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Mattoso contra as instagra(mes)mices

Tem essa história de os textos curtos  (e vídeos etc na mesma medida) de hoje em dia nos oferecerem/provocarem uma carga dopaminérgica viciante. Que nos torna preguiçosos. Porque a “satisfação” vem rápido. É um engole-e-cospe ou nem-digere-direito-mas-expele-logo de fazer gosto. Glauco Mattoso, no seu recém-lançado “Promptos Ponctos contos” (Editora Casa de Ferreiro, 2023), rema contra esta maré. Não que sejam demasiado longos, os 20 textos do livro. Mas é que aquela história de ele adotar a escrita revogada pelo Estado Novo, de Getúlio Vargas, em 1943, é uma tijolada desaceleradora e provocativa nas nossas fuças acostumadas com as instagra(mes)mices de hoje em dia. E isso é só o começo.

A “Nota introductoria” serve de aquecimento. “Fazer prosa poetica não é difficil para alguem ja callejado no verso decassylabo. (…) Mantenho o meu historico de bardo bastardo, goliardo, obsceno. Pouco me importo com os falsos moralismos. (…). Nossos tempos revivem a barbarie dessas eras antigas e desfazem illusões dum mundo mais humano que, durante algumas phases dictas democraticas, suppunhamos  que fossem ja conquistas da civilização. São peresciveis, contudo (…).” É isso mesmo, tem “y”, tem “ph”, tem “ll” e o diabo. É Mattoso matando a pau, como ele mesmo dirya. Ou Dyria. Dyrya, talvez? Tem coisa que parece que só Glauco Mattoso sabe.

E há tempos é assim. Décadas atrás, quando brincávamos todos de jovens fanzineiros-revolucionários, GM já era um pouco mais cascudo. Reconhecido como baluarte da poesia marginal, bom de lábia, ele (muito respeitosa e educadamente) nos convidava a uma troca. Mandávamos, numa folha de ofício, um contorno de nossos pés e recebíamos, por exemplo, uma edição do “Manual do pedólatra amador”. O livro tinha este título, na primeira edição (1986). Depois, o negócio mudou de nome, a despeito da correção (e “propriedade”, e “inocência”) explicada por ele para o uso daquela palavra na capa. Hoje em dia, é “Manual do podólatra amador”. Tem na Amazon, pra quem quiser ver e comprar. O autor pode ser considerado pervertido, mas não é bobo.

“O Manual…” tinha aquela pegada SM. Porque naquela época só se usava estas duas letras para se falar do que hoje se chama de BDSM. Os livros deste paulistano de 1951 passeiam muito por este tema/universo. E com “Promptos ponctos” não é diferente. “Ponctual caso de Myrlayne”, “Ponctual caso de Heloiza” e “Ponctual caso de Hamilton”, os três primeiros, deixam isso bem claro. “Bem claro” é o jeito de dizer, porque eles deixam é tudo bem sujo, na medida para o leitor apreciador desta estética fetichista. Vamos chamar de “estética fetichista”. Além disso, para quem é fã do Yoda de “Star Wars”, tem ali no miolo da prosa um jeito de escrever que parece trocar a ordem mais corriqueira das palavras, do mesmo jeito que faz aquele feioso mestre Jedi. Divertido fica.

A frequência com que aparecem personagens com deficiência visual faz crer que há algo de autobiográfico na obra. Ou fantasioso, com muito foco do autor no próprio umbigo. O que é bem Mattosiano. Prepare-se para um conteúdo bem XXX. Laranja-mecanicamente falando, um prato cheio. Pode ser que alguém reclame de “muita erudição”. Mas, pô, é o Glauco, e ele está nessa há muito tempo. A erudição, ou o que se pode chamar assim, fica em segundo plano. Em primeirão está a devassidão.

A escrita é um espetáculo à parte. Você tem que ler com calma. “Mandaram-me tirar a roupa toda, aptaram minhas mãos attraz das costas…” Olha esse “aptaram”! Os contos surgem dando a impressão de serem frutos de relatos obtidos pelo autor. Isso traz um verniz de, digamos, formalidade para o que é revelado ali naquelas páginas. Assim como um cheiro de mofo, de antiguidade. E junto vem um cheirinho de verdade. É tudo tão possível que às vezes se torna assustador. É Glauco Mattoso, o bom e velho Glauco Mattoso. Pronto para escandalizar e/ou satisfazer a tradicional família brasileira.

N.E.: @ed.casadeferreiro, no Instagram.

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Boteco Connection #9 — Fordismo

O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo.  O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.

Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…

Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.

Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.

Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.

