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Formigamento

Um passeio pela praça. Crianças brincando. Ninguém parecendo ligar para a promessa de chuva. Nenhum ambulante vendendo cerveja. Cachorros que chegam perto, atraídos sabe-se lá pelo quê — a ponto de pegar as bolinhas que os donos jogavam para, na volta, perderem o rumo. Como se a recompensa tivesse mudado de lugar. Os pombos davam uma trégua, até porque não havia nenhuma migalha por perto. Não era uma tarde de restos. Era sim um pico, um pontinho de intensidade. Talvez no plural mesmo: in-ten-si-da-des. Uma praça é uma promessa.

A história da senhorinha do prédio branco de janelas azuis é a seguinte: ela morava ali com o marido. Foi por décadas o endereço deles. E parece ainda ser, mesmo que nenhum dos dois esteja mais por lá. As janelas daquele andar revelam-se as mais desbotadas, como se há muito não fossem acariciadas com tinta nova. Janelas fechadas-fechadas-mesmo, não como as outras em que o pessoal parece se contentar em se esconder atrás de vidros. Contam que o casal de velhinhos ia sempre à feira que rola ali perto, aos domingos.

As formigas ensaiam uma mobilização. Como se estivessem estudando desenho. Figurativo mesmo, o negócio. Formigas inteligentes. Terão sido inventadas, na última hora, elas, e já estavam tomando conta de Copacabana? Estarão aliadas aos cachorros, naqueles desvios de comportamento? Será que estes bichos riem, agora entendendo a estranheza que provocam na gente que fica sentada se beijando, alheia a tudo, celebrando um amor que parece o mais intenso de todos? De todos os tempos.

Terão os bichos respostas sobre o futuro ou será que estão limitados aos desenhos que parecem capazes de fascinar um estudante do Parque Lage? Um colecionador investiria algum trocado naquilo? Talvez depois de pesquisar quanto tempo vive uma formiga e calcular como será a produção anual da turma daquela área. Um vento fresco surge para espantar as contas e evidenciar o calor. Um sopro que gela um pouco o suor e espalha cheiros doces. Gente vendendo amendoim, ali perto, amendoim doce, contribui com o adoçamento. A pergunta passa a ser sobre a influência que aquele cheiro pode ter sobre a produção artística das formigas. O espetáculo parece continuar só com as formigas, porque depois de um tempo os cachorros deixam claro que se cansam logo.

Somos todos formigamentos, organizadinhos em nossos sonhos de desenhos. Crianças num cercadinho misturando suor e poeira, vendedores de estalinhos e outros brinquedos num quadrado que deve ter sido definido pelos coronéis das redondezas, bancos convidativos com espaço para cinco mas sendo usados invariavelmente por dois caras. Um casal. Tem alguma coisa acontecendo, ali…

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Arte Desenho Lowbrow Paulo-Coelhismo Quadrinhos XXX

@monteiro4852 #31

Primeira Pata-Maravilha do ano. Ou Wonder-Duck, if you wish. Ano Novo nessa joça. Esperando pela vacina, pelo Amor, por um novo pastel de siri. Com paciência. Esperando, esperando, esperando.

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Conto Literatice

Bem, às vezes…

“Tá pronta, filha?” O pai fez a pergunta, certo de que a resposta seria o costumeiro “Peraí, por favor…” mas não chegou a ficar surpreso quando em vez disso ganhou ligeiro um “Vamos lá”. Saíram com mochilas, a menina de 7 anos com uma bem pequena, que era num formato de pandinha, e o chefe da família com uma grandona, de armação, antiga, da qual ele se orgulhava. Tinha pensado em desistir daquela mochila, porque ela era camuflada e trazia num dos lados uma bandeirinha do Brasil. Levavam também dois cases, sendo que um era para manter frios alguns dos alimentos que seriam consumidos, durante o fim de semana. Fazia friozinho, naquela sexta.

“Vai ser legal, né, papai?” Ele sorriu e respondeu que sim, enquanto arrumava no carro todas as coisas. “Mas precisa paciência, porque viagem, você sabe: às vezes, é árvore; às vezes, é cidade; às vezes, é vaca; às vezes, é fio; às vezes, não tem fio…” A menina sorriu o melhor sorriso daquela manhã, e revelou resíduos de pão francês entre os dentinhos da frente. O pai percebeu e ligou o botão da voz firme para dizer que eles precisariam voltar para o apartamento, para que a pequena escovasse os dentes, coisa que ela não tinha mesmo feito.

Já na estrada, a garota ocupava seu lugar na parte de trás do 4×4, e se divertia com um pacote de biscoitos de queijo. O pai caçava o olharzinho dela pelo espelho e ficava pensando se haveria algum problema com os dentes da filha, já que ela não parava de comer e ele precisava ficar toda hora lembrando da escovação… Tinha aprendido fazia pouco tempo a não deixar que pensamentos assim o levassem para um poço escuro, tomado por água-raiva, onde encontrava a ex-mulher e se afogava com ela em discussões sobre o valor da pensão.

