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Gelatina sempre super punk

A sociedade estadunidense não aguenta por muito tempo uma pedra em seu sapato. Coloca essa pedra na cadeia. Ou se acostuma a ela, transformando-a em objeto de consumo e exemplo de que a Democracia deles funciona. Jello Biafra conseguiu não mofar atrás das grades, sob a acusação de distribuir material inapropriado para menores. Aconteceu, quando éramos todos jovens, por causa do encarte em “Frankenchrist” — lembra? Só o título do álbum, num período da História em que havia mais tutano inclusive entre os reaças, já era motivo de muita falação/preocupação. O Senhor Gelatina nunca parou. À sua “aglomeração” mais recente, que já vem de alguns anos, deu o nome de The Guantanamo School Of Medicine. Esteve no Brasil, ele, com esta banda, e pudemos vê-lo no palco usando uma roupa pintada de maneira que fazia parecer que ali há sangue… Quem sempre foi fã dos Dead Kennedys não tem do que reclamar em relação à pérola recém-lançada por JB & TGSOM: “The last big gulp” (algo como “O último grande gole”).

Falar de um “lançamento”, nestes tempos internéticos, é uma coisa estranha ou, no mínimo, bem diferente. Com a avalanche de informação, é certo perceber o tempo demasiado curto para dar conta de tanta coisa. Estamos falando aí de uma impossibilidade; tá ligadx, né? Mas… filtrar uma música assim é um remedinho para matar saudades de uma época em que a audição de uma faixa (um single) ou um álbum tinham um impacto diferente nos ouvidos e nos corações do público. A Alternative Tentacles, já há algum tempo, rendeu-se ao marketing digital e manda informativos por e-mail avisando sobre seus lançamentos. E um dos mais recentes tem a ver com Mister Gelatina em pessoa, mesmo que ele não apareça no “clipe”. Ah, sim: falar em Alternative Tentacles pede que se faça uma alusão ao excelente slogan da gravadora: “Tormenting the stupid since 1979”. Numa tradução livre/carioca, fica algo do tipo “Zoando os manés desde 1979”.

“The last big gulp”, mesmo vista e ouvida no YouTube, consegue prender a atenção do velho fã do punk californiano oitentista. A sobreposição de imagens aparece pro quarentão/cinquentinha como uma referência direta às colagens de Winston Smith, o cara que fez o Jesus crucificado em dólares na capa de “In God we trust” e tantas outras coisas boas a partir da teoria do corte-e-cole. Em algum momento do vídeo, a gente pode ver o Trump com o rosto preenchido por arame farpado, numa nova versão para a capa do já mencionado “Frankenchrist”. Fazendo questão de ser bem atual, Ani Kyd Wolf (que aparece nos créditos como criadora do vídeo) nos mostra um monstrinho verde que — adivinha! — é o nosso já velho conhecido Corona Vírus.

Trump é uma das grandes “estrelas” do filminho. Surge sacaneado de várias maneiras. Mas o vídeo é mais do que um míssil na retaguarda do republicano. É uma semente de pesadelo da cachola do classe-mediano que tira alguns minutos do dia para preocupar-se com questões ambientais. Quando esteve no Brasil para o lançamento de um livro no qual era um dos personagens mais importantes, Jello Biafra aproveitou para soltar a voz, na Eco-92. E uma das coisas que comentou na época era que estava representando o Earth First, grupo então conhecido por ações de “terrorismo ecológico”. A palavra “terrorista”e suas variações ainda não causavam a preocupação que despertam nos dias de hoje.

Assistir ao vídeo de “The last big gulp”, na mesma medida em que diverte a gente e preenche o cérebro com uma pitada de fúria construtiva pode dar a sensação de que a luta está perdida. Termine de ver o troço e depois, veja se é capaz de decidir onde vai arquivá-lo: em “Viagem a um passado feliz” ou “Projeção de um futuro sombrio”. Esperava o que de Jello Biafra?

