Preparação. É uma coisa que você consegue perceber no cinema. É quando — literalmente — preparam a gente pra algo que vai acontecer. Mostram, sei lá, um bicho morto e você com razão saca e pensa: “Ih, vai dar M…” Afinal, M de cara pode não fazer muito sentido, pelo menos para quem ainda se liga em histórias bem contadas, então, num bom filme, te preparam direitinho para a M. As samambaias que sumiram ali no número 39, as begônias que o Capitão Nando percebeu que faltavam lá no 57 e… bom, o desaparecimento da samambaia que enfeitava ali o cantinho da praça foi a gota d’água. “Tem alguém surrupiando as bichinhas”, pensou o Capitão.
Ele não era capitão de verdade. Mas gostava de heróis, ou um dia tinha gostado do Capitão Marvel, e brincava com a esposa quando chegava em casa: “Capitão Nando na Área!” Ela respondia com um “Shazam!!” Isso mesmo. Assim como há as Loucas dos Gatos, há os Defensores das Verdinhas. Ele preferia, por uma questão meio moral, chamar as plantas de “Verdinhas” em vez de “Bichinhas”. Mas quando deu por falta da Samambaia o sofrimento foi tanto que não conseguiu controlar o vocabulário. Sabia que deveria ter controlado, porque, com superpoderes, vêm as super-responsabilidades; inclusive as semânticas. Sim, nosso herói também gostava do Spider-Man.
Nando, isto é, Capitão Nando vinha andando, não muito atento, pela Senador Correa, aquela rua que dá bem na praça, quando seu Instinto Verdinho fez seus pelos se eriçarem. Viu perto da igreja uma velhinha que agachava lentamente, porque é assim que a maioria das velhinhas faz, levando a mão na direção de uma pobre e indefesa Espada de São Jorge que alegrava ali o jardinzinho em frente à casa do Seu Zeca. Apressou o passo, agradecendo aos céus por ter este superpoder. Resolveu recorrer ao supergogó, quando viu que a velhinha era rápida no agachamento e a Espada de São Jorge ali sozinha não tinha a menor chance naquela briga. “EI, SENHORA!” Tirou a máscara, sem que ela se desprendesse da orelha direita, falou, e colocou de volta.
Esperou que ela respondesse com “Senhora, não…” e completasse com sua alcunha de vilã. Mas Dona Melina não foi além de ficar um pouco ruborizada. Levantou-se, ela; como quem assume que está fazendo algo que não é mesmo aquilo que os padres ensinavam nas missas de antigamente. É, os ensinamentos de antigamente, nas missas, deviam ser melhores que as de hoje. No Largo do Machado, por exemplo, já se viu sacerdote que fala até em armas em tom de “piada” quando quer repreender catequista. Mas aí é outra história, assunto para outro super-herói. Deus, talvez.
Dona Melina arrumou o vestido verde-claro, com as mãos sujas, e soltou um palavrãozinho quando percebeu que isso tinha deixado uma mancha na roupa. Foi bem no instante em que o Capitão Nando estava a uma distância em que era possível ouvir o que saía da boca da inimiga recém-descoberta. Era a vez de ele ruborizar um pouco. Herói e Vilã que ruborizam, frente a frente, não é coisa que se vê todo dia. Parecia que a batalha ia ser boa. Lembrava cinema de verdade porque de alguma janela saíam os versos de “Agressão repressão”, com os Ratos de Porão. Devia ser do apartamento do Ari, que é conhecido como metaleiro mas ouve na boa umas coisas de crossover. Música também serve como preparação, dá um clima. O filme, quer dizer, a chapa estava esquentando.
“O que que a senhora tá fazendo aí? Deixa a plantinha! Solta a plantinha, por favor!”, desafiou Nando, o Capitão dessa vez sem afastar a máscara. Foi quando pensou em usar no rosto algo que trouxesse uma frase do tipo “Salve as Verdinhas!”, mas desistiu logo porque podiam achar que ele estava se referindo a dólares e não a plantas. Pensaria mais tarde noutra mensagem para estampar. Era hora de manter o foco. “Geeente, eu só tava pensando em levar a bichinha pra colocar num vasozinho…”, devolveu a anciã, sem para isso retirar seus acessórios pandêmicos: máscara de pano com compartimento para filtro descartável e aquela proteção que se assemelha a um para-brisa.
Era uma vilã que sabia se proteger. Mas o aparato dificultava-lhe a comunicação. O Capitão tinha a resposta, mesmo sem entender bem o que tinha saído da boca daquela “bandida”: “No Cadeg, a senhora acha várias. Lá, todas elas precisam de alguém que cuide delas…” Disse isso e sorriu, satisfeito com a dose de sarcasmo, velocidade e firmeza que havia colocado nas palavras.
Coadjuvantes se aprumaram e ameaçaram uma aproximação, nem todos com máscaras, mas todos sim com celulares nas mãos. Foi quando herói e vilã perceberam que não estavam num filme e, melhor, não queriam virar manchete de um daqueles programas tristes de TV aberta, à tardinha; quando são apresentados casos que invariavelmente dão em desgraceira. Dona Melina praguejou contra o defensor da Espada de São Jorge, de novo vermelha mas desta vez de raiva, e foi saindo. O Capitão Nando atravessou a rua, sem encarar os outros atores. E os dois sumiram rapidinho da cena. Como num filme.
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