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Vinhozinho, vai? (#hiperlocal01)

Quinze minutos de evento: queijos e embutidos sumiam sem cerimônia do espaçoso tampo de vidro em que se enfileiravam, também, grandes taças para os vinhos e outras, menores, para quem precisasse de goles de água. O fenômeno da transformação de comida em vapor se dava mesmo antes da chegada das bebidas. Reúna iguarias numa mesa e elas vão sumir em pouco tempo, não importa o tipo de gente que esteja em volta. Não importa a década. Não importa quem está no Governo. Naquela tarde, nove em cada dez eram homens com camisa de mangas compridas trazendo aquele bonequinho em cima de um cavalo. Ralph Lauren, é assim que chamam. Nenhuma era do jacarezinho, também conhecida como Lacoste. Oito em cada dez eram vestimentas com botões de cima a baixo. Houve um tiozinho quem investiu no formato pra-dentro-da-calça. O convite avisava que seria uma tarde de apresentação de novos rótulos — Oscar Haussmann e Chateau St. Thomas — mas era na explicação da representante comercial que estava a promessa de crônica: uma degustação de vinhos alemães e libaneses.

Uma tarde de dualidades. Era comum nas coletivas de artistas que estavam lançando alguma coisa, nos anos 90 e 00: uma mistureba que reunia figurões dos grandes jornais e o pessoal dos veículos alternativos. Todo mundo comia das pastinhas que as assessoras de imprensa usavam para animar aqueles encontros. E a partir daí, do consumo de comidinhas, a divisão começava a ficar mais caricata. De um lado, marrentões que apontavam os “pequenos” como comilões. Do outro, “pequenos” que de fato às vezes agiam como mortos de fome. Essa dicotomia Alemanha-Líbano podia não ser uma viagem ao passado do jornalista que foi parar lá porque fazia, agora, também o papel de dono de um bar. Mas soava como diversão. Todo fim de mês, donos de bar precisam procurar diversão, para lidar com o movimento mais fraco.

Começaram com os alemães. E o primeiro mostrou-se doce demais. Estranho, dar a partida desse jeito. As especialistas deviam ter suas razões para apostar no OHO1 — Riesling Semi Sweet. A explicação não veio com qualquer aprofundamento, foi quase um “é doce porque é doce”. Na sequência, o OHO1 — Dry e depois o OHO1 — Reserve. Pareciam feitos/servidos só para amaciar, estes rieslings. A melhor coisa a se fazer era abandonar momentaneamente o pessoal dos distintivos de cavalinho para perguntar ao Google sobre aquela uva. E eis que a gente descobre que se trata da uva branca mais cultivada na Alemanha. A França é a segunda maior produtora dessa parada.

O aparecimento de um convidado vestindo bermuda cargo foi como um sinal. Vieram também um balde para descarte e novas garrafinhas de água. Descarte? É, se o cara não gosta muito do que está bebendo ou já provou o suficiente daquilo, manda o restante para o baldinho. Queijo e presunto, ninguém joga fora. Vinho, sim, as pessoas são capazes de dispensar. Não é para tudo que o ralph-laurenismo te prepara adequadamente.

A quarta tacinha daquela tarde era com o primeiro libanês: o chardonnay St. Thomas 2020. Um branco que provocou estranheza. Mas pareceu abrir também a porteira da diversão. Talvez os alemães tivessem feito bem o papel de amaciar o pessoal. Talvez, talvez. Como que poupando uma ida ao Google, a moça que conduzia o abastecimento das taças informou que há uma grande influência francesa na produção libanesa daquele tipo de bebida.

“Manga”, apostou uma convidada, falando de algo que ela tinha sentido ali no vinho. E no flow outras tantas palavras surgiram, como numa rodada de Adedanha. “Mel”, disse alguém, contando com a aprovação de bebedores do lado noroeste da mesa. O escriba que vos digita arriscou um “Tem algo defumado, aqui” e também contou com a aprovação do mesmo grupo. Ali, já dava para perceber que, em termos de vinho, os alemães são (ou tinham sido, naquela tarde) mais “fáceis” do que os libaneses. Isto é, os sabores das bebidas libanesas ali apresentadas eram indiscutivelmente mais complexas e animadoras do que as alemãs.