“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”

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1990 ou O-Ano-Da-Pantera (quase, quase Boteco Connection #9)

Ela não queria apelar para as ferramentas de pesquisa na internet. Não era uma decisão fácil, esta, porque o telefone estava ali, o tempo todo. Mas mantinha-se firme, mesmo que fosse uma tentação mergulhar no protagonismo de uma daquelas sequências em que, após uns poucos segundos de concentração, arrumando os cabelos bem pretos, ela pegaria o aparelho e, com a firmeza de quem enxerga muito bem, deslizaria as unhas pintadas de vermelho cintilante pela telinha. Andava digitando com o dedo até um pouco de lado, por causa do tamanho das garras. E assim como não era exagero falar em “garras”, também não era demais falar dela como uma pantera. Mas estamos apontando alguém que pretendia voltar aos dias de “jovem felina 1990”, quando tinha 9 anos e foi, com o pai, ver um jogo de futebol na maior cidade do país. Não qualquer jogo. Mas aquele que faria com que ela trocasse de time. O que será que uma ferramenta de busca nos mostraria como dicotomia se fôssemos opor “jovem felina 1990” e “pantera 2022”?

Puxar pela memória tinha começado como uma diversão. Sempre que esbarrava com alguém que parecia entender de futebol, ela engatilhava o assunto, mencionando a conquista de um título, naquele ano, e comentando resultados. Era boa com placares históricos, o que excitava marmanjos metidos a entender de futebol. Recheava suas crônicas — porque eram mais do que memórias — falando da eleição de uma mulher nordestina para a prefeitura de São Paulo. E enchia-se de orgulho recapitulando o episódio em que, no metrô, desafiou skinheads para proteger o irmão mais novo. Enxergava bem e tinha boa memória, a pantera. E se divertia, diante de barbudos entendedores do jogo da bola, vendo-os sem resposta para questões que, ela deixava claro, trariam grande felicidade para ela. Mobilizava os caras, sem muito esforço.

Na verdade, mais do que conseguir respostas, mais do que ser capaz de organizar na cabeça um almanaque definitivo sobre aquele jogo, ela elevava, a cada menção/tentativa, um castelo de paixões — pelo time, pela vida, pelo mar, por…. Uma construção que ia ficando sempre mais e mais imponente. Depois da pandemia do início dos Anos 2020, nossa personagem parecia estar diante da necessidade de tomar uma outra grande decisão, algo que poderia ser tão transformador quanto trocar de time, e talvez por isso mais importante do que conseguir respostas definitivas eram as chances de visitar, mentalmente, os sabores de um novo horizonte.

Ela enxergava bem e pensava também muito bem. E, ao contrário do que tinha imaginado até ali, talvez fosse possível trocar de time mais de uma vez na vida. O tempo passa. Ou, como ela dizia parecendo querer desconcertar seus interlocutores: “O tempo tem o próprio tempo. É assim que se constrói intimidade.” Se um só pensamento preenche a imensidão, também com esta medida se ergue uma fortaleza, um castelo.

Pegou-se ontem começando uma conversa, numa calçada de boteco. Tinha testemunhas, gente que já a tinha visto armar aquela arapuca. Houve até quem comentasse: “Pô, de novo, esse papo de 1990? Sério?” Era uma deixa, tal tipo de comentário, para que ela mostrasse outro talento: o sorriso. Sorria que era uma beleza. E invariavelmente seguia, firme, na prosa. Esse cara da calçada era mais ou menos da idade do pai dela, e fanático pelo mesmo clube. Sentindo o desafio, o malandro não recuou: “Mas a gente jogou nesse estádio, em 1990?” A mulher respondeu que “Sim… E a gente perdeu…” E foi quando ouviu o que precisava, sem saber que era aquilo que precisava: “Ah, é por isso então qu’eu não lembro.”

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Contagem regressiva para o festival

Atravessou a rua, sem olhar para os lados. Uma aposta bem pouco prudente, pensou, no ato, mas a torcida do time adversário bloqueava o trânsito, ele sabia; havia um cálculo naquele espasmo de amor-mucho-mucho-loco. O movimento não era a esmo, não. Tirou a camisa suada, como se bastasse aquilo para realizar o sonho do abraço demorado. Estava um pouco bêbado, mas… Mas acreditava merecer aquele encontro com palavras colhidas na hora, fresquinhas. Acreditava num futuro com sorrisos de aprovação. Não qualquer aprovação, mas uma daquelas que a gente alcança já no terceiro trimestre e sugerem vagabundagem de primeira no que resta de ano letivo.