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Óleo básico

O Zé estava falando agora mesmo da Terceira Guerra Mundial. Tem que escrever assim mesmo, com maiúsculas, porque o cara empregou um tom bem sério. O Zé É sério. Comentou sobre a anticiência, sobre coisas que não são provadas, mas, apenas comentadas. “A anticiência dos nossos dias precisa ser absurda pra os computadores serem incapazes de entendê-la”, lançou, cabeceando ele mesmo logo depois: “E os discursos, nascidos sem cálculos, criam parâmetros que sendo bonzinhos a gente pode chamar de fantasiosos. TGM é isso.” Há também quem diga que o atual patamar da taxa de desemprego em países ricos é uma comprovação de que estamos vivendo a Terceira Guerra Mundial. Um vendedor de cursos online recorreu outro dia a estes números pra oferecer seu pacote de aulas. Será que o Zé compra esse tipo de coisa? Quantos terão caído nessa?

A conversa chegou aos robôs e eles foram apontados como os grandes personagens por trás da TGM. “Eles, que vão trabalhar pra sempre nos bancos.” Isso merece virar verso, tem peso para ser um pedaço de letra de música. A gente passa por aqui, por esta vida, mas rapidinho. Mas eles, os robôs, ficarão pela eternidade. Daqui a pouco, vai ter igreja vendendo isso; robôs que permanecerão no mundo para pagarem pelos pecados do humano SORTUDO que tiver conseguido adquirir um. Imagine uma época em que automóveis não serão mais os grandes sonhos de consumo.

Pode surgir uma treta aí, quando as bonecas infláveis reivindicarem seu direito ao óleo básico, querendo igualdade de condições/status com os robôs vendidos pelos templos — em suaves e abençoadas prestações mensais. Tudo com desconto em folha, para facilitar; imaginem! Em breve, a sofisticação cyber pode emprenhar a religiosidade com um detalhe impensável há até bem pouco tempo. Dá para imaginar que teremos grande oferta de modelos de terno e gravata. Um país que adora bandidos escondidos neste figurino, claro, vai achar a coisa mais normal do mundo “investir” em robôs vestidos assim.

Estamos diante de uma retomada do Philip-K-Dickianismo, quando a gente achava que já tinha usado todas as referências para reclamar da lama que nos borra a camiseta que deveria estar limpa para quem ainda não desistiu de encarar uma Smart Fit da vida. Com hora marcada, agora, para que sejamos montanhas de músculos re-al-men-te saudáveis, isto é, livres do Covid. Já houve quem, com alguma pretensão de ser humano-e-esclarecido, questionasse estes templos da boa forma, acusando aquele ambiente de criar… robôs. Profético, né, esse pessoal da psicanálise!? Mas a provocação não chegou a ganhar eco entre a intelectualidade. Nas mãos de um Fausto Fawcett, isso talvez rendesse um álbum.

Dirão alguns que falar sobre máquinas é falar do mesmo. Mas elas evoluem tanto que acaba sendo algo novo, porque jogamos luz sobre modelos fresquinhos. Máquinas carregam um princípio Tostines. Máquinas e Marcas, como essas “coisas” estão próximas, hein, caramba! Próximas, não. Podem ser tomadas como uma só coisa. As guerras estão aí para estimular as indústrias e o consumo, já tivemos toneladas de punkrocks, pelo menos duas gerações de anarcopunks explicando isso. Na Terceira Guerra Mundial, não seria diferente. Humanos de boa vontade concordarão.

Dick é o verdadeiro pai dos replicantes
Dick é o verdadeiro pai dos replicantes

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Padaria

Saudade parece que nunca anda sozinha. A falta que a gente sente de escrever ou de desenhar se emenda fácil, fácil, na falta que faz (convi)ver (co’)uma determinada pessoa. Numa época em que rabiscar pensando em alguém tornou-se um exercício muito mais comum e possível do que rabiscar olhando de perto para alguém, é bom achar uma maneira de lidar com elas, as saudades. Sobram os textos, às vezes, e sorte de quem consegue achar que isso é muito/suficiente.