Da mesma origem, vieram um Pinot Noir 2017, um Les Gourmets Rouge 2018 e… Libanês vai, libanês vem, chegava a hora da última garrafa, aquela que foi apresentada como a grande estrela da tarde: Le Merlot A, de 2009. “Vinho de 1.500,00 Reais”, alguém disse, provocando olhos mais arregalados. “18 meses em barrica”, continuavam, entusiasmados. Até o fechamento deste texto, o preço não havia sido confirmado pelos anfitriões. Seja como for, o produto mereceu ser servido num decanter de cristal. Na taça, o líquido parecia mais oleoso do que os vindos anteriormente, criando desenhos. Impressionante.

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Que calor!

Quando Douglas era moleque, chamavam-no de Hot-Doug. Na verdade, era só um cara que falava aquilo, mas fazia isso com tanta frequência que às vezes parecia que o apelido tinha colado. Pouca gente entendia. O Douglas, que era um moleque em situação de rua, era dos que menos entendiam. Quer dizer, não conseguia ligar bem formalmente os pontos, a semântica e a significância, porque estava acostumado a lidar com a insignificância, com a agora famosa e (meio na-moda, muito comentada) invisibilidade. Mas o garoto sabia/sentia que o gringo que se referia a ele daquele jeito tinha alguma “sensibilidade”, algum “interesse”.

Douglas conseguia fugir da babação de ovo que de um modo geral percebia o pessoal exercitar para lidar com essa galera vinda de fora. Estava na rua mas não era bobo. Ou não podia ser bobo. Enxergava algum interesse por trás daquelas palavras, daquela boca, daqueles olhos, daquela cabeça coberta por cabelos dourados. Os cabelos do gringo chamavam a atenção de Douglas. O corpo esquio do menino, os dentes surpreendentemente brancos pra quem mastigava joelhos e empadas e quibes com tanta frequência, o cabelo desgrenhado e o queixo quadrado chamavam a atenção do forasteiro.

Zap! Zooot! Pow! Woool! Bang! De repente, tinha crescido. Rápido. Como se desse um salto. Havia caído em alguns buracos, e, sim, tinha conseguido levantar-se um pouco mais forte. Continuava magro. E tinha encurtado e adotado de vez o apelido, que virou tag: Hot. Douglas agora era o Hot. O Hot-Doug de um ano e pouco atrás estava uns bons dez centímetros mais alto, com alguma altivez. Perdera um pouco da “tranquilidade” com que conseguia se aproximar das pessoas e que, ao longo do dia, lhe garantia boa quantidade de salgadinhos e refrigerantes. Por sorte, ainda não tinha perdido nenhum dos dentes, que seguiam surpreendentemente brancos.

O estrangeiro e duas mulheres que moravam no 59, Diná e Ruiva, tinham tentado fazer o menino seguir carreira militar. As duas preferiram não entender, ou não foram mesmo capazes, quando ouviram-no confessar que gostava de gente fardada. Quando o jovem que viram crescer ia completar a idade certa, recorreram a um pessoal da assistência social do município e conseguiram os documentos necessários para que ele se alistasse. Dizem na rua que a única exigência era que Douglas ficasse, por três meses, num certo abrigo. Isso era necessário para que pudesse comprovar residência fixa. Estava tudo certo. Farda garantida. Um futuro na vida. O trio Gringo-Diná-Ruiva mobiizou-se para que isso acontecesse. As duas fizeram promessa. Mas Douglas já não era Douglas, nem Hot-Doug. Era o Hot e não conseguiria ficar tanto tempo sob um teto.