“Às vezes, é o aluguel; às vezes, um extra pro dentista; às vezes, uniforme novo; às vezes, dentista… Porra, tem essa porra de dentista…”, deixou escapar, deixou escapar bem, com um tom de voz que foi crescendo. Se tivesse parado no aluguel, a menina não o teria ouvido. Mas ela ouviu. Sorte dele, porque a resposta para aquele momento de cólera, foi o melhor dos antídotos: “Eu te amo super ultra big mega power infinito, papai… Estou muito feliz de ir viajar com você. Acho que eu vou amar o acampamento…” Ele sorriu e explicou: “Não vai ser bem acampamento, dessa vez. Tem que ser aos poucos, porque eu sou cascudo mas você, não. Com o tempo, a gente vai acampar, perto das praias, perto dos rios, e aí vai ser muito, muito legal. Mas por enquanto a gente vai ficar numa cabana. E vai ter lareira, vai ser muito legal, a gente vai brincar de acender fogueira…”

Pararam num posto, para abastecer, e também porque precisavam comer alguma coisa. Quem sabe a menina poderia escovar os dentes, coisa que acalmaria muito o pai. “Porra, tem essa porra de dentista…” O frentista vestia por baixo do macacão a camisa de um time de futebol que era justamente a agremiação pela qual pai e filha não tinham muita simpatia. “Ih, papai, olha a camisa dele…” “Pois é, filha… Deixa pra lá…” Por algum motivo, o pai deu cinco pratas de gorjeta ao rapaz que limpou o para-brisa, colocou água nos lugares em que era preciso colocar água, reabasteceu o veículo, sorriu um sorriso meio amarelo mas que não deixava de ser sorriso. Ficou satisfeito, ele, por ter dado aquelas cinco pratas. Sorriu um sorriso que também era meio amarelo, antes de seguir com a menina para a lanchonete incrustada ao posto.

Era um daqueles lugares onde você pega um cartão magnético em que são registrados os produtos consumidos. A pequena quis um cartão só para ela, mesmo depois de a moça da entrada ter dito que “Criança pode registrar tudo no cartão do pai, e é bom que aí o pai paga…” Depois de sorrir um sorriso meio amarelo, diante da frase da moça, a menina sorriu um sorriso mais de verdade para o pai e começou a conversa que duraria todo o tempo que eles passariam ali dentro: “Viagem, às vezes, é árvore; às vezes, é cidade; às vezes, é vaca; às vezes, é fio; às vezes, não tem fio… Né, papai?”

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Comportamento Crônica Música XXX

Tum!

Sabe o surdo? Tem aquele abatimentozinho provocado pela cuíca, mas é o surdo que pode definir os contornos de uma tristeza mais absoluta, um desespero sem saída, uma saudade aparentemente sem cura. É o surdo, ou — surpresa! — a falta dele, que faz o cara parar e pensar. Surdo é parada, é intervalo, é um mergulho num hiato muito breve que pode te afogar pela eternidade.

Os carnavais acabam. Conforme-se. Há quem defenda agora que não devíamos ter tido a folia do início deste ano. Agora é tarde. Porque ela já aconteceu. Se fizesse sentido falar no que não deveria ter acontecido, gente, o mundo seria ainda mais confuso do que este que você está testemunhando aí, ó. Se fosse para brincar de túnel do tempo, não é o carnaval deste ano que este escriba tiraria do mapa. É “mapa” que se fala, quando a referência tem a ver com a linha do tempo? Calendário?

Sempre existirão as questões que lhe são caras e que, pra outrem, não passam de cagadas. Maturidade, ou “a fina arte de aprender a tocar o surdo”, pode ser o estágio em que você aprende a não relativizar isso. E a não se preocupar. Porque relativizar é o de menos, ainda mais na hora em que você pensa que pode estar no caminho da morte.

Pizza e surdo combinam. Porque a base superior do instrumento — bem ali onde se bate — pode servir de bandeja. Nesse sentido, combinaria com qualquer alimento. Mas é que pizza é aquela coisa da qual a gente pode pegar uma fatia com as mãos (bem lavadas, claro) mesmo e comer sem muita cerimônia. Ainda mais se o comilão for um ianque. Está para nascer gente tão despreocupada com a maneira de comer pizza. E isso não é um ponto contra eles.

Em Botafogo, anos atrás, um casal discutia sobre a divisão de uma pizza. Não era bem uma discussão, mas, sim, um cara sendo acusado de comer uma última fatia sem autorização. Entre os intervalos na ladainha da acusação, quase dava para sacar as batidas de um surdo. Pizzas mal divididas podem dar em fins de namoros. Mas são as batidas de surdo que tornam dolorosas fins e despedidas — mesmo as que vêm de surpresa. Ou que não foram anunciadas. O surdo sempre está lá. Tum…!

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Parece Poesia Poesia Tipo Poesia Umbigada XXX

Leminskiando

Tenho uma coisa com sonho

Eu sonho

E tenho uma coisa contigo

Eu contigo