aqui. Vacilou, claro. Mas mandou bem e tirou uma onda que muito verde-e-amarelo-aí-do-futebol jamais conseguirá. Maradona tinha tutano. Talvez isso deixe o adeus mais doloroso. O tutano do mundo parece que está mesmo super-acabando.

Oração, segundo o google-cionário é um “ato religioso que visa ativar uma ligação, uma conversa, um pedido, um agradecimento”. A explicação fala também num “ser transcendente e divino”, mas é possível “entender” o bagulho como um todo sem chegar até aí. Gritar “Gol!” é uma oração, num certo sentido, porque é uma celebração extremamente positiva, um momento de superação de todos os perrengues. Ou pelo menos de muitos perrengues.

Há a oração de todo mundo, talvez corriqueira, mas mesmo assim “necessária”. E há a de cada um. Pelo menos, pode haver. Ah, pode. No mesmo boteco que o Emi frequenta, alguém sempre deixa, no balcão, uns brinquedinhos feitos de papel. Aquilo que antigamente chamavam de Origami. Um destes brinquedinhos invariavelmente gera comentários: o Tsuru. Aquele pássaro, tão ligados? Há quem acredite que mil, isso mesmo, fazer mil Tsurus meio que equivale a uma oração.

Outra coisa que parece ser um equivalente do exercício de “ligação” são os vídeos diários do David Lynch. Ele quase que invariavelmente fala sobre o tempo em Los Angeles, emendando isso com um comentário sobre a cultura americana. Tipo uma crônica-oração. Você até pode achar importante saber há quanto tempo  uma pessoa faz orações. Pode surgir a pergunta sobre quantos vídeos Mr. Lynch já fez e se é por isso, por talvez ter passado dos mil, que a brincadeira pode ser considerada uma oração. Não é bem por isso. É por ser uma rotina, diária, que estabelece uma ligação entre ele e seus “seguidores”. Também neste caso, é possível ficar com uma explicação/retórica que não chegue até a discussão do “ser transcendente e divino”.

Estes vídeos são os Tsurus do senhor David Lynch. Hoje, o escriba que vos digita teve a chance de presentear o tiozinho cineasta com o milésito polegar-pra-cima do dia. Se ele orou por isso, conseguiu. Há orações diferentes. Há rezas diferentes. Há até quem fale em “rezo”, em vez de “reza”, o que chega a ser surpreendente nesta época de “feminização forçada” da Língua. Mas isso é outra ladainha. Ninguém (aqui) disse/diz que você deve restringir-se a uma única oração. Lynch, por exemplo, faz também regularmente um (outro modelo de) vídeo, no qual sorteia números. Mas isso aí também é outra ladainha.