O trio continuava achando estar diante de um menino. Aparentando cansaço, declarando frustração, começaram a planejar para o “pupilo” uma vida de modelo. O fã de fardas foi quem fez a sugestão e as duas toparam. Conseguiram “convidá-lo” para uma pizza numa lanchonete que ficava perto do abrigo. Ele argumentou, quer dizer, deu uma ideia e disse que perto do abrigo não seria uma boa. Mas o trio achou por bem insistir. Achavam que Douglas deveria aprender a lidar com seus medos. E Hot aceitou. Eram 19h, quando os quatro se encontraram, na calçada. E dali dava para ouvir os gritos que vinham de dentro do abrigo. Não era possível saber se eram só zoação, se havia alguém levando um sacode. Seria possível apostar que havia alguma dor envolvida, ali, naquilo tudo. Hot olhou para o trio e perguntou se em vez da pizza podia pedir um joelho. Foi o que rolou: um joelho e um refri.

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O sobrevivente

Nas imortais palavras de Wander Wildner, “Boa sorte, boa morte”. É assim que o sempre-Replicante, atual punk-brega, ícone-ídolo dos corações revoltados de outrora e agora porta-voz de suspirantes-crentes-no-amor terminava “Boa morte”, faixa da sensacional fitinha do grupo Sangue Sujo (da época em que WW era mais “só punk mesmo”). O cassete morreu, mas, por sorte, podemos usar o YouTube para comprovar a existência da máxima. Sorte? Morte? Palavras que, claro, não surgem à toa. Confissões chorosas que podem, sei lá, saltar duma mesa bem ao lado, são capazes de anunciar que o fim está próximo. E no fim das contas — como também diz a letra — “Um dia qualquer no fim das contas você vai morrer”.

Rebobinando ainda mais, e ainda mantendo a atenção ao que vaza da conversa na vizinhança, o escriba revive/constata o drama de Aloisio Dantas, ou Alolô, como zoavam os amigos antes de jogarem pra cima dele o terrível Já-Morreu. Ah, nada como uma reunião de amigos de colégio (suspiro) para conseguir inspiração. Como cresce um garoto, depois de ganhar um apelido assim? Naquela época, não chamavam isso de bullying. Era só sacanagem mesmo. Talvez por isso tenhamos nos transformado num país campeão na formação de psicólogos. O curso atualmente é dos mais procurados, como apontou uma edição da ainda — e surpreendentemente — viva “Folha de S. Paulo”.

Sermos campeões no número de dentistas não fez de nós, ao longo de décadas passadas, uma nação menos boca-suja. Vamos ver o que o pessoal da Psicologia vai conseguir, nas próximas eras. Se serão capazes de ajudar a gente a lidar melhor com a inevitabilidade do Fim. Ou, o que já pode ser um grande adianto, a aproveitar as pequenas mortes. Como no francês, sabe? Pequena morte, sacou? Sacou?

Vestir o paletó de madeira virou assunto banal. Há para isso a contribuição do jornalismo-lixo dos programas televisivos de depois do almoço. A gente diz “jornalismo-lixo” porque o jornalismo mais romântico não sobreviveu para ser/manter-se fã de Wander Wildner. Morreu faz tempo, o pobre coitado. A morte parece hoje tão líquida quanto as relações. Não vão achar absurdo, daqui a um tempo, escolher quem vai morrer através de um aplicativo. Se as pessoas escolhem seus pares passando dedos em telas de telefone, daí para usarem o mesmo método para apontarem quem irá desta para melhor é um pulo. Quer dizer, um clique. No século passado, o Schwarza — eita cara bom de matar gente na grande tela — protagonizou um filme em que um troço mais ou menos assim acontecia num show de TV. Qualquer semelhança com os programas de hoje em dia depois do almoço não é mera coincidência.

É claro que a Inteligêntsia sempre vai poder bater no peito bronzeado e eventualmente bem agasalhado para dizer que a Morte faz parte do jogo. Ah, a Inteligêntsia e seu desprendimento. Ah, a Inteligêntsia e suas referências. Vão dar um jeito de desenterrar “O sétimo selo”. Se bem que vão tirar isso do grande caixão da História mas, apesar de — OK — ser uma grande fita, quem é que vai ter paciência de assistir ao que fez o Bergman, hoje em dia, para depois discutir a respeito? Isso morreu! Nem os psicanalistas fazem mais isso.