Acertar a entrada da chave, sem olhar para a fechadura era mais difícil do que cruzar a rua. Equilibrar-se para tirar as meias sem precisar apelar para a banqueta, idem. Chegar a uma conclusão sobre a necessidade de novos jatos de desodorante, também. No primeiro lugar da lista de impossibilidades estava “Lembrar em que fase estava a Lua”, então, o negócio era continuar arriscando. Pegou o celular e com cuidado vasculhou o aparelho. O protetor de tela estava quebrado e dificultava as coisas. “Pra que facilitar, né?”, perguntou-se, sabendo que não haveria resposta. “Aposto que ela está por perto. Vou mandar mensagem”, programou-se.

Tinham tomado juntos um café, no dia anterior. E pela primeira vez — ele achava que tinha sido a primeira vez, pelo menos — escolheram docinhos diferentes. “É bom que as diferenças apareçam”, digitou. Mas antes de mandar a mensagem, percebeu que não era aquilo que deveria ser dito num momento regido pelo sonho do abraço demorado. “Porra, maluco, tá de bobeira!?” “Calma, calma…” E aí sim digitou, de uma tacada só, uma daquelas mensagens de tela inteira, em que falava uma coisa, emendava com outra, tentava uma piada e não dizia o que queria de verdade.

“Tropix” estava esparramado no prato do toca-discos. Era como se não tivesse coragem de tirar de lá aquele álbum. “Ela trouxe um disco, cara!” Ninguém sabia, mas, ultimamente, quando precisava de um pico de coragem para fazer ou falar alguma coisa, um dos recursos era colocar aquela bolacha para rodar. Outra possibilidade era apelar para uma dose de Januária, mas, ali, naquela hora, não, era melhor manter alguma sobriedade para o instante do abraço. Precisava de um abraço. Só isso. “Só isso tudo!”, como diziam na época do ensino médio. Alcançou alguma concentração e escreveu: “Muita, muita saudade!”

Toda essa conversinha aí sobre amores líquidos, os fantasmas que o ajudaram a atravessar a rua, a conta que ficou pendurada no bar, o moleque com a camisa do tamanho errado mas do time certo lhe pedindo dinheiro e ele dando. A conversa dos escolados esclarecidos e suas verdades bem arrumadinhas, a banca de jornal que virou tabacaria, essa gente que entende de cervejas e de vinhos e de comidinhas. Por um instante, ficou em dúvida: o botão certo era o de fugir ou o de enviar?

Um scroll-down-sem-fim, um benza-Deus-por-um-rim. O Zé dizendo pra segurar a onda que o sofrimento ia ter fim, Maria concordando e dizendo que sim. Que falta passou a fazer um doce de limão. Como podia um percurso pesar tanto assim? Uma intimidade tão desejada que era como se tivesse sempre existido, uma prova em que dez era a única nota possível. “Vamos almoçar então?” “Vamos. Vamos, sim.”

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X, quadrado, triângulo, ondinhas, raios

Era alto e gordo, o Comandante. Carregava esse apelido mas era engenheiro, não milico. Do time dos escrotos, sem dúvida, tratado como “doutor” pelos homens que trabalhavam com ele. Tinha sido “presenteado” co’a chance de ser padrinho do Tito, filho do seu empregado mais antigo. “Presenteado” era como dizia a mãe dele, que enxergava naquilo uma chance de aprendizado para o filho. Com o vocabulário fofo dela e um considerável apanhado de orações, rogava por um cabra mais gente fina. Ao longo de 20 anos, o gesto mais carinhoso dele na direção de Tito tinha sido deixar para o garoto o troco que ficou de 300 gramas de salaminho que mandou comprar na padaria do outro lado da avenida. Foi também uma das poucas vezes em que a “plateia” que sempre o cercava deixou de seguir a regra de rir das “graças” que pintavam: naquela ocasião, apostou que o garoto poderia não voltar da missão porque atravessar a avenida era coisa perigosa para uma criança daquela idade.

Aos sábados, aquele escroto vestia uma fantasia de discotecário. Ou quase. Ficava numa parte da sala da casa, onde acumulava discos antigos, a maioria de rock progressivo, e se enlameava naquele repertório. Ninguém o incomodava. Porque não ousariam fazer isso, de um modo geral, e também porque a seleção musical era mesmo bem chata e repetitiva. No Dia do Juízo Final dos Discotecários, se for julgado também nesta categoria, terá garantido um dos lugares na lista de Piores de Todos os Tempos. Voltava sempre às mesmas músicas, aos sábados, entre 14h e 17h. Pode-se dizer que tinha um set bem amarradinho. Gostava de se sentar numa poltrona que ficava perto da janela, e, durante aqueles 18 intermináveis minutos de duração média de cada faixa, fazia de conta que estava pensando. Tinha a mania de vestir-se de preto, nestas ocasiões. O que fez com que uma amiga da mãe — porque ele morava com a mãe — achasse que se tratava de uma assombração. Aconteceu porque ele estava agachado no canto, perto da prateleira onde ficavam os LPs, e ali havia pouca iluminação. Uma pessoa desavisada, embalada por aquela música danada de ruim, poderia ter a impressão de que se tratava de um ser de outro mundo, em vez de um vacilão daqui da Terra mesmo.

