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Saúde! 2!

Refúgio ou fuga? Poderia ser um danado de um deixa-a-vida-me-levar. Samba é que fala muito disso, né? Pode falar de samba sem provocar reações furiosas dos entendedores do assunto? Não há ainda nada no caderninho sobre isso. Assim, sem muito esforço e sem Google, dava para arriscar dizendo que há muito samba que fala de mar, de deixar-se ser levado pela(s ondas da) vida.  Mas, voltando à Lois Lane, sem querer parecer super-homem (o que um homem de aço estaria fazendo numa casa de saúde da Tijuca, né?)… Deixar a vida levar a gente, se tiver essa moça na história, é deixar as coisas muito mais por conta dela do que da vida.

Eis que surge a ultra-sonografia mais rápida de todos os tempos, para reorientar os pensamentos e criar novos parâmetros para todas as coisas. Deve ter medalha pra isso, naquele lugar, e o playboy-doutor com camisa Ralph Lauren e luvas azuis deve ser um dos campeões. Prometeram resultado para dali a 15 minutos. O pessoal do sangue e da urina deve ter outra liga e o próprio troféu, porque não é uma disputa justa. Quer dizer, o playboy pode ser muito bom naquilo ali, né? De que time deve fazer parte a médica da calça cor-de-rosa?

Madonna. Madonna? O que ela fazia, ali, na Tijuca? Era hora das bobagens mais sérias. “Everybody, c’mon, dance and sing… Everybody, get up and do your thing…” É isso. Hospital é um lugar em que fica mais fácil a gente pensar na vida, em como pode estar tudo por um segundo. Mas aí já vira Gilberto Gil, vamos manter o foco. Foco. Como o cara da Ralph Lauren. “Everybody” teve sua função nos anos 80, deixou a material girl mais rica e, agora, num prédio com corredores bem brancos, na ZN do RJ, faz alguém pensar na vida e em fazer o que realmente curte. Isso só deve durar até o fim da tarde, volta na próxima cólica renal e, aí, segue se repetindo até que um dia não vai dar tempo de se perguntar nada ou lembrar de música nenhuma.

Parece que já não há médica com calça cor-de-rosa nesse mundo de meu Deus então vamos agradecer ao Todo Poderoso pelo surgimento de uma outra personagem interessante, desta vez com moletom cinza e crachá azul. Pode trocar de personagem, nos finalmentes duma crônica? Pro garoto que estava com a mãe, bem ali do lado, esta troca não faz sentido. Nenhuma troca deve fazer sentido para ele, na real. Para aquela criança, tudo que importa é o tubo de batatas fritas com o qual ele foi presenteado. Ficou uma piscina de farelos, em volta do lugar em que ele estava sentado. Um verdadeiro rastro de felicidade, sem que aparentemente nenhum resultado satisfatório de exame tivesse sido necessário.

Já tinha ouvido falar em “rastro de felicidade”? Provavelmente, não, né? O noticiário, quando fala em “rastro” geralmente emenda com “destruição” ou “violência”. Pergunte ao pessoal de Bonsucesso. O jovem do tubo de batatas deixou pra trás um rastro de prazer e felicidade. Precisou vir alguém da limpeza para consertar aquilo. 13h45m. O sinal de fome sentido pelo escriba explica um pouco a voracidade do garoto diante das fritas. Fome. O menino estava acompanhado, provavelmente, pela mãe.

E eis que, na pulseira de identificação do maníaco do caderninho,  o nome de uma outra mãe salta. Fazem isso em hospitais para que, por exemplo,

xarás não corram o risco de receberem medicamentos trocados. O filho de Fulana recebe o comprimidinho X. O de Beltrana, Y. Mas o nome e a lembrança de uma genitora pode trazer de volta um outro rastro de felicidade: como o que fica quando uma criança, depois da consulta, ganha sempre uma fatia de pizza. Dessas maravilhosas pizzas de padaria. Ainda existe isso? Um rastro de felicidade que faxina nenhuma tira da memória.

A felicidade pode abrir as portas das descobertas transformadoras. Lá pelas tantas, fica claro que a médica de calça cor-de-rosa trabalha no consultório 5. O pessoal da limpeza parece não ligar muito se a gente levanta ou não os pés para facilitar o acesso deles , com vassouras ou esfregões, para limpar embaixo das cadeiras. Se você não quer que lhe injetem “contraste” nas veias, para certo tipo de exame, isso deve ser marcado num formulário que te dão, antes do procedimento. Frio e fome não são coisas boas de se sentir, ainda mais ao mesmo tempo.