Ninguém vai ficar pra semente, como garante a tiazinha do bar, enquanto faz pular as chapinhas dos litrões que os eternos estudantes pediram para a nova rodada de ressurreições. Depois de amanhã, ela diz, com cara séria, “é aniversário de morte da minha irmã”. Um momento de silêncio. E alguém levanta um brinde em homenagem a dona Marli. Beber para jogar Luz no caminho de alguém. Taí. Uma hora alguém ia achar uma coisa boa pra fazer com essa história toda de Morte. Saúde!

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Bu!

No caminho para a Lapa, uma coleção de personagens-situações de dar inveja em qualquer Rick Drekard. “Blade Runner”, cara, “Blade Runner”. O bom e velho… Turistas na escadaria. Gentrificação anunciada em mais um beco. Palavras surgindo na ida e fugindo na volta como que para garantir que não haverá registro. Crenças ensaiando um rascunho descontrolado. Explicações em todos os cantos, quase aos gritos. Uma mentira como sinônimo de roubo. Sol dando pinta de que vai deixar chover. Este é o nosso Show Sambapunk de Rádio.

O papel que o tiozinho usa para embrulhar as flores, no sábado, ali na feira, lembra a folha que cobria o pão de antigamente. Hoje em dia, pão é só em saquinho, praticamente. As flores deram mais sorte do que as bisnagas. Seu Zé e o Moleque cobrem tudo direitinho para garantir a elas alguma proteção. Antigamente, na volta para casa, o pão ficava descoberto com facilidade. O que será do pão, no futuro? O que será da flor, no futuro? O papel, pobre coitado, nem vamos perguntar sobre o que vai acontecer com o papel.

A pequenina ensaiando uma expressão de extremo desgosto, diante de um vídeo de entrevista ao qual o pai assiste. O coroa percebe e num flash vai até a própria infância, quando tinha vontade de voar ao ver o velho-mais-velho-ainda dando moral para comentaristas de futebol na TV. Todas estas teorias quântico-físicas devem ter algum fundamento, quando o caô é voltar ao passado. Sim, você já ouviu esta.

Ninguém jamais vai cantar “Modern love” como o próprio Bowie. Outro dia, pulava do celular uma versão caprichada/carregada nos graves para “Take my breath away”, mas, porra, aí é outra coisa. Outro naipe, não resiste ao corte.  Os amores modernos. Sempre os modernos. Sempre os amores. Sempre Bowie, esteja onde estiver. Seja o fantasma que for. Será que algum fela fez versão disso no esquema pagode? Até que pode ficar engraçado, hein!? Este é o nosso Show Sanbapunk de Rádio.

Há quem se assuste com facilidade. Há quem diga o tempo todo que se assusta com facilidade. Há a facilidade para assustar os outros, hoje em dia. Há os sustos que fazem a gente quase se mijar. Há os cheques sustados, mas aí é bem outra coisa. Por falar em coisas, há aquelas com as quais a gente não se acostuma. Não tão assustadoras quanto aquelas com as quais não estamos dispostos a nos acostumar. Geral está muito mal-acostumado. Até o próximo programa.

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Cuidados

Passou pelo Largo do Machado sabendo bem do horário porque se programou para curtir os sons do meio-dia, principalmente/especificamente os sinos daquela igreja onde dois anos antes — na missa de sétimo dia de falecimento da mãe — tinha testemunhado um sacerdote assustadoramente vacilão fazer “piada”  dizendo que catequistas seriam fuziladas. Teve dificuldade para driblar as poças d’água, a caminho da feira, já que ia no automático desatento às provocações da chuva; querendo parar de pensar que já era tarde para conseguir bons camarões. Tudo contribuiu para que Pê chegasse atrasado ao encontro com Gê.