Os discos ficavam organizados numa prateleirinha e também num armário. Na prateleirinha, os compactos. No armário, os grandões: de 10 e 12 polegadas. Todos os formatos ficavam abrigados em plásticos novos, que protegiam as capas em que invariavelmente o Comandante escrevia seu nome com esferográfica azul. Era neste detalhe que ele entregava que além de mau DJ era também um colecionador porcalhão. Arrumava os bolachões numa ordem que não era alfabética, mas, sim, de preferência. Da esquerda para a direita, de cima para baixo. O disco que mais ouvia era o primeiro da prateleira de cima. Se algum louco fosse surrupiar uma bolacha dali e pegasse a primeira de cima, estaria levando o disco mais ouvido pelo pior DJ do mundo. Entrar na casa para subtrair dali qualquer coisa seria tarefa não muito simples mas, sim, possível para alguém que conhecesse a rotina de (falta de segurança) daquela condomínio de casas.

O mané quase teve um troço quando pegou o preferidão dos sábados e, ao tirar da capa, deu de cara com uma bolacha marcada por um X que deve ter sido “esculpido” com um bom estilete, canivete ou faca. Chamava a atenção a simetria com que os dois lados do LP tinham sido marcados. Parecia casar direitinho, um X com o outro do lado oposto. O autor da obra deve ter ficado orgulhoso. Mas a reação do Comandante, surpreendentemente, não passou dos olhos arregalados. Manteve o que pode-se chamar de “calma”,  na sequência. Decidiu pegar o segundo disco da fileira e, neste, encontrou riscada de cada lado a figura de um quadrado. Sentou-se na cadeira e lembrou do Tito, que segundo o pai, havia viajado para o Nordeste. “De Niterói para o Nordeste é um pulo grande”, havia pensado, quando ouviu do empregado a informação. Ainda sentado, experimentando aquela sensação completamente nova, não sabia que ainda encontraria nos três discos seguintes figuras geométricas diferentes.

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Doce de quarta

“Uma máquina ocupada. Outra ali… Duas máquinas vazias. Será que aceitam cartão?” Pensou nisso, apressou o passo e não acreditou quando viu naquele guichê de metrô um ser humano desempenhando o papel de homem que vende bilhetes. Tinha que aproveitar a oportunidade. Era minuto de sorte, só podia ser. Ninguém queria saber do ser humano, pareciam todos preferir as máquinas, e, a julgar pela pressa com que pegou a placa em que se lia “FECHADO”, também aquele ali atrás da estrutura aparentemente blindada não pretendia mais contato com seus “semelhantes”. Pelo menos não naquele início de noite. “Dá tempo de o senhor me vender um unitário?”, foi a pergunta que ele ouviu. E Ivan, como indicava o crachá, respondeu “Sim, mas vai ser o último; vou colocar a placa só pra não ter dúvida.”

Por um momento, o humano-comprador pensou se seria o caso de contar ao Ivan que estava a caminho de uma adega, em Copa, para comer ostras, beber cerveja e cachaça e, o que era mais importante, encontrar uma doceira. Imaginou a estranheza com que ele ouviria aquela informação. Quase uma confissão, na verdade. Temeu que fosse muita coisa para compartilhar, ali, naqueles poucos minutos em que os dois teriam a chance de interagir. Distraiu-se, o humano-comprador, ao amadurecer na velocidade da luz o que lhe pareceu um novo conceito para “interação”: “Momento de contato entre uma pessoa que vende algo, como um bilhete, e alguém que quer comprar aquilo.” Respirou fundo, para não se perder em conceituações desnecessárias naquele momento e retomou o diálogo com o humano de óculos, cabelos crespos, pele negra, crachá e três canetas no bolso do uniforme.

Com a placa de “FECHADO” entre os dois, parecia haver alguma proibição no ar. Haviam combinado, isto é, Ivan-o-humano-vendedor, dissera que aquela seria sua última venda. “Que seja então a melhor venda”, deixou escapar o comprador, antecipando no guichê um pouco do que esperava que fosse o encontro com a doceira. Encontros entre seres humanos eram mesmo capazes de liberar coisas escondidas. Era assim, no passado. Blade-runnermente falando, pode ser que não seja bem assim, daqui a algum tempo. Então, o negócio é aproveitar. Agora. Aproveitar os doces. Aproveitar as cervejas. Aproveitar as cachaças. Aproveitar as ostras. Aproveitar os beijos. Aproveitar a noite.