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Saúde!

Não é sempre que hospitais grandes dão grandes sustos. Quer dizer, os sustos que você pode experimentar num lugar cheio de gente com roupa branca não depende do tamanho do lugar. Depende mais das pessoas. E hoje elas nem sempre estão todas vestidas com roupas da mesma cor. Casas de saúde podem parecer supermercados. Passe cinco horas numa e entenda. Você se pega sorrindo e se pergunta na sequência se pega bem ficar fazendo isso num lugar como aquele, ainda mais numa área de atendimento de emergência. Primeira pergunta: em mercados, é mesmo mais fácil manter a cara fechada? Talvez, depois do resultado de algum exame, também seja mais tranquilo/possível fazer isso. Notícias boas nos arrancam risos. Gargalhadas, às vezes. Mas, pô, mostrar os dentes num lugar daqueles, antes até de passar pela triagem em que verificam a pressão, pode parecer exagero. Ou loucura mesmo.  Dependendo do filme, podem apontar na sua direção, no corredor, dizendo que você está no hospital errado.

Ok. Vieram tirar sangue, pediram que enchessem o potinho de urina. Diante da informação de que os resultados viriam em uma hora e meia, restava esperar chamarem para a ultra-sonografia abdominal. Musiquinhas/alarmes de celular ficam muito piores, em salas de espera onde há gente com dor. Bem piores do que sorrisos. Se bem que, sabe, parece haver uma mobilização auditiva em torno de alguém que atende a uma ligação. Gente curiosa… não seria ali que encontrariam a cura para isso. Falavam em uma hora e meia, aí, em cima? Tempo mais do que suficiente para muitos alarmes de celular e, claro, para pensar em muita, muita bobagem.

Na era do ódio (à qual salas de espera de hospitais não estão imunes), sorrisos podem ser mais arriscados se há um tiozinho gigante e careca com cara de hooligan, ali, encostado na parede. Sorrisos vão, sorrisos vêm, desconversas vão, desconversas vêm, ouvidos espichados vão, ouvidos espichados vêm e você pode ficar aliviado e quem sabe sorrir mais à vontade ao descobrir que o gladiador trabalha na recepção do hospital. Ah, claro, tinha sido possível vê-lo, antes, mais cedo, testemunhando que a comida naquele dia estava boa. Mora em Bonsucesso, ele diz, interagindo com a moça que cuida de aplicar analgésicos em quem chega com etiqueta amarela. Ela também tira sangue para exames, mas, aí, parece que não precisa de etiqueta nenhuma, só mesmo três formulários preenchidos corretamente e carimbados. Neste mundo de celulares, ainda há carimbos, vejam só. Às vezes, nos vemos diante de um tiozinho. Outras, de um gladiador. Um tiozinho-gladiador, por tanto, ou TG. O TG dá detalhes sobre a rua em que fica sua casa, diz que lá não tem muito assalto. A última frase antes de ele desaparecer faz a gente entender a expressão que não dava trégua: dor nas coluna.

Mas vamos às bobagens: não é uma disputa, mas… só há uma pessoa, na sala, com caderninho e caneta. Todas as outras estão com celular. Deve ser uma médica, a mulher que passou com calça cor-de-rosa. Apareceu, primeiro, com uma blusinha branca. Depois, de jaleco, o que lhe emprestava um ar mais sério. E de poder. Tinha uma postura diferente daquela da moça que obtivera a informação do hooligan sobre a segurança pública no bairro de Bonsucesso. A mulher de calça cor-de-rosa não sossega na sala. Às vezes, passa de máscara. Outras, sem; como quando andou de blusinha branca. Corredores, mesmo os de enfermarias, podem ser verdadeiras “passarelas”. Num dos desfiles, ela falava no celular e demonstrava preocupação: “Isso não é possível!” Nos olhos de quem estava em volta, via-se a mesma expressão de espanto e curiosidade que já havia aparecido, antes, nas pessoas que mergulhavam no aparelhinho mágico.

Hm. Uma paciente nova, ali, noutro corredor. Ruiva. Vermelho. Sangue! Teria sido prudente — ou chato? — ligar o cronômetro, quando a moça do sangue falou sobre o prazo para entrega do resultado do exame? A moça do sangue. É uma maneira estranha de fazer referência a alguém. Claro que depende do lugar de fala. O bom e velho lugar de fala, né? Na fila de atendimento da emergência, o senhor Lugar de Fala parecia ter ficado para trás em relação à dona Linguagem Neutra (era dela a etiqueta amarela). Esse papo de lugar de fala cabe aqui? Hospital é mais lugar de sangue mesmo. Deve ter gente incomodada com a classificação doutora-de-calça-cor-de-rosa. E não há tratamento para isso. Aliás, ela estava demorando a aparecer de novo. Será que todos os dias circula por ali?