Os dois tinham marcado um papo que Gê chamou de “sessão”. Aconteceu, isso, após o mais velho ter acreditado perceber mudanças que considerou significativas no comportamento de Pê. Já eram conhecidos havia o quê, uns bons dez anos? Por aí. Talvez 12. A amizade começara na época do nascimento da filha de Pê, que por meses tinha se transformado numa espécie de atração na hora do almoço no restaurante que os dois frequentavam. Era mesmo uma graça, a menina. Gê ia lá para comer. Pê, para beber: achava que o fato de o lugar ser conhecido como restaurante e não como bar garantia uma dichavada que não fazia mal a ninguém.

“E aí, compadre?” “Fala!” Mãos apertadas. Abraço dado. Sorrisos leves, largos e demorados. Respirações profundas. Depois que as cabeleiras balançaram sob o ritmo de gargalhadas-bênção, houve um bom minuto de silêncio. “O que tá rolando, cara?” Quem fez a pergunta foi o mais novo, ao contrário do que parecia programado para o encontro. Gê encolheu-se, para responder. Comentou sobre o trabalho do qual não estava dando conta. Das despesas que aumentaram sem que ele conseguisse entender por quê. Revelou um flerte com uma droga nova. Confessou ter ficado viciado em xadrez online. Deu um jeito de reclamar do professor de Matemática que teve aos 14 anos e levantou-se para ir ao banheiro.

Pê, neste intervalo, quis revisitar as respostas do amigo. Mas sentiu que se insistisse nisso perderia de vista a lista que estava elaborando. A relação do que guardara para soltar naquele encontro com o camarada; era essa, a lista. Viu pingos — muita gente, mas separadamente e por isso “pingos” — de uma enxurrada em direção às academias e sentiu que, se fixasse a atenção naquelas personagens, também perderia sua programação para a conversa. Sabia que se desconcentrava fácil, fácil, e que talvez pudesse ser este um dos pontos a comentar com o parça. Pode ser que o xixi do outro não tenha demorado o suficiente para que Pê se organizasse. Seja como for, o que aconteceu foi que na volta tudo que Gê ouviu foi “Cara, está tudo na mesma. Não tem muita coisa acontecendo.”

Mais um tempo de silêncio. Então, um intervalo maior. Durou do instante em que o garoto dos amendoins derramou, sobre a mesa, em cima de um papel verde, uma amostra do que estava vendendo e o momento em que este mesmo sujeito voltou para recolher a iguaria. As cabeças balançaram de novo mas aí já não havia nenhuma gargalhada no ar, era só para dizer não ao Vê. Os copos se esvaziaram, vieram mais duas garrafas. Iam experimentar uma bebida diferente.

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Boteco Connection #11 — O monstro e o lago

Parecia perdida, ela. Olhos arregalados. Ofegante, sim; ofegante mesmo. Sem saber para onde ir e algo exausta. Suada. A calçada, que se lhe apresentava meio como um labirinto, carregava também traços bastante familiares: os poucos pinos perto do meio-fio, que estavam ali para inibir os motoristas de táxi em seus devaneios secundaristas, faziam o papel de pilastras, de tão grandes que tinham ficado. Tudo isso, sob o olhar da moça; antes de ela investir no primeiro gole de cachaça. Com as unhas dos pés e das mãos bem pintadas de vermelho, olhava para os lados como se aguardasse o Minotauro, que apareceria para gritar “Bu!”. Como que numa tentativa de manter-se lúcida, fez a piada: “Será que o Minotauro faz ‘Bu!’ ou será que faz ‘Mu!’?” Estava falando consigo mesma, mas no esquema voz-alta-mode-on. Foi a chance que o maluco do lado esperava para tentar engatar uma conversa: “Me dá também uma cachaça dessa, dona Marlene! Igual à da moça…”

Vera respirou aliviada. “É só um mané, não é o Minotauro”, comentou, depois de mexer rapidamente no painel e garantir voz-alta-mode-off. Na avaliação cordial dela, estava lidando com alguma espécie de monstrinho. Mas não teve medo. E resolveu jogar. Deu ao boy uma chance, revisitando uma gracinha antiga, apostando que assim assustaria o cara: “Oi, eu sou a Vera. Estou aqui à vera.” A parada era dizer isso bem rápido, meio que se fazendo de bêbada, meio que disparando um teste. O cara não mordeu a isca. Respondeu com um pobre “Nino. Prazer.”