O comprador estava se distraindo muito. Voltou de onde estava graças às batidinhas que Ivan deu, com uma de suas canetas, no vidro que o separava do resto do mundo. “Desculpa, seu Ivan, viajei, aqui. Quando é mesmo?”A resposta veio rápido: “Seis e cinquenta.” “Tem troco pra dez?” O silêncio pareceu um “Sim” nos ouvidos do comprador e ele pegou uma nota de 20. Fez o dinheiro escorregar pela brecha que servia para isso, pedindo desculpas ao homem que precisou recorrer a uma caneta para concluir seu trabalho, coisa que não devia ser muito comum. Dinheiro vai, cartão/bilhete vem. Um obrigado, um por-nada. Dois sorrisos, ambos aparentemente satisfeitos. Um fim de expediente, uma promessa de doce.

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O herói da estação

Um estêncil “incômodo” com o qual a gente precisou se acostumar a conviver é o “Não desvie o olhar”. Um desagrado bom/necessário, nos dias de hoje, parecendo pretender convidar ao pensamento crítico. De um modo geral, fica(va) em postes, na parte baixa, rente à rua. Como que numa alusão à população que rasteja também ali naquela altura. Eles, os pedintes. Pessoas em “situação de rua”, como dizem. Quando A. parou na esquina, naquela sexta, estava perto de um daqueles sinais. Pensava na Primavera, sobre a qual tinha ouvido muita gente falar, naquelas últimas horas. Era o primeiro dia da estação. Estava avexado, mesmo antes de encarar a sentença pintada em azul. Não queria ler. Queria ser lido. Chegou a imaginar que, talvez por isso, para se mostrar, estivesse parado, ali naquele cruzamento. Mas não teve jeito: foi incapaz de fingir que não viu.

Tinha aprendido que ficar parado numa esquina representa risco. O ensinamento viera de um policial, anos antes. O sujeito disparou num bar algo do tipo “O cara fardado não pode ficar de bobeira, pra não virar alvo”, e, mesmo sem farda, fez todo mundo ali entender que estava diante de um prisioneiro de uma daquelas roupas. Quase todo mundo fingiu que não ouviu. Um flash silencioso e nada mais, foi o que aconteceu. A bebida é mesmo um ótimo entretenimento, às vezes. Mas o bagulho ainda ecoava nas entranhas de A., anos depois. “Porra, cadê as flores?”, reclamava, ali, parado, sem conseguir decidir se estava mais amolodado com as lembranças ou com a frase na grande estaca de concreto. Fingir, isto é, representar não era assim tão fácil.

Parecia ter chegado a hora de tornar mesmo aquele momento um troço mais cinematográfico. Como? Acendendo um cigarro. “Mesmo sem Zippo, funcionou”, concluiu, rindo sozinho, quando uma mulher parou e pediu informação sobre uma rua. Sentiu-se, aí, sim, um ator num filme. Era como se naquele momento a Primavera tivesse finalmente começado para ele. Respirou como um herói: preocupado com o pessoal jogado nas calçadas, conhecedor dos nome das ruas da vizinhança, com a camisa bem passada. Ah, sim: calculou um movimento para ajeitar a roupa. “Herói tem que ser um pouco vaidoso”, desculpou-se, num cálculo-pensamento na velocidade da luz. Ouviu um bem-te-vi. E, ainda com aquela aceleração impressionante, rimou com quero-te-ouvir. “Ela quer me ouvir, é isso que ela quer…”, falou, deixando confusa a interlocutora que, com olhos um pouco arregalados, apressou o passo e saiu daquela cena.

Desconcertado, A. olhou em volta. Não sabia bem o que estava procurando. Era como se o silêncio o isolasse. Pensava em por que os carros tinham parado de fazer barulho. Tentava entender como as crianças jogando bola do outro lado da rua conseguiam fazer aquilo em silêncio absoluto. Teve medo de perder os super-poderes. Olhava para todos os cantos, como que num daqueles passatempos de antigamente, o Jogo dos Sete Erros. Foi quando viu uma mulher e duas crianças, protegidas por uma marquise de prédio. “Porra”, soltou alto, colocando a mão no bolso enquanto ainda não estava completamente certo do que dar a eles como almoço. Não queria perguntar. Ia fazer surpresa. O bem-te-vi de novo cantou, naquele instante, e meio que confirmou que como herói era aquilo mesmo que A. deveria fazer.