Bobagens mais sérias pediram passagem. O que uma personagem como Lois Lane tem para aparecer nas fantasiosas elaborações de um paciente que aguarda notícias numa emergência de hospital? Lois Lane parecia o jeito de falar, dá licença? Difícil decidir o que fazer com ela, porque ninguém quer arrumar confusão com um homem de aço. Se a gente pipoca diante de um hooligan, imagina frente a um sujeito que veio de Krypton… A iminência de um julgamento final pode fazer a gente abandonar qualquer caderninho e correr para o smart phone. Cada um foge como pode. Numa tarde hospitalar, pra certos sujeitos, um esconderijo pode ser feito por exemplo de papel e caneta.

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Dor à vista

Uma tela que se embaça, diante de dores reincidentes e de falta de promessas. Não na catástrofe televisionada e amplamente falada. Dentro de nós. Numa saudade que arrefece, após um sonho do qual não é possível lembrar, mas, sim, estava lá. Esteve lá. Desde muito tempo. Depois de tanto pregar que “o amor só é bom se doer”, vem uma dor que põe tudo em xeque. Sofrimento serve mesmo para isso: para tornar vitorioso o que o provocou e conduzir ao saco dos perdedores aquele que… perdeu. Neurose pouca é bobagem. Mas uma bobagem que nem o samba da praça consegue abafar.

Depois do mais amargo dos cafés, quem consegue dormir? O playboy capaz de brigar com apenas o próprio umbigo poderá considerar-se sortudo. Depois, deve dar tempo de escorar-se numa sentença óbvia: não há nada de original ou especial nesta carcaça, mané. Todo mundo é igual: pior com dor do que sem dor. Pode ser que passe, claro. Há uma máxima/promessa já apontada como de origem árabe e que dá conta disso, com uma simplicidade dolorosa (claro que era para ser assim): “Tudo passa.”

A chegada/volta da dor é uma ótima ocasião pra avaliar o que se diz/pensa. Talvez, focar na semântica. Na dor, revemos coisas  Há quem faça promessas. Tem gente que aproveita para falar das músicas do Nirvana, explicando por que foge delas: muito sofrimento, ali, naqueles versos. É uma maneira de ver. Pode ser que não haja analgésico que dê jeito. O ápice da dor, o apogeu da dor, o esplendor da dor… Falando assim, parece até uma emenda para dar sequência aos “Provérbios do inferno”.

Se (um)a dor pode mesmo ser o combustível para aumentar um poema? Ou um clássico qualquer. Por que não? Metade da humanidade parece estar cansada do amor, que já foi apontado como o grande combustível da música/indústria pop. Outra: dor tem preço? Será que o cabra sofredor de agora provocou coisa parecida, isto é, muita dor, em outrem e, depois, precisa acertar as contas, encarar o preço a ser pago? Quando a dor vem em prestações, desde muito tempo, é porque o cara deve muito?

Há quem prefira pagar à vista para, quem sabe, sugerir um desconto. Ou então é só por não gostar mesmo de parcelamentos. Uma coisa é certa, apesar de não garantir nada: tem dor que é melhor não sentir. Assim como há contas que o sujeito — de uma maneira ou de outra — precisa acertar.

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Boteco Connection #13 — Ano que vem, quem sabe

A gente não pode ficar vivendo de lembranças de comédias românticas. Ainda mais quando elas têm duas décadas de lançamento e deixam claro que envelhecem num ritmo diferente do nosso. Nós, os eternos personagens. Os filmes, sejam de que estilo for, parecem sempre ter alguma vantagem em relação a isso que chamam de vida real. A gente, na busca por uma “saída”, talvez possa viver de aniversários em bares. Porque se as mesas e calçadas desses lugares são capazes às vezes de servirem de palco para — em vez de filmes — verdadeiras novelas mexicanas, esta programação, em datas comemorativas, periga virar tipo um capítulo especial. A quem não gosta de um frisson acima da média?

Outro dia na Marlene foi assim. O aniversariante, pra começar, viu acontecerem encontros que não estavam na programação. A data de nascimento é mesmo um bom dia para concluir de vez que não é possível controlar tudo. Uma desconhecida comentou que ao falar com uma amiga tinha ouvido, desta, que ia a um aniversário na São Salvador. “Ah, aniversário, só pode ser na Marlene.” E era mesmo. Junte um bar e uma data comemorativa e você terá não um filme, não uma novela mexicana roots mas, quem sabe, um seriado.