A tiazinha que controlava o outro lado do balcão fingiu não ouvir o pedido do rapaz. Porque ela sabia que era cliente de gelada e não de quente. Queria evitar problemas. Vera, por sua vez, começou a falar num “lago escuro”, onde ela não tinha certeza se “pulava ou não”. Foram uns bons 15 segundos de silêncio, depois daquilo. Até que sob a sombra de um certo juízo o rapaz retomou suas práticas mais tradicionais: “Dá uma cerveja, dona Marlene. Bem gelada.” Ele e a tiazinha se entreolharam e trocaram um breve sorriso, e, estando ambos calibrados para voz-alta-mode-off, trocaram também uma frase que parecia ensaiada: “Não pode mais chamar de canela de pedreiro…” Riram alto, como se às vezes esquecessem das regulagens que fazem em seus painéis.

Cada um com seu goró. Como tinha que ser. Minotauro ia, à-vera vinha, taxistas iam, taxistas vinham e… o lago escuro não saía da pauta. Ela insistia no assunto. Falava de mergulhos. Citava encruzilhadas e igrejas. Apontava dúvidas. Mencionava o pai. Olhava inquisidora para os olhos do rapaz e falava em “transferência”. E quando ele começava qualquer frase ela devagarinho batia palmas, como que conduzindo um samba; sugerindo uma melodia, um andamento. Num primeiro momento, Nino não percebeu aquilo; mas, depois do segundo litrão, muita coisa foi ficando mais clara. Vera no entanto não parecia disposta a abrir mão de controlar o jogo. Na cabeça da moça, era o seguinte: se do outro lado do ringue não estava o Minotauro, não havia o que temer. Ou o que perder.

Em jogos de sedução, com ou sem monstros míticos, chega uma hora em que um dos dois lados pode mudar de estratégia. O que dizer sobre uma brincadeira que ocupa uma preciosa e disputada mesinha de calçada por três horas? Dona Marlene não dizia nada, ainda mais que o casal estava bebendo bem. Já eram vistos como um casal. Compraram amendoins dos moleques que passaram vendendo a iguaria. Investiram em paçoca, gomas de mascar; ajudaram uma mãe que precisava de fraldas para o bebê. O Minotauro estava demorando demais. O monstro estava perdendo. O playboy tinha chances de vencer.

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Boteco Connection #10 — Calçada unida

Dezembro nem começou direito e parece que é a premissa é: “Mês de sentir saudades”. Teria sido a conclusão mais “lógica” de cinco pessoas que se encontraram sem-querer-querendo, numa calçada, ainda agora. Mas cinco cervejas para cada um e os pensamentos acompanham a vibração: começam uns a querer falar mais alto que os outros sobre o que lhes apertava o peito. Não é que pensamento e cerveja não combinem. É que o papo era saudade, não era combinação. O que combina com saudade? Atravessar a rua, rabiscar toda uma parede com o nome de alguém, mensagens que batem recordes de doçura, flores amarelas, café com canela?

Cinco pessoas, isso. Cinco itens, isso, também. Cinco segundos de silêncio e alguém dispara, no embalo de uma conversa que passa a ser temperada por sacanagens diversas: “A Help era o coração do Brasil. Quando fechou aquilo, você matou o Brasil. Por isso é que aquele museu não vai, gente, não vai pra frente, virou tipo um cemitério de índio.” Foi tão bem construído e certeiro, o negócio, que os cinco segundos seguintes pareceram cinco minutos. A resposta, ninguém viu bem de onde veio, mas provocou de xingamentos a risadas, ambas tímidas: “Tá com saudade da putaria, né?”