Fica um pouco chato quando, quase clicando no link da sabotagem, o cara se pega fugindo da escrita, guiado por algum circuito da cachola em que aquilo se transformou numa obrigação. Saudade, quando vem, está longe de ser uma obrigação. É isso sim uma orca te perseguindo na praia, você sabendo que não está suficientemente perto da areia para conseguir fugir. É bom respeitar/aceitar o texto, quando ele surge, porque se aquilo escapa você provavelmente nunca mais conseguirá rever/repensar naqueles mesmos “moldes”. Textos mais do que nunca moldam saudades.

Com a poesia é a mesma coisa. Ou pior. Porque com os versos a gente pode ficar mais escabreado, juntando à possibilidade de registro o medo do ridículo. Se para provocar a gente diz que “fazer poesia é fácil, difícil é confessar que fez…”, imagina pensar poesia, e não escrever nada… No mundo ideal, seria ainda mais “confortável”. Mas o desespero de perder um versinho, um versinho que seja, pode ser também uma semente de ferida com a qual ninguém aí está preparado para lidar. Se disser que está, pode ser uma declaração que não passa de cagaço. Trocando em miúdos, é isso: cagaço.

Teve esta semana a história de um cara que, para lidar com a falta de tempo e a saudade, ocupava ainda mais as brechas que se lhe apresentavam. Isso. Não tinha tempo e tratava de ter ainda menos. Desandou a fazer pães. Cismou com isso e dizia aos manos que aquela “brincadeira” era uma espécie de meditação. Mais um louco-de-pandemia. Quando comia o resultado do trampo, da queima de um tempo que nem existia direito, ou quando distribuía aquilo entre amigues, relaxava. E percebia um alívio. Mas durava só um piscar de olhos, porque a onda era preencher todas, todas as brechas. Pra muita gente, não tem dado tempo de sentir nada.

Lidar com o tempo nunca foi fácil. Com a saudade, menos ainda. Nestes dias, a tarefa parece ter assumido ares ainda mais impossibilitadores. Porque a gente pode se pegar sem conseguir decidir se ele, o tempo, está passando rápido demais ou demasiado lento. No mesmo dia, você pode ouvir alguém dizendo que “já é Agosto” e uma esquina depois que “nem parece que já se passaram quatro meses de trancamento em casa”. O mundo precisa se decidir.

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Carbona aí, ó

Você pisca, Harry Potter completa quatro décadas. Pisca de novo e não acredita no tamanho da barba do Henrique Badke (voz), que junto com Melvin Ribeiro (baixo), Pedro Roberto (bateria) e Bjorn Hovland (guitarra) está lançando hoje uma música nova do Carbona: “Minha cabeça”. Badke, além de cultivar os pelos que lhe cobrem a cara, vem mostrando recentemente uma rica/constante produção musical, frutos que não parecem ser só por causa do plantio forçado no isolamento pandêmico mas, sim, desdobramentos de uma inquietação inerente ao punk/rock bubblegum que desde 1998 ele vem defendendo com o Carbona.

A faixa composta por Badke é fresquinha, deste ano que para muita gente merece o rótulo de “maldito”. E, sim, também, a música fala um pouco disso que a gente está vivendo. Diz um trecho: “Dentro da minha cabeça / Antes que’u enlouqueça / Aí fora tá osso/ Eu nem quero seguir/ Já que dentro da minha cabeça / Aconteça o que aconteça / Eu pego minha viola / Conto umas histórias / Sigo por aí / Eu pego minha viola / Toco três acordes / Saio por aí.”