Professores de desenho fazendo sucesso entre um pessoal que talvez não consiga rabiscar nem um boneco-palito. Quer dizer, podem haver surpresas agradáveis, em encontros imprevistos. Aniversário em bar não é uma faca de dois gumes. É um exercício de digestão. Como digerir um encontro inesperado? Como suportar um desencontro? E um segundo desencontro, numa mesma noite, sendo que é uma noite de capítulo especial? Cenas marcadas, bem marcadas. Cartas marcadas. Mensagens na parede do banheiro. Marcas do tempo, um tempo que é de outro estilo; diferente do das comédias românticas. Sem chegar a ser filme de terror, porque cachaça e cerveja deixam todo mundo alegre.

Repetecos. Com novos personagens. Casais brigando, baixinho, porque é aniversário, demonstrando consideração com o comando da festa. Pessoas que estiveram naquele mesmo pico, um ano antes, sem serem convidadas, e numa coincidência cinematográfica ou musical, reaparecem para… para sumirem, logo em seguida, deixando o comando da festa atordoado. Além de entender que não dá para controlar tudo, aniversário é bom para sacar que não existe coincidência. Complicado? Quem sabe no ano que vem você entende.

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Não chega a ser uma conexão

As manobras que a gente precisa fazer às vezes para não apertar a mão de alguém, né? Mesmo que às vezes nem haja nesta escolha tanta certeza. O cara pode ficar perdido entre aqueles dois caminhos: um que a placa descreve como certa a opção de tocar outrem. Um segundo, uma outra placa, ali, bem do lado, que avisa sobre o risco do que será absorvido mesmo que o toque seja acidental. É muita coisa para a gente decidir, o tempo todo.

O que faz uma pessoa colar um adesivo num banheiro público? O que faz alguém remover de um banheiro um sticker que estava lá, muito de bobeira mas com o compromisso, talvez, de animar mijões e mijonas das mais diversas origens. É mais fácil a gente perdoar quem coloca ou quem tira? Perdoar é fácil? O que é o perdão? Gente que cola pedaços de papel ou plástico por aí não deve estar preocupada com o perdão de ninguém. É intrigante tentar achar motivos que fazem alguém colar um troço numa caixa de metal que fica bem no alto de um poste. Mijões e mijonas não devem se divertir com aquilo porque fica muito no alto.

A falta que pode fazer, veja só, não só um adesivo mas, também, o contato com o pessoal que te vende aquele café especial. Um pacote se esvaziando pode ser o gatilho para alguém pensar na relação que se forma, depois de alguns anos, entre duas pessoas, mesmo que os encontros se limitem a dar-o-dinheiro-pegar-o-pó. Às vezes, dá para subverter o protocolo. Como quando a entregadora, em pé num balcão de bar onde marcou o encontro com o cliente, fala sobre uma cerveja escura que está vendo na geladeira e que a faz lembrar-se de uma irmã mais velha. Um rolé que começa com uma promessa de pó de café pode render uma cerveja, uma descoberta, uma história de família. Sem esquecer de olhar a porcaria do Instagram, que ninguém é de ferro.

Um aviso que chega muito em cima da hora, no laço, e por isso — mais do que matar uma vontade — faz a gente querer ainda mais alguma coisa. Uma ampulheta em que a areia escorre tão rapidamente que o observador pode chegar a visualizar, na parte inferior, uma espécie de aspirador de pó. Não de pó de café. De pó rosado, que é a cor da areia que passa pela cabeça no escriba, no momento em que a frase é montada. Areia cor-de-rosa, ampulheta com duração de seis minutos. Meia dúzia de minutos. Meia dúzia de frustrações, de encontros que não se confirmam. Porque o tempo é curto. De quanto tempo a gente precisa para tomar um café? Quando você fala “Vamos tomar um café?”, está pensando em quanto tempo?

O moleque pede água. Não se bebe adesivo. Ainda. Do lado de dentro do balcão, o atendente do bar finge não perceber a mão que estava esticada, buscando um aperto, uma saudação. Ao menos, rolou a água. Uma sede chegou ao fim. Para bom amarelador, meio sorriso amarelo basta.  Para bom corredor, meio café basta. Para quem está atrasado, meia corrida não resolve. Para quem entende a mão e não recebe uma mão de volta, um copo d’água pode virar um balde de água fria. Em dias de chuva, a água fica ainda mais gelada. Em cada curva, um adesivo que a gente não esperava.

