Atravessou a rua, sem olhar para os lados. Uma aposta bem pouco prudente, pensou, no ato, mas a torcida do time adversário bloqueava o trânsito, ele sabia; havia um cálculo naquele espasmo de amor-mucho-mucho-loco. O movimento não era a esmo, não. Tirou a camisa suada, como se bastasse aquilo para realizar o sonho do abraço demorado. Estava um pouco bêbado, mas… Mas acreditava merecer aquele encontro com palavras colhidas na hora, fresquinhas. Acreditava num futuro com sorrisos de aprovação. Não qualquer aprovação, mas uma daquelas que a gente alcança já no terceiro trimestre e sugerem vagabundagem de primeira no que resta de ano letivo.
Acertar a entrada da chave, sem olhar para a fechadura era mais difícil do que cruzar a rua. Equilibrar-se para tirar as meias sem precisar apelar para a banqueta, idem. Chegar a uma conclusão sobre a necessidade de novos jatos de desodorante, também. No primeiro lugar da lista de impossibilidades estava “Lembrar em que fase estava a Lua”, então, o negócio era continuar arriscando. Pegou o celular e com cuidado vasculhou o aparelho. O protetor de tela estava quebrado e dificultava as coisas. “Pra que facilitar, né?”, perguntou-se, sabendo que não haveria resposta. “Aposto que ela está por perto. Vou mandar mensagem”, programou-se.
Tinham tomado juntos um café, no dia anterior. E pela primeira vez — ele achava que tinha sido a primeira vez, pelo menos — escolheram docinhos diferentes. “É bom que as diferenças apareçam”, digitou. Mas antes de mandar a mensagem, percebeu que não era aquilo que deveria ser dito num momento regido pelo sonho do abraço demorado. “Porra, maluco, tá de bobeira!?” “Calma, calma…” E aí sim digitou, de uma tacada só, uma daquelas mensagens de tela inteira, em que falava uma coisa, emendava com outra, tentava uma piada e não dizia o que queria de verdade.
“Tropix” estava esparramado no prato do toca-discos. Era como se não tivesse coragem de tirar de lá aquele álbum. “Ela trouxe um disco, cara!” Ninguém sabia, mas, ultimamente, quando precisava de um pico de coragem para fazer ou falar alguma coisa, um dos recursos era colocar aquela bolacha para rodar. Outra possibilidade era apelar para uma dose de Januária, mas, ali, naquela hora, não, era melhor manter alguma sobriedade para o instante do abraço. Precisava de um abraço. Só isso. “Só isso tudo!”, como diziam na época do ensino médio. Alcançou alguma concentração e escreveu: “Muita, muita saudade!”
Toda essa conversinha aí sobre amores líquidos, os fantasmas que o ajudaram a atravessar a rua, a conta que ficou pendurada no bar, o moleque com a camisa do tamanho errado mas do time certo lhe pedindo dinheiro e ele dando. A conversa dos escolados esclarecidos e suas verdades bem arrumadinhas, a banca de jornal que virou tabacaria, essa gente que entende de cervejas e de vinhos e de comidinhas. Por um instante, ficou em dúvida: o botão certo era o de fugir ou o de enviar?
Um scroll-down-sem-fim, um benza-Deus-por-um-rim. O Zé dizendo pra segurar a onda que o sofrimento ia ter fim, Maria concordando e dizendo que sim. Que falta passou a fazer um doce de limão. Como podia um percurso pesar tanto assim? Uma intimidade tão desejada que era como se tivesse sempre existido, uma prova em que dez era a única nota possível. “Vamos almoçar então?” “Vamos. Vamos, sim.”