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Última chamada

As coisas na igreja andavam mornas. E em casa o termômetro de Didi costumava ficar longe daquela área vermelha — a da quentura extrema — que a gente via nos desenhos animados de antigamente. Bota longe nisso. Tinha uma barraca de cachorro-quente, em frente à vila. Aterrissava ali, naquele projeto de bênção e riqueza, após a jornada como faxineira com um uniforme que a invisibilizava. Gostava da palavra “aterrissar”, ela; porque fantasiava o glamour de frequentar o aeroporto e desfilar com mala de rodinha. Sonhava com o alto da pirâmide. Não era à toa que lua após lua enfrentava o trinômio igreja-faxina-salsicha. Quando falava “aterrissar”, e sempre dava um jeito de fazer isso, chegava a sentir nas mãos o amendoinzinho que daria para as crianças, como se em vez de “ganhar no voo” ela tivesse lembrado de comprar aquilo. Queria o prazer dos deslizes, das culpinhas da classe média alta. Talvez também por esse motivo aceitasse os bombons do Manga.

Ou “Velho Manga”, como dizia sua mãe. A coroa era a única que a chamava de “Edil” e parecia fazer isso de zoação. Da mesma forma que praticava co’o Manga ao acrescentar o “Velho”. Didi não aceitava o jeito como a mãe se referia a ela. Mas engolia. No caso dos doces do Manga, pegava mas… Não comia. Nem dava para as crianças. Porque todo mundo sabe que no avião não distribuem bombons. E por não acreditar nas boas intenções do vizinho. Temia algum feitiço, ali naquele mimo. Era uma situação que ela considerava engraçada, até. O cara tinha uma mania que a deixava preocupada/intrigada: dava os doces e no dia seguinte perguntava: “E aí, ficou tudo bem? O bombom não fez mal, não, né?” A primeira vez em que aceitou, lembrava bem: tinha recebido uma ligação da Legião da Boa Vontade e a Valéria, com quem ela se desculpou por não poder fazer qualquer doação, após alguns minutos de papo, plantou em Didi uma semente de adivinha o quê. De boa vontade, caramba! Aquela coisa de LBV parecia um sinal. E isso deu ao safado da vizinhança a chance de ver seu bombom trocando de mãos.

Uma: “Mas o Manga é muito amigo daquelas mulheres ali de cima.” Duas: “O Manga, todo mundo comenta, tem aquele foguinho; é um velho foguento.” Três: “O Manga finge que é santo, mas de santo não tem nada.” Quatro: “Isso só pode ser coisa daquelas rameiras lá de cima, que ficam de olho no Tuta. É flecha!” Ela engatilhava esta série de frases e sempre empacava na última. Porque Tuta era seu marido. Era um dos responsáveis pela baixa temperatura na vida de Didi. Mas era marido. “Meu marido, caramba!” era às vezes a quinta frase da série. Tuta fazia Didi ter vontade de xingar. “Caramba”, pra ela, já era palavrão. “Se não pode falar na igreja, é palavrão”, apontava, sem ter certeza sobre isso ser mesmo uma regra no templo. Manga, por sua vez, alimentava na moça uma certa desconfiança., diferente dum convite ao xingamento. Às vezes, fazia rapidamente uma comparação, sem perceber que estava calculando: achava que quando escalasse a pirâmide seria mais fácil conviver com alguém como o Manga do que com um tipo como o Tuta.

“Tuta” lhe parecia um apelido esquisito. Não entendia por que a mãe não acrescentava/mudava nada ali naquela alcunha. Não decifrava também por que a velha ficava do lado do cara, quando surgia alguma pendenga. A última tinha sido quando ele, no encontro natalino do ano anterior, disse que daria de presente a todos ali uma prova da sua importância. Isso numa festa em que não havia álcool, hein! Contou então que o pessoal lá da parte de cima da rua estava pensando em abrir uma lanchonete, na esquina, e o lugar seria chamado de “Tuta Lanches”. Didi arriscou xingar: “Caramba!” Mas só conseguiu fazer isso uma vez porque a mãe ordenou: “Deixe o homem falar!” E ele continuou, explicando que aquilo aconteceria porque “Tuta é um apelido que traz sorte.” O projeto seguiria sem autorização do dono da “marca”, primeiro, porque ninguém havia pedido autorização; segundo, porque ele também se declarava generoso.