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Boteco Connection #12 — Santa dança

Pode ser que a chuva tenha contribuído para azeitar as engrenagens e, assim, acionado os flashes de memória de Godie Boy. Talvez ele precisasse lembrar de coisas boas, em vez de ficar pensando no amigo que havia partido semana passada por causa de uma treta depois de um jogo de futebol. A moça de azul e branco, do outro lado da rua, claro, também colaborou: mobilizou a atenção do cara, talvez construindo a base de histórias para, quem sabe, serem contadas daqui a duas décadas. Ela se movia como se fosse música. Ela era música. Vai entender. Mas o que aconteceu foi que… Num piscar de olhos, Godie Boy saiu da laranjante Praça São Salvador do apocalíptico 2023 e pegou uma passagem até a Santa Teresa de 28 anos atrás.. Estávamos indo em direção ao século passado, compadre. Que chuva era aquela!?

“Eu tinha 18 anos e era a primeira vez que ia a Santa Teresa. Pro Simplesmente, tá ligado?”, perguntou/desafiou, como se fosse um rapper. “Existia rapper, em 1995?”, brincou, antes de lembrar sorrindo de um Seu Jorge na calçada “esticando o copo pra pescar um gole de cerveja quando via uma garrafa vindo do balcão”.  Lembrou de Dulce, que segundo ele na época era dona do bar, e de quem depois tornou-se amigo. “Era uma noite daquelas em que a gente não queria ficar na calçada. Tinha saído da Tijuca, com os amigos, já estava todo mundo calibrado. Mas a gente queria cerveja. Era um balcão de madeira.”

O sorriso se alargou quando Godie Boy começou a explicar que sua relação com aquele bairro é muito estreita. Íntima. Intensa. Longa. E tudo por causa de Teresa, que ele conheceu justamente naquela noite. Olha só o nome dela. “Ela se chamava Teresa, cara. Tinha começado a tocar uma música do The Doors. E ela me olhou e perguntou: ‘Vamos dançar!?’ Sabe aquela ‘Riders on the storm’? Era essa…” Números entraram em cena para dar detalhes ao encontro, como que fazendo tudo ganhar precisão: “Eu tinha 18. Ela tinha 36. Tinha o dobro da minha idade, cara! Eu fui para Santa, dancei com Teresa, e comecei a frequentar o bairro. Conheci várias coisas por lá. A gente ficou. Eu todo animado, naquela primeira noite, achando que ia ter de tudo, mas ela falou que estava na casa dos pais, com a filha, e o que aconteceu foi que a gente só se beijou. muito, ali… Os amigos dela era ainda mais velhos. Eu era muito moleque.”  

O século passado parecia ter sido mesmo muito divertido para GD. Ele emendou contando que foi neste mesmo bar que reencontrou duas moças de Itu. Duas que havia conhecido num acampamento em Trindade. As meninas tinham confessado que queriam vir para o Rio estudar teatro e, anos depois, na boa e velha ST, eis que GD revê as duas… não como frequentadoras, mas, sim, como funcionárias do bar. Aí, as histórias ganharam o terreno da malandragem numa perspectiva menos edificante: “A gente pedia uma cerveja. Vinham duas e mais uma caipirinha. Elas deram muita moral pra gente. Dormia lá, quando o bar fechava, num sofá. Bons tempos.”

Alguém chega perto, como que atraído pela vibração da história do “garoto”. Godie Boy tinha se transformado num moleque, revisitando brincadeiras de décadas passadas. Mesmo quem pegava o bonde andando acaba se divertindo. Uma alma qualquer pegou o telefone e youtubeou para achar uma versão de “Riders on the storm”, o que deixou todo mundo impressionado com os ruídos de chuva que vinham da gravação. Aquela tarde era nossa. Geral garoteando. Engrenagens rodando que era uma beleza.

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Que calor!

Quando Douglas era moleque, chamavam-no de Hot-Doug. Na verdade, era só um cara que falava aquilo, mas fazia isso com tanta frequência que às vezes parecia que o apelido tinha colado. Pouca gente entendia. O Douglas, que era um moleque em situação de rua, era dos que menos entendiam. Quer dizer, não conseguia ligar bem formalmente os pontos, a semântica e a significância, porque estava acostumado a lidar com a insignificância, com a agora famosa e (meio na-moda, muito comentada) invisibilidade. Mas o garoto sabia/sentia que o gringo que se referia a ele daquele jeito tinha alguma “sensibilidade”, algum “interesse”.