É Carbona roots, rápido, divertido, podendo provocar uma invejinha em quem está parado só esperando que o tempo melhore. Capaz de comover quarentões, graças às imagens que incluem compactos em vinil, vitrolas, fita cassete, sujeitos tocando instrumentos. O clipe foi dirigido por Sergio Caldas. Uma ótima para quem quer animar a sexta-feira.

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Um brinde, Bebel

Para fugir da(s possibilidades de aglomeração), três caras marcam um encontro naquele que para o grupo é o boteco-do-coração. Em Copacabana, às 14h de uma terça-feira. Serão apontados como exemplo de vagabundagem e vão se orgulhar de defender a essência da carioquice. Sem falar que se os chopes forem como antigamente, tudo/muito terá valido a pena. É no que acreditam, estes irresponsáveis. O grande lamento é que neste horário o garçom preferido deles, o Beto, ainda estará em casa. A promessa de beber apenas três copos é isso, uma promessa. Em nome de velhos sonhos, que vêm se desfazendo, cumprir o escrito, mesmo se estiver escrito no WApp, está com tudo. Cumprir o combinado é o novo black. Mesmo de mentirinha. Mesmo para os irresponsáveis.

Outro black parece ser o zine novo do MZK. Está lá no Foicebook, um aperitivo, para quem quiser ver. Se é para a gente ser engolido pela WWW e ainda por cima ser acusado de dar piti, que o azul seja outro diferente daquele do Foicebook, né? Aquele troço lá só pra de vez em quando mesmo, para colocar o link de uma crônica ou outra e, sem querer querendo, esbarrar com desenhos de caras como o Maurício Zuffo Kuhlman. E do Sica. Também tinha um livro do Rafael Sica, anunciado lá. Tiragem baixa, acho que com assinatura. O minúsculo e o gigante, conforme disseram três décadas atrás, estão se confirmando como tendência. O minúsculo, que são caras como estes artistas aí, estão dando de dez nos gigantes. Esqueceram de falar nos miseráveis, naquelas palestras dos anos 90, e continuam esquecendo agora.

Para lidar com gigantes, vale seguir as dicas sobre como ludibriar o algoritmo. Tem uma história de visitar páginas feitas por pessoas com as quais você não concorda muito. E até mesmo fazer comentários. Porque assim afrouxam-se os filtros sobre o que te é oferecido na timeline. Que coisa, hein!? Perca aí uma tarde pensando, pra ver se encontra equivalente para isso nos tempos passados. Surge no ar a pergunta sobre a necessidade de ter filtros/algoritmos para oferecerem aquilo que vamos consumir/ler/ouvir/ver. Mas uma terceira acusação de piti ninguém aguenta. Desligar o aparelhinho está cada vez mais difícil. Dirão os esquerdopatas que “feliz era o porteiro, que mergulhava no radinho de pilha mas ainda tinha algum tempo para brigar sobre futebol”.

Naquele lugar em que se encontram gigantes, anões, blacks, whites, enfim, quem estiver de máscara e não se importar com xingamento… bem ali, estão os sonhos. Recorrentes, às vezes, e nestes dias de Blade Runner se materializando em cada esquina. Como as bonecas com aparência quase humana para quem se sente “só”. O Zé Sem Nome falava outro dia sobre robôs e testes feitos com robôs, sobre como isso desperta a compaixão de certos humanos. Pois é, Zé, a humanidade, está mais do que se afeiçoando às máquinas. Investindo neste tipo de “aparência” para si mesmo, facilita muito as coisas para a indústria. Eram proféticos os versos d’Os Replicantes, em “Astronauta”: “…Agora quando a lua cresce no céu/ Aperto contra o peito o coração de Bebel/ E abençoo toda a indústria eletrônica/ Por ter criado a minha nova esposa fiel/ E molho a garganta tentando me livrar/ Das últimas partículas de poeira lunar/ Bebel então percebe e começa a chorar/ E eu tenho medo que ela vá enferrujar…”

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Sem crachá?