“As ideias são como um prêmio para quem trabalha. Quem trabalha merece ter ideias. No meio dessa demolição da intelectualidade, o problema é que a gente tá com muito mais trabalho. E poucas ideias…” Frase complexa é assim. Por um lado, pode fazer todo mundo pensar que talvez tenha bebido demais. Por outro, faz todo mundo pensar e isso é bom. Era o caso de aproveitar, ali, naquela assembleia, o fato de que estava todo mundo a fim de pensar. Alguns até sofriam com isso. Para estes, pintou uma frase, mais curta, ainda com tapa-na-cara-mode-on: “Bora! Bora! Bora!” Tipo na academia, isso mesmo.

Foi possível sentir no ar um sopro de confiança. Ou estava todo mundo meio desnorteado mesmo. Talvez alguns até se perguntassem se seria possível retomar o papo, a partir daquele ponto. A autora do veredicto estava quase envergonhada por ter soltado aquilo, como se fosse culpada pelo silêncio que se seguiu. Era o caso de sentir-se orgulhosa. Mas não adiantou aquele outro maluco dizer isso a ela, baixinho. O movimento gerou até desconforto, porque parecia uma divisão do time. Não que a divisão fosse proibida, ali, mas… Ainda estava fresquinho na cabeça de geral aquela vontade de unir. “Calçada! Unida! Jamais será vencida!” Quase dava para imaginar o pessoal saindo com isso aos gritos: “Calçada! Unida! Jamais será vencida!”

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Boteco Connection #9 — Fordismo

O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo.  O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.

Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…

Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.

Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.

Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.

“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”

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Formigamento

Um passeio pela praça. Crianças brincando. Ninguém parecendo ligar para a promessa de chuva. Nenhum ambulante vendendo cerveja. Cachorros que chegam perto, atraídos sabe-se lá pelo quê — a ponto de pegar as bolinhas que os donos jogavam para, na volta, perderem o rumo. Como se a recompensa tivesse mudado de lugar. Os pombos davam uma trégua, até porque não havia nenhuma migalha por perto. Não era uma tarde de restos. Era sim um pico, um pontinho de intensidade. Talvez no plural mesmo: in-ten-si-da-des. Uma praça é uma promessa.

A história da senhorinha do prédio branco de janelas azuis é a seguinte: ela morava ali com o marido. Foi por décadas o endereço deles. E parece ainda ser, mesmo que nenhum dos dois esteja mais por lá. As janelas daquele andar revelam-se as mais desbotadas, como se há muito não fossem acariciadas com tinta nova. Janelas fechadas-fechadas-mesmo, não como as outras em que o pessoal parece se contentar em se esconder atrás de vidros. Contam que o casal de velhinhos ia sempre à feira que rola ali perto, aos domingos.

As formigas ensaiam uma mobilização. Como se estivessem estudando desenho. Figurativo mesmo, o negócio. Formigas inteligentes. Terão sido inventadas, na última hora, elas, e já estavam tomando conta de Copacabana? Estarão aliadas aos cachorros, naqueles desvios de comportamento? Será que estes bichos riem, agora entendendo a estranheza que provocam na gente que fica sentada se beijando, alheia a tudo, celebrando um amor que parece o mais intenso de todos? De todos os tempos.

Terão os bichos respostas sobre o futuro ou será que estão limitados aos desenhos que parecem capazes de fascinar um estudante do Parque Lage? Um colecionador investiria algum trocado naquilo? Talvez depois de pesquisar quanto tempo vive uma formiga e calcular como será a produção anual da turma daquela área. Um vento fresco surge para espantar as contas e evidenciar o calor. Um sopro que gela um pouco o suor e espalha cheiros doces. Gente vendendo amendoim, ali perto, amendoim doce, contribui com o adoçamento. A pergunta passa a ser sobre a influência que aquele cheiro pode ter sobre a produção artística das formigas. O espetáculo parece continuar só com as formigas, porque depois de um tempo os cachorros deixam claro que se cansam logo.