Douglas conseguia fugir da babação de ovo que de um modo geral percebia o pessoal exercitar para lidar com essa galera vinda de fora. Estava na rua mas não era bobo. Ou não podia ser bobo. Enxergava algum interesse por trás daquelas palavras, daquela boca, daqueles olhos, daquela cabeça coberta por cabelos dourados. Os cabelos do gringo chamavam a atenção de Douglas. O corpo esquio do menino, os dentes surpreendentemente brancos pra quem mastigava joelhos e empadas e quibes com tanta frequência, o cabelo desgrenhado e o queixo quadrado chamavam a atenção do forasteiro.

Zap! Zooot! Pow! Woool! Bang! De repente, tinha crescido. Rápido. Como se desse um salto. Havia caído em alguns buracos, e, sim, tinha conseguido levantar-se um pouco mais forte. Continuava magro. E tinha encurtado e adotado de vez o apelido, que virou tag: Hot. Douglas agora era o Hot. O Hot-Doug de um ano e pouco atrás estava uns bons dez centímetros mais alto, com alguma altivez. Perdera um pouco da “tranquilidade” com que conseguia se aproximar das pessoas e que, ao longo do dia, lhe garantia boa quantidade de salgadinhos e refrigerantes. Por sorte, ainda não tinha perdido nenhum dos dentes, que seguiam surpreendentemente brancos.

O estrangeiro e duas mulheres que moravam no 59, Diná e Ruiva, tinham tentado fazer o menino seguir carreira militar. As duas preferiram não entender, ou não foram mesmo capazes, quando ouviram-no confessar que gostava de gente fardada. Quando o jovem que viram crescer ia completar a idade certa, recorreram a um pessoal da assistência social do município e conseguiram os documentos necessários para que ele se alistasse. Dizem na rua que a única exigência era que Douglas ficasse, por três meses, num certo abrigo. Isso era necessário para que pudesse comprovar residência fixa. Estava tudo certo. Farda garantida. Um futuro na vida. O trio Gringo-Diná-Ruiva mobiizou-se para que isso acontecesse. As duas fizeram promessa. Mas Douglas já não era Douglas, nem Hot-Doug. Era o Hot e não conseguiria ficar tanto tempo sob um teto.

O trio continuava achando estar diante de um menino. Aparentando cansaço, declarando frustração, começaram a planejar para o “pupilo” uma vida de modelo. O fã de fardas foi quem fez a sugestão e as duas toparam. Conseguiram “convidá-lo” para uma pizza numa lanchonete que ficava perto do abrigo. Ele argumentou, quer dizer, deu uma ideia e disse que perto do abrigo não seria uma boa. Mas o trio achou por bem insistir. Achavam que Douglas deveria aprender a lidar com seus medos. E Hot aceitou. Eram 19h, quando os quatro se encontraram, na calçada. E dali dava para ouvir os gritos que vinham de dentro do abrigo. Não era possível saber se eram só zoação, se havia alguém levando um sacode. Seria possível apostar que havia alguma dor envolvida, ali, naquilo tudo. Hot olhou para o trio e perguntou se em vez da pizza podia pedir um joelho. Foi o que rolou: um joelho e um refri.

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O sobrevivente

Nas imortais palavras de Wander Wildner, “Boa sorte, boa morte”. É assim que o sempre-Replicante, atual punk-brega, ícone-ídolo dos corações revoltados de outrora e agora porta-voz de suspirantes-crentes-no-amor terminava “Boa morte”, faixa da sensacional fitinha do grupo Sangue Sujo (da época em que WW era mais “só punk mesmo”). O cassete morreu, mas, por sorte, podemos usar o YouTube para comprovar a existência da máxima. Sorte? Morte? Palavras que, claro, não surgem à toa. Confissões chorosas que podem, sei lá, saltar duma mesa bem ao lado, são capazes de anunciar que o fim está próximo. E no fim das contas — como também diz a letra — “Um dia qualquer no fim das contas você vai morrer”.

Rebobinando ainda mais, e ainda mantendo a atenção ao que vaza da conversa na vizinhança, o escriba revive/constata o drama de Aloisio Dantas, ou Alolô, como zoavam os amigos antes de jogarem pra cima dele o terrível Já-Morreu. Ah, nada como uma reunião de amigos de colégio (suspiro) para conseguir inspiração. Como cresce um garoto, depois de ganhar um apelido assim? Naquela época, não chamavam isso de bullying. Era só sacanagem mesmo. Talvez por isso tenhamos nos transformado num país campeão na formação de psicólogos. O curso atualmente é dos mais procurados, como apontou uma edição da ainda — e surpreendentemente — viva “Folha de S. Paulo”.