O pessoal da Astrologia está dizendo que o Sol… Ah, passou rápido demais. Não deu pra pegar. Mas está fazendo sol, hoje, e esta minúscula no início, na sequência, não é “desrespeito”; é só pra aproveitar com mais intimidade. O pessoal da Astrologia também estava falando de Lilith. Mas a grande preocupação do dia é com a fiscalização. Os homens com crachás vão voltar e é bom que esteja tudo em ordem. Depois da ordem, vai ser o caso de torcer: para os caras terem alcançado um bronzeado legal e estarem bem-humorados. “Se o Sol está contente, também vale a pena a gente ficar”, dizem na internet os estudiosos dos astros. Fiscais pálidos, a gente ainda encara. Mas se estiverem azedos, aí…

Além da multiplicação de lives no Instagram e no Youtube, a rede mundial de computadores assistiu a uma revoada de aconselhamentos e cursos. De todos os tipos. Ontem, este escriba foi alvo de propagandas de uma série educativa sobre Magia. Ninguém quer problemas com fiscais e nem tampouco com magos. Vai ficar endinheirado, o sujeito que resolver montar um pacote de programas que ensine como lidar com representantes do Poder Público. Será que, na primeira aula, aquela gratuita, já seria o caso de pintar a dica de oferecer água ou cafezinho para começar a conversar depois disso? Que toque você aí dá para o empreendedor?

Talking Heads, a banda, tinha este nome numa alusão às cabeças que ficavam falando na TV. Hoje em dia, quando a TV parece ter ficado no passado, cabeças continuam falando e brigando por fama. E por dinheiro, claro, através de cursos (atualmente). Se for só fama, é bom o pessoal rever os sonhos porque parece época de se contentar com 15 segundos. Em época de pandemia, o noticiário faz a gente não saber se ainda tem 15 minutos de vida… E se vier um trocadinho junto, ótimo, claro. Imagina quando começar a fiscalização na WWW. Como será chamar para um cafezinho, via computador?

Não se tem mais notícia de concurso público. Mas, num passado não muito distante, todo mundo tinha um conhecido que estudava para ser aprovado em um. Talvez o poder do fiscal faça parte do emaranhado-inconsciente-coletivo dos nossos dias. Porque quando você se depara com um sujeito marrento, por exemplo, conhecedor de um determinado assunto, é como se ele fosse fiscal daquilo.

Imagina Fiscal de Hendrix, por exemplo. Existe. Teve aquele caso do amigo que, para testar o outro, desafiou: “Me diz o nome de uma música do Hendrix. Só uma!” Era uma daquelas antigas conversas sobre música, coisa comum de acontecer em botequim. E a prosa empacou, ali. Por conta da bebedeira, ou por desconhecimento mesmo, não houve resposta do desafiado e o desafiante, digo, o Fiscal de Hendrix, voltou para casa com a sensação de ter humilhado um adversário, alguém que havia vindo ao mundo para lamber-lhe as botas, glauco-mattosomente falando.

Era comum, antes da pandemia, a gente ouvir também a respeito do Fiscal da Natureza. Falar isso sobre alguém era como um xingamento. De leve, mas era. Melhor evitar a piada, porque ninguém quer ver fiscal ficando nervosinho.

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Sol e Lua

Falar em hiato, quando você tem menos de duas décadas de vida, tem a ver com aulas de português. Depois, é uma danada de uma lacuna no tempo. Destas que te deixam com uma folga de mentirinha e às vezes medo de pensar. Outro dia, numa tentativa de piada, um cara na rua comentou que o bom deste ano é que, em 2021, ele vai dizer que está com a mesma idade porque 2020 não terá feito parte da contagem. Não foi uma piada maravilhosa, mas serviu como tempero para este hiato que estamos todos vivendo. Naquele minuto, contribuiu com os humores de quem estava por perto.