Uma nova série de sentenças havia se formado, depois daquela passagem da porcaria do Papai Noel. Uma: “Por que o negócio ia se chamar ‘Tuta Lanches’ se todo mundo sabe que nessa história quem dá duro sou eu?” Duas: “O Tuta acha que é só ir no Ceasa sábado pra comprar queijo e fica tudo certo?” Três: “Tem que encostar o umbigo ali, na chapa, cortar todo dia a cebola pro molho do cachorro-quente, tá?” Antes da quarta, Didi foi interrompida por um garoto que de súbito soltou uma que fez a mulher sorrir: “Didi, Didi, vou embarcar num podrão. Dá um cachorro-daqueles-com-tudo.” Ela gostou particularmente do “Vou embarcar”, claro. Chegou quase a sentir o trepidar das rodinhas de uma mala, e pensou em oferecer o lanche de presente para o moleque. Era assim que pretendia subir na vida. Com gentileza. “Sem o Tuta, caramba!”, disse, ruborizando em seguida e sem coragem para levantar a cabeça e descobrir se haveria alguma reação na cara do jovem cliente. Decidiu não cobrar pela iguaria, como que para de desculpar por causa do palavrão. O garoto não entendeu, mas aceitou o presente. Se naquele instante chegasse o Manga, ela pensou, talvez aceitasse um bombom. E talvez também desse de troco um sorriso diferente. Se pá, era hora de embarcar.

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Zero-vinte-e-um-nove-nove-um

Sofria com aquela bobagem de esperar alguma coisa dar errado, sabe? Ela era assim. Falou sobre isso com o cara. E comentou que naquele dia estava experimentando um prazerzão. Viu os olhos dele ficarem diferentes e continuou: “Você concordou com o lance que sugeri e aí… É que eu sou meio louca, entende? Fica tudo pior, na vida de uma louca.” Teve certeza de que o parceiro não havia sacado nada. Pegou dali e insistiu: “Quando a gente está feliz, ou pelo menos acha que está, o que dá quase no mesmo, a mana que é meio louca acha que vai acumulando pontos que lá na frente vão dar numa grande M.” Tinha acabado de ter a sensação, ela, de que aquilo tudo era bobabem e, melhor, de que estava esquema-tudo-tranquilo. Isso porque havia lido a mensagem do sujeito em que ele dizia “Ok, vamos viajar, neste fim de semana”, e manteve os batimentos numa levada razoável, sem precisar do respira-calma-concentra-respira-calma. Mais: ficou serena e feliz. Usou até a palavra “Feliz”. Fez uma pausa e se comentou: “É estranho falar ‘mana’? Mulher pode falar ‘mina’, né?”

Tinha pensado que aquelas dores que andava sentindo representavam uma chance de alcançar aquilo que a humanidade como um todo não tinha conseguido, mesmo com a pandemia: melhorar. Chamava de “pandemia própria”, a sentença do médico, que indicava a necessidade de um “pequeno procedimento cirúrgico”. Sofria com isso tudo e se escorava na vontade de brincar de ser artista. Anotou uma frase — “O sonho da pandemia própria” — e prometeu transformar aquilo num cartaz, assim que estivesse recuperada. Rapidinho, deixou escapulir: “Não, não é pra gastar mais dinheiro, porra!” Também em relação ao tratamento tinha medo, mas achava que havia mesmo uma chance de vencer aquilo. E fez mais uma promessa a si mesma: de escrever aquela máxima nos banheiros femininos dos botecos que tivesse a sorte de frequentar, num futuro próximo. Tinha aprendido com o namorado a se divertir com canetões.

Pixies, Martinho da Vila, Blur, Gal, Beatles, Novos Baianos, Nação Zumbi, Cake, Céu, Breeders, Miles Davis. Ouviu coisa pra caramba, na véspera do feriadão. Achava que com música construía um clima, tornava uma cena mais palpável, aliementava uma esperança, passava o tempo, esquecia a culpa, resistia ao respira-calma-concentra-respira-calma, aproveitava mais o respira-calma-concentra-respira-calma, preservava a libido, bloqueava sugadores anônimos e outrem nem tão anônimos assim, controlava as despesas com chocolate e castanhas e vinhos e queijo, aceitava os banhos quentes nos quais quase invariavelmente achava demorar mais do que devia. E o que parecia melhor que tudo: resistia à ideia de ter um gato. Tinha conversado com o namorado sobre Led Zeppelin e ficou incomoda com a zoação do cara, que classificou os tiozinhos como metal farofa. Quase ficou puta. Mas sorriu quando ele pediu perdão, explicou que ela era “muito nova pra gostar de Zeppelin” e disse que topava ouvir o álbum favorito dela. Já estava clareando, quando combinaram isso, antes de uma nova agarração e da chegada do sono. Pensou em arrumar confusão dizendo que Dead Kennedys também é som de velho. Antes de dormir, lembrou do médico e do tratamento. Pensou na vida curta. Queria ter coragem para levantar e tomar um banho quente e demorado. Queria dormir só quando o sol já estivesse alto. Mas ficou ali com o cara. “Ainda bem que ele não ronca.”