Sermos campeões no número de dentistas não fez de nós, ao longo de décadas passadas, uma nação menos boca-suja. Vamos ver o que o pessoal da Psicologia vai conseguir, nas próximas eras. Se serão capazes de ajudar a gente a lidar melhor com a inevitabilidade do Fim. Ou, o que já pode ser um grande adianto, a aproveitar as pequenas mortes. Como no francês, sabe? Pequena morte, sacou? Sacou?

Vestir o paletó de madeira virou assunto banal. Há para isso a contribuição do jornalismo-lixo dos programas televisivos de depois do almoço. A gente diz “jornalismo-lixo” porque o jornalismo mais romântico não sobreviveu para ser/manter-se fã de Wander Wildner. Morreu faz tempo, o pobre coitado. A morte parece hoje tão líquida quanto as relações. Não vão achar absurdo, daqui a um tempo, escolher quem vai morrer através de um aplicativo. Se as pessoas escolhem seus pares passando dedos em telas de telefone, daí para usarem o mesmo método para apontarem quem irá desta para melhor é um pulo. Quer dizer, um clique. No século passado, o Schwarza — eita cara bom de matar gente na grande tela — protagonizou um filme em que um troço mais ou menos assim acontecia num show de TV. Qualquer semelhança com os programas de hoje em dia depois do almoço não é mera coincidência.

É claro que a Inteligêntsia sempre vai poder bater no peito bronzeado e eventualmente bem agasalhado para dizer que a Morte faz parte do jogo. Ah, a Inteligêntsia e seu desprendimento. Ah, a Inteligêntsia e suas referências. Vão dar um jeito de desenterrar “O sétimo selo”. Se bem que vão tirar isso do grande caixão da História mas, apesar de — OK — ser uma grande fita, quem é que vai ter paciência de assistir ao que fez o Bergman, hoje em dia, para depois discutir a respeito? Isso morreu! Nem os psicanalistas fazem mais isso.

Ninguém vai ficar pra semente, como garante a tiazinha do bar, enquanto faz pular as chapinhas dos litrões que os eternos estudantes pediram para a nova rodada de ressurreições. Depois de amanhã, ela diz, com cara séria, “é aniversário de morte da minha irmã”. Um momento de silêncio. E alguém levanta um brinde em homenagem a dona Marli. Beber para jogar Luz no caminho de alguém. Taí. Uma hora alguém ia achar uma coisa boa pra fazer com essa história toda de Morte. Saúde!

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Bu!

No caminho para a Lapa, uma coleção de personagens-situações de dar inveja em qualquer Rick Drekard. “Blade Runner”, cara, “Blade Runner”. O bom e velho… Turistas na escadaria. Gentrificação anunciada em mais um beco. Palavras surgindo na ida e fugindo na volta como que para garantir que não haverá registro. Crenças ensaiando um rascunho descontrolado. Explicações em todos os cantos, quase aos gritos. Uma mentira como sinônimo de roubo. Sol dando pinta de que vai deixar chover. Este é o nosso Show Sambapunk de Rádio.

O papel que o tiozinho usa para embrulhar as flores, no sábado, ali na feira, lembra a folha que cobria o pão de antigamente. Hoje em dia, pão é só em saquinho, praticamente. As flores deram mais sorte do que as bisnagas. Seu Zé e o Moleque cobrem tudo direitinho para garantir a elas alguma proteção. Antigamente, na volta para casa, o pão ficava descoberto com facilidade. O que será do pão, no futuro? O que será da flor, no futuro? O papel, pobre coitado, nem vamos perguntar sobre o que vai acontecer com o papel.

A pequenina ensaiando uma expressão de extremo desgosto, diante de um vídeo de entrevista ao qual o pai assiste. O coroa percebe e num flash vai até a própria infância, quando tinha vontade de voar ao ver o velho-mais-velho-ainda dando moral para comentaristas de futebol na TV. Todas estas teorias quântico-físicas devem ter algum fundamento, quando o caô é voltar ao passado. Sim, você já ouviu esta.

Ninguém jamais vai cantar “Modern love” como o próprio Bowie. Outro dia, pulava do celular uma versão caprichada/carregada nos graves para “Take my breath away”, mas, porra, aí é outra coisa. Outro naipe, não resiste ao corte.  Os amores modernos. Sempre os modernos. Sempre os amores. Sempre Bowie, esteja onde estiver. Seja o fantasma que for. Será que algum fela fez versão disso no esquema pagode? Até que pode ficar engraçado, hein!? Este é o nosso Show Sanbapunk de Rádio.