O domingo foi de sol e havia muita gente sem máscara, na praça. Dona Marlene, num dos seus flashes de Rainha de Espadas, avisava que quem quisesse passar por ela para ir ao banheiro, ali no Salvatore Café, só tinha uma alternativa: cobrir a cara. As pessoas riam e obedeciam. Claro, né!? E na segunda vez em que se aproximavam não esperavam por um novo aviso, já abriam suas pochetes e sacavam seus paninhos com elásticos. Como tem gente usando pochete, meu Deus.

É tanta sede, tanta vontade de ir para a rua, que fica bem perigoso o risco de esquecer que o pesadelo ainda não passou. Não acabou. Mesmo que haja menos discurso notadamente pessimista, entre um gole e outro, ainda podemos contar com os matemáticos do apocalipse avisando sobre os números que caem no fim de semana porque ninguém contabiliza direito a coisa, e, na segunda, tudo volta a subir, “sem falar nos países X e Y, onde o vírus parece ter voltado com força e já se ensaiam novos períodos de isolamento”.

Sorrisos, mais do que nunca, revelam-se os melhores entre todos os entorpecentes. Ainda mais quando, por sorte, mesmo dispensando o paninho na cara, muita gente lembra de evitar os abraços. Ah, tem o detalhe dos cotovelos. As pessoas usando os cotovelos umas para cumprimentarem as outras. Será que dobram a quantidade de álcool ali, naquela região, quando chegam em casa? Fica a dica. Poderemos dizer, no futuro, que houve uma época em que as pessoas não se davam as mãos, para que fossem apertadas, mas, em vez disso, faziam um movimento que parecia o de um lançador no beisebol para oferecerem seus cotovelos e assim celebrarem um encontro. Isso tudo em praça pública.

Dez por cento de desconto em que mesmo, hein!? Um carro de som, anunciando promoções numa churrascaria, faz o favor de lembrar todo mundo que já é segunda-feira. Podemos contar ainda com um pouco de sol, por sorte. Há também uma mudança de lua garantida no calendário, para mais tarde. Mas, talvez por ser início de semana, dia de prosseguir com o trabalho mesmo sem saber bem como… Surge na boca aquele gosto amargo de hiato. Esse troço que não passa.

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Ás Mascarado

Era uma brincadeira que aparecia no desenho animado do Snoopy: o cachorro malandrão em cima da casinha vermelha, com uma máscara, como se estivesse pilotando um avião. Nestas ocasiões, ele era o Ás Mascarado. A gente se acostumou com pessoas usando esses troços que escondem boa parte da cara? Alguns de nós talvez sim. Outros tantos infelizmente não se renderam à ideia de que é preciso mesmo aderir ao lance. Aqui, uma aparição do “artista de rua” mais malandro, endinheirado e marqueteiro do planeta. Um verdadeiro Ás Mascarado. No metrô de Londres, pra lá de protegido, deixando uma de suas mensagens. Postado ontem no @banksy. Esse ratinho já é clássico… Quem aí não investiria uns dez cruzeiros pra ter um na parede da sala?

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. . If you don’t mask – you don’t get.

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Já prepara aí

Preparação. É uma coisa que você consegue perceber no cinema. É quando — literalmente — preparam a gente pra algo que vai acontecer. Mostram, sei lá, um bicho morto e você com razão saca e pensa: “Ih, vai dar M…” Afinal, M de cara pode não fazer muito sentido, pelo menos para quem ainda se liga em histórias bem contadas, então, num bom filme, te preparam direitinho para a M. As samambaias que sumiram ali no número 39, as begônias que o Capitão Nando percebeu que faltavam lá no 57 e… bom, o desaparecimento da samambaia que enfeitava ali o cantinho da praça foi a gota d’água. “Tem alguém surrupiando as bichinhas”, pensou o Capitão.