“Não precisa de acompanhante, não. Você vai se internar na segunda logo cedo e no dia seguinte já deve estar liberada.” Foram as palavras do médico. Ela não entendia como tinham conseguido marcar tudo tão rápido. E por que não precisava de acompanhante? Será que o boy insistiria na ideia de acompanhá-la? Será que não haveria chance de novos banhos quentes, num futuro próximo? Queria ter a chance de aproveitar a água sem culpa. Já não acreditava na polarização na política, evitava hambúrgueres na loja do palhaço, às vezes abusava do vinho, queria ter mais tempo, precisava de mais tempo, não era justo que tudo terminasse ali daquele jeito, sem que tivesse ouvido sequer um álbum do Led Zeppelin com o maluquinho. “Caralho, tô chamando o cara de namorado. A gente tem que tomar um banho quente juntos. A gente já morre, todo dia. Mas é pior quando a gente se mata, todo dia…” Respira-calma-concentra-respira-calma.

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Sol-sol-mesmo

Estava escuro, quando ela tirou da bolsa aquele pequeno objeto. Parecia uma aliança. Vinha alguma coisa escrita, ali no miolo: dois nomes. Palavras que a gente teria lido com muito mais facilidade se naquele instante houvesse sol. Quer dizer, tinha sol. Mas a gente aqui está falando do sol-sol-mesmo e não da luz e do calor super-intensos que uma pessoa é capaz — mesmo durante o sono — de soltar ao longo da madrugada. Depois de fazer as contas, porque além de palavras o negócio trazia também números, havia um resultado: 25. Isso, 25 era a resposta. Todo mundo ali precisava de uma resposta, não dava para esperar pelo sol-sol-mesmo, que demoraria ainda um pouco para aparecer.

Estavam mais uma vez mergulhados na madrugada, quando mesmo com a voz baixinha a gente é às vezes capaz de gritar/rezar por explicações, quer dizer, respostas. Ou sol-sol-mesmo. Na madrugada, sussurros são como gritos para dentro. Como gargalhadas desentupidoras. Palavrinhas ácidas que vão corroendo os canos; às vezes, dando à carcaça uma chance de reviver movimentos que há muito andavam esquecidos. Depois de experimentar isso, você pode ter certeza de que os minutos que precedem a alvorada são os melhores para os bons desentupimentos. Desobstruções que se tornarão inesquecíveis. Há quem diga que novas vidas nascem sempre neste período do dia.

Com o resultado decorado, o que não foi difícil de conseguir, mesmo um pouco bêbados, tinham dado o primeiro passo sugerido no mapa. Havia um mapa. Ela o tinha tirado da bolsa logo depois de mostrar a ele a aliança. Houve também um minifestival de piadas. Porque ela acreditava ser impossível mostrar uma aliança a um homem sem fazer alguma graça, sem desconversar, sem embaralhar expressões, sem deixar pelo menos por um momento o interlocutor confuso, quase perdido, duvidando da sua capacidade de entendimento.

Ainda havia alguma coisa, na garrafa. Já não estava gelado, como antes. Mas era alguma coisa. Serviu bem. Empurrou, por uns bons instantes, bem pra frente, qualquer coisa que pudesse parecer uma sentença. Sentiram de perto a respiração um do outro. De olhos fechados, viram olhos fechados. De olhos abertos, viram algo que não conseguiam entender. Iam mais fundo. Suavam, mesmo na reta do ventilador. De vez em quando, rapidamente, fugiam dali, e se perguntavam por exemplo por que o ventilador não dava conta das coisas. Mas voltavam logo, porque o suor não era um problema.

“O que a gente faz com o 25?” “E agora, a gente tem o 25?” Não foi exatamente a mesma frase, mas quase… Ela sabia a resposta, porque tinha o mapa. Mapa é o jeito de dizer, pra parecer aquela coisa de caça ao tesouro. Estava mais para manual de instruções. A resposta dela veio antes que ele tivesse chance de insistir no questionamento. Ele tinha esse problema do questionamento, coisa que deixava a menina irritada. “Vamos ver o que está escrito na linha 25”, orientou, experimentando em seguida uma leve irritação diante daquilo que considerou ser uma expressão de desgosto dele. O homem se explicou, o quanto antes: “Cara… Olha essa letrinha, parece que é ainda menor do que a da aliança. Como a gente vai conseguir ler o que está escrito aí?” Foi quando o sol-sol-mesmo nasceu.