Há quem se assuste com facilidade. Há quem diga o tempo todo que se assusta com facilidade. Há a facilidade para assustar os outros, hoje em dia. Há os sustos que fazem a gente quase se mijar. Há os cheques sustados, mas aí é bem outra coisa. Por falar em coisas, há aquelas com as quais a gente não se acostuma. Não tão assustadoras quanto aquelas com as quais não estamos dispostos a nos acostumar. Geral está muito mal-acostumado. Até o próximo programa.

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Boteco Connection #11 — O monstro e o lago

Parecia perdida, ela. Olhos arregalados. Ofegante, sim; ofegante mesmo. Sem saber para onde ir e algo exausta. Suada. A calçada, que se lhe apresentava meio como um labirinto, carregava também traços bastante familiares: os poucos pinos perto do meio-fio, que estavam ali para inibir os motoristas de táxi em seus devaneios secundaristas, faziam o papel de pilastras, de tão grandes que tinham ficado. Tudo isso, sob o olhar da moça; antes de ela investir no primeiro gole de cachaça. Com as unhas dos pés e das mãos bem pintadas de vermelho, olhava para os lados como se aguardasse o Minotauro, que apareceria para gritar “Bu!”. Como que numa tentativa de manter-se lúcida, fez a piada: “Será que o Minotauro faz ‘Bu!’ ou será que faz ‘Mu!’?” Estava falando consigo mesma, mas no esquema voz-alta-mode-on. Foi a chance que o maluco do lado esperava para tentar engatar uma conversa: “Me dá também uma cachaça dessa, dona Marlene! Igual à da moça…”

Vera respirou aliviada. “É só um mané, não é o Minotauro”, comentou, depois de mexer rapidamente no painel e garantir voz-alta-mode-off. Na avaliação cordial dela, estava lidando com alguma espécie de monstrinho. Mas não teve medo. E resolveu jogar. Deu ao boy uma chance, revisitando uma gracinha antiga, apostando que assim assustaria o cara: “Oi, eu sou a Vera. Estou aqui à vera.” A parada era dizer isso bem rápido, meio que se fazendo de bêbada, meio que disparando um teste. O cara não mordeu a isca. Respondeu com um pobre “Nino. Prazer.”

A tiazinha que controlava o outro lado do balcão fingiu não ouvir o pedido do rapaz. Porque ela sabia que era cliente de gelada e não de quente. Queria evitar problemas. Vera, por sua vez, começou a falar num “lago escuro”, onde ela não tinha certeza se “pulava ou não”. Foram uns bons 15 segundos de silêncio, depois daquilo. Até que sob a sombra de um certo juízo o rapaz retomou suas práticas mais tradicionais: “Dá uma cerveja, dona Marlene. Bem gelada.” Ele e a tiazinha se entreolharam e trocaram um breve sorriso, e, estando ambos calibrados para voz-alta-mode-off, trocaram também uma frase que parecia ensaiada: “Não pode mais chamar de canela de pedreiro…” Riram alto, como se às vezes esquecessem das regulagens que fazem em seus painéis.

Cada um com seu goró. Como tinha que ser. Minotauro ia, à-vera vinha, taxistas iam, taxistas vinham e… o lago escuro não saía da pauta. Ela insistia no assunto. Falava de mergulhos. Citava encruzilhadas e igrejas. Apontava dúvidas. Mencionava o pai. Olhava inquisidora para os olhos do rapaz e falava em “transferência”. E quando ele começava qualquer frase ela devagarinho batia palmas, como que conduzindo um samba; sugerindo uma melodia, um andamento. Num primeiro momento, Nino não percebeu aquilo; mas, depois do segundo litrão, muita coisa foi ficando mais clara. Vera no entanto não parecia disposta a abrir mão de controlar o jogo. Na cabeça da moça, era o seguinte: se do outro lado do ringue não estava o Minotauro, não havia o que temer. Ou o que perder.

Em jogos de sedução, com ou sem monstros míticos, chega uma hora em que um dos dois lados pode mudar de estratégia. O que dizer sobre uma brincadeira que ocupa uma preciosa e disputada mesinha de calçada por três horas? Dona Marlene não dizia nada, ainda mais que o casal estava bebendo bem. Já eram vistos como um casal. Compraram amendoins dos moleques que passaram vendendo a iguaria. Investiram em paçoca, gomas de mascar; ajudaram uma mãe que precisava de fraldas para o bebê. O Minotauro estava demorando demais. O monstro estava perdendo. O playboy tinha chances de vencer.