Ele não era capitão de verdade. Mas gostava de heróis, ou um dia tinha gostado do Capitão Marvel, e brincava com a esposa quando chegava em casa: “Capitão Nando na Área!” Ela respondia com um “Shazam!!” Isso mesmo. Assim como há as Loucas dos Gatos, há os Defensores das Verdinhas. Ele preferia, por uma questão meio moral, chamar as plantas de “Verdinhas” em vez de “Bichinhas”. Mas quando deu por falta da Samambaia o sofrimento foi tanto que não conseguiu controlar o vocabulário. Sabia que deveria ter controlado, porque, com superpoderes, vêm as super-responsabilidades; inclusive as semânticas. Sim, nosso herói também gostava do Spider-Man.

Nando, isto é, Capitão Nando vinha andando, não muito atento, pela Senador Correa, aquela rua que dá bem na praça, quando seu Instinto Verdinho fez seus pelos se eriçarem. Viu perto da igreja uma velhinha que agachava lentamente, porque é assim que a maioria das velhinhas faz, levando a mão na direção de uma pobre e indefesa Espada de São Jorge que alegrava ali o jardinzinho em frente à casa do Seu Zeca. Apressou o passo, agradecendo aos céus por ter este superpoder. Resolveu recorrer ao supergogó, quando viu que a velhinha era rápida no agachamento e a Espada de São Jorge ali sozinha não tinha a menor chance naquela briga. “EI, SENHORA!” Tirou a máscara, sem que ela se desprendesse da orelha direita, falou, e colocou de volta.

Esperou que ela respondesse com “Senhora, não…” e completasse com sua alcunha de vilã. Mas Dona Melina não foi além de ficar um pouco ruborizada. Levantou-se, ela; como quem assume que está fazendo algo que não é mesmo aquilo que os padres ensinavam nas missas de antigamente. É, os ensinamentos de antigamente, nas missas, deviam ser melhores que as de hoje. No Largo do Machado, por exemplo, já se viu sacerdote que fala até em armas em tom de “piada” quando quer repreender catequista. Mas aí é outra história, assunto para outro super-herói. Deus, talvez.

Dona Melina arrumou o vestido verde-claro, com as mãos sujas, e soltou um palavrãozinho quando percebeu que isso tinha deixado uma mancha na roupa. Foi bem no instante em que o Capitão Nando estava a uma distância em que era possível ouvir o que saía da boca da inimiga recém-descoberta. Era a vez de ele ruborizar um pouco. Herói e Vilã que ruborizam, frente a frente, não é coisa que se vê todo dia. Parecia que a batalha ia ser boa. Lembrava cinema de verdade porque de alguma janela saíam os versos de “Agressão repressão”, com os Ratos de Porão. Devia ser do apartamento do Ari, que é conhecido como metaleiro mas ouve na boa umas coisas de crossover. Música também serve como preparação, dá um clima. O filme, quer dizer, a chapa estava esquentando.

“O que que a senhora tá fazendo aí? Deixa a plantinha! Solta a plantinha, por favor!”, desafiou Nando, o Capitão dessa vez sem afastar a máscara. Foi quando pensou em usar no rosto algo que trouxesse uma frase do tipo “Salve as Verdinhas!”, mas desistiu logo porque podiam achar que ele estava se referindo a dólares e não a plantas. Pensaria mais tarde noutra mensagem para estampar. Era hora de manter o foco. “Geeente, eu só tava pensando em levar a bichinha pra colocar num vasozinho…”, devolveu a anciã, sem para isso retirar seus acessórios pandêmicos: máscara de pano com compartimento para filtro descartável e aquela proteção que se assemelha a um para-brisa.

Era uma vilã que sabia se proteger. Mas o aparato dificultava-lhe a comunicação. O Capitão tinha a resposta, mesmo sem entender bem o que tinha saído da boca daquela “bandida”: “No Cadeg, a senhora acha várias. Lá, todas elas precisam de alguém que cuide delas…” Disse isso e sorriu, satisfeito com a dose de sarcasmo, velocidade e firmeza que havia colocado nas palavras.