Somos todos formigamentos, organizadinhos em nossos sonhos de desenhos. Crianças num cercadinho misturando suor e poeira, vendedores de estalinhos e outros brinquedos num quadrado que deve ter sido definido pelos coronéis das redondezas, bancos convidativos com espaço para cinco mas sendo usados invariavelmente por dois caras. Um casal. Tem alguma coisa acontecendo, ali…

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1990 ou O-Ano-Da-Pantera (quase, quase Boteco Connection #9)

Ela não queria apelar para as ferramentas de pesquisa na internet. Não era uma decisão fácil, esta, porque o telefone estava ali, o tempo todo. Mas mantinha-se firme, mesmo que fosse uma tentação mergulhar no protagonismo de uma daquelas sequências em que, após uns poucos segundos de concentração, arrumando os cabelos bem pretos, ela pegaria o aparelho e, com a firmeza de quem enxerga muito bem, deslizaria as unhas pintadas de vermelho cintilante pela telinha. Andava digitando com o dedo até um pouco de lado, por causa do tamanho das garras. E assim como não era exagero falar em “garras”, também não era demais falar dela como uma pantera. Mas estamos apontando alguém que pretendia voltar aos dias de “jovem felina 1990”, quando tinha 9 anos e foi, com o pai, ver um jogo de futebol na maior cidade do país. Não qualquer jogo. Mas aquele que faria com que ela trocasse de time. O que será que uma ferramenta de busca nos mostraria como dicotomia se fôssemos opor “jovem felina 1990” e “pantera 2022”?

Puxar pela memória tinha começado como uma diversão. Sempre que esbarrava com alguém que parecia entender de futebol, ela engatilhava o assunto, mencionando a conquista de um título, naquele ano, e comentando resultados. Era boa com placares históricos, o que excitava marmanjos metidos a entender de futebol. Recheava suas crônicas — porque eram mais do que memórias — falando da eleição de uma mulher nordestina para a prefeitura de São Paulo. E enchia-se de orgulho recapitulando o episódio em que, no metrô, desafiou skinheads para proteger o irmão mais novo. Enxergava bem e tinha boa memória, a pantera. E se divertia, diante de barbudos entendedores do jogo da bola, vendo-os sem resposta para questões que, ela deixava claro, trariam grande felicidade para ela. Mobilizava os caras, sem muito esforço.

Na verdade, mais do que conseguir respostas, mais do que ser capaz de organizar na cabeça um almanaque definitivo sobre aquele jogo, ela elevava, a cada menção/tentativa, um castelo de paixões — pelo time, pela vida, pelo mar, por…. Uma construção que ia ficando sempre mais e mais imponente. Depois da pandemia do início dos Anos 2020, nossa personagem parecia estar diante da necessidade de tomar uma outra grande decisão, algo que poderia ser tão transformador quanto trocar de time, e talvez por isso mais importante do que conseguir respostas definitivas eram as chances de visitar, mentalmente, os sabores de um novo horizonte.

Ela enxergava bem e pensava também muito bem. E, ao contrário do que tinha imaginado até ali, talvez fosse possível trocar de time mais de uma vez na vida. O tempo passa. Ou, como ela dizia parecendo querer desconcertar seus interlocutores: “O tempo tem o próprio tempo. É assim que se constrói intimidade.” Se um só pensamento preenche a imensidão, também com esta medida se ergue uma fortaleza, um castelo.

Pegou-se ontem começando uma conversa, numa calçada de boteco. Tinha testemunhas, gente que já a tinha visto armar aquela arapuca. Houve até quem comentasse: “Pô, de novo, esse papo de 1990? Sério?” Era uma deixa, tal tipo de comentário, para que ela mostrasse outro talento: o sorriso. Sorria que era uma beleza. E invariavelmente seguia, firme, na prosa. Esse cara da calçada era mais ou menos da idade do pai dela, e fanático pelo mesmo clube. Sentindo o desafio, o malandro não recuou: “Mas a gente jogou nesse estádio, em 1990?” A mulher respondeu que “Sim… E a gente perdeu…” E foi quando ouviu o que precisava, sem saber que era aquilo que precisava: “Ah, é por isso então qu’eu não lembro.”