Coadjuvantes se aprumaram e ameaçaram uma aproximação, nem todos com máscaras, mas todos sim com celulares nas mãos. Foi quando herói e vilã perceberam que não estavam num filme e, melhor, não queriam virar manchete de um daqueles programas tristes de TV aberta, à tardinha; quando são apresentados casos que invariavelmente dão em desgraceira. Dona Melina praguejou contra o defensor da Espada de São Jorge, de novo vermelha mas desta vez de raiva, e foi saindo. O Capitão Nando atravessou a rua, sem encarar os outros atores. E os dois sumiram rapidinho da cena. Como num filme.

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Defcon o quê?

Tava com a corda toda, hoje de manhã, a vizinha. Logo cedo, berrou contra o marido, é, devia ser o marido, berrou que ele não tivera coragem de fazer o caderninho de realizações, então, que não viesse agora em plena pandemia reclamar com ela sobre os desejos não alcançados. Será que tinha sexo, na lista não feita? Minutos de silêncio. Minutos mesmo, longos, longos períodos de silêncio; era uma berração feroz mas pausada. E o infeliz, e vale dizer infeliz porque se podia deduzir que os desejos não vinham sendo realizados, e o infeliz responde: “É que eu sabia que se fizesse você ia dar um jeito de ir lá pra ler o que tava escrito. E caderninho de realizações, sua louca, tem que ser uma coisa feita em segredo. E segredo é uma coisa que não se divide com ninguém.” Agora, boa parte da vizinhança sabia da história. Mas não era assim tão terrível porque estávamos diante de um segredo que não existia. O caderninho dele não existia.

Outra coisa que provavelmente toda a vizinhança sabia é que o mané não devia ter usado a palavra “louca”. O ritmo da pendenga mudou, ali, bem naquele instante. Os minutos de silêncio, o xadrez barulhento mas que até então poderia ser considerado “elegante” deu lugar a uma pelada, um totó cheio de desespero, recheado de roletadas. Foram apenas milésimos de segundos, se desse pra contar, sim, daria pra dizer que, milésimos de segundos após disparada a acusação, a quebradeira começou. Os que moramos em volta ficamos algum tempo, também menos que minutos, sem saber se o que rolava era uma destruição de coisas da casa ou do marido em si.

Já se vão umas duas horas de silêncio. E continuávamos sem saber, nós que tínhamos acordado cedo na segunda-feira ainda pandêmica, pra fazer coisa nenhuma além de pensar. Talvez tenham começado juntos o caderninho, sem segredos. E dizer que o lance é sem segredos passava até certo ponto a incluir moradores de umas boas três dúzias de apartamentos. De dois e três quartos, com dependências. Esperamos todos que isso pese, se for pesar, claro, que pese positivamente na realização dos desejos deles lá. E como neste momento de isolamento estamos nos tornando pessoas diferentes, diferentes no mínimo no sentido de mais gordos e gordas, esperamos também que alguns de nós tomem aquela treta como inspiração para começamos nossos próprios caderninhos de realizações.

Mesmo sem saber bem o que é uma coisa, a gente pode começar. O velho ensinamento, e dizemos velho porque é de antes da pandemia, o velho ensinamento de que basta um passo e você já está noutro lugar serve bem pra isso. Serve pra muita coisa. Mas estamos falando de caderninhos de realizações, então, por favor, concentre-se. E faça a sua lista. Pense um pouco antes se vai manter a coisa em segredo. E se é segredo Defcon 5 ou 3 ou 2. Porque periga ter uma hora em que alguém pode descobrir e os seus desejos se pá vão se espalhar pela vizinhança. Por umas boas três dúzias de apartamentos, pelo menos, onde moram pessoas que você nem conhece. Mas que podem saber/desconfiar quem é você.