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Boteco Connection #10 — Calçada unida

Dezembro nem começou direito e parece que é a premissa é: “Mês de sentir saudades”. Teria sido a conclusão mais “lógica” de cinco pessoas que se encontraram sem-querer-querendo, numa calçada, ainda agora. Mas cinco cervejas para cada um e os pensamentos acompanham a vibração: começam uns a querer falar mais alto que os outros sobre o que lhes apertava o peito. Não é que pensamento e cerveja não combinem. É que o papo era saudade, não era combinação. O que combina com saudade? Atravessar a rua, rabiscar toda uma parede com o nome de alguém, mensagens que batem recordes de doçura, flores amarelas, café com canela?

Cinco pessoas, isso. Cinco itens, isso, também. Cinco segundos de silêncio e alguém dispara, no embalo de uma conversa que passa a ser temperada por sacanagens diversas: “A Help era o coração do Brasil. Quando fechou aquilo, você matou o Brasil. Por isso é que aquele museu não vai, gente, não vai pra frente, virou tipo um cemitério de índio.” Foi tão bem construído e certeiro, o negócio, que os cinco segundos seguintes pareceram cinco minutos. A resposta, ninguém viu bem de onde veio, mas provocou de xingamentos a risadas, ambas tímidas: “Tá com saudade da putaria, né?”

“As ideias são como um prêmio para quem trabalha. Quem trabalha merece ter ideias. No meio dessa demolição da intelectualidade, o problema é que a gente tá com muito mais trabalho. E poucas ideias…” Frase complexa é assim. Por um lado, pode fazer todo mundo pensar que talvez tenha bebido demais. Por outro, faz todo mundo pensar e isso é bom. Era o caso de aproveitar, ali, naquela assembleia, o fato de que estava todo mundo a fim de pensar. Alguns até sofriam com isso. Para estes, pintou uma frase, mais curta, ainda com tapa-na-cara-mode-on: “Bora! Bora! Bora!” Tipo na academia, isso mesmo.

Foi possível sentir no ar um sopro de confiança. Ou estava todo mundo meio desnorteado mesmo. Talvez alguns até se perguntassem se seria possível retomar o papo, a partir daquele ponto. A autora do veredicto estava quase envergonhada por ter soltado aquilo, como se fosse culpada pelo silêncio que se seguiu. Era o caso de sentir-se orgulhosa. Mas não adiantou aquele outro maluco dizer isso a ela, baixinho. O movimento gerou até desconforto, porque parecia uma divisão do time. Não que a divisão fosse proibida, ali, mas… Ainda estava fresquinho na cabeça de geral aquela vontade de unir. “Calçada! Unida! Jamais será vencida!” Quase dava para imaginar o pessoal saindo com isso aos gritos: “Calçada! Unida! Jamais será vencida!”

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Boteco Connection #9 — Fordismo

O Ruivo investiu em duas cervejas mais fortes do que as de costume e danou a falar. Pediu double ipa em vez de german pilsner, sabe? Aproveitou para papear com os professores, que estavam sempre ali, na calçada. Tinha desenvolvido com os mestres — como eram conhecidos — uma certa intimidade, naqueles oito meses de vizinhança nova. Mas quase, quase discutiu sério com um que defendeu “trabalhos em vez de provas porque prova é uma coisa muito fordista”. Duas cervejas podem mesmo fazer diferença. Como dois pontos, no fim do ano: não são muita coisa, mas se pá rendem um período de recuperação, criam a exigência de novas aulas e novas notas. Essas coisas. O rapaz vazou sem conseguir perdoar-se pelo vexame de peitar, isto é, quase chamar pra briga um tiozinho doutor em Psicologia. Temia não a recuperação, mas uma reprovação mesmo.  O conselho de classe da calçada não perdoa… reprova.

Ele se chamava Rui, o que parecia garantir-lhe um prazer extra com o apelido de Ruivo. Houve uma namorada que tentou chamá-lo de Ru-Ru. Mas era estranho, isso, e a coisa não decolou nem entre quatro paredes. Outra tentativa tinha sido R2D2, numa referência ao gosto do sujeito por drogas psicoativas de todos os tipos, das estimulantes às perturbadoras, passando pelas depressoras. A quizumba com o coroa professor tinha começado por aí, aliás. E a prosa desandou, no entendimento do Ruivo, porque ele tem problemas com professores desde aquela sexta-feira, trinta anos atrás…

Era uma sexta. E ele tinha ido para a escola. Não para fazer trabalho, mas para responder as questões que lhe garantiriam a aprovação naquele ano e, também, um videogame. Fordismo não passava pela cabeça dos pais dele. Nem pela dos professores daquela época. Mas o que ele considerava um detalhe de sorte era mesmo o fato de os pais não acharem que videogame era coisa de vagabundo, entendimento muito comum entre as famílias do pessoal com que o Ruivo se relacionava na escola.

Outra coisa que não era falada na época era bullying. “Tinha gente que levava surra de toalha molhada, depois da aula de Educação Física”, declarou, naquela tarde, na calçada, revivendo uma autêntica cara de desespero. “E o trote? Tinha o trote. Os veteranos cortavam o cabelo da gente. Não tinha como fugir…” Era só história triste, preparando para o acontecimento daquela tarde de sexta-feira-de-prova.

Rui, o Ruivo, estava na fileira do canto, à esquerda. Era comum ser zoado com alguma musiquinha. Dali a 15 minutos, seria a hora de começar a resolver as questões que lhe abririam as portas da série seguinte, e, de quebra, garantiriam o game de presente. Foi quando um companheiro de turma começou, baixinho: “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Poderia ser só mais uma piada, como tantas outras que já tinham sido inventadas naquelas salas. A coisa foi crescendo. Em sexta-feira de prova, o horário era diferente. Os alunos chegavam uma hora antes do horário regular, recebiam os papéis, isto é, as provas, e tinham quatro tempos de aula, cada um de 45 minutos, para resolverem tudo. Quem terminasse antes podia sair e ir para a casa.

“Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Aquilo foi crescendo. Em pouco tempo, todos na sala do menino de cabelos vermelhos estavam dando soquinhos na mesa e cantando o troço. O tom e o andamento lembravam uma prática marcial qualquer. O Ruivo sentia-se ameaçado. Faltavam ainda 13 minutos para o início da prova. E o coro já extrapolava aquele retângulo. De repente, era como se os ambientes próximos tivessem sido tomados pela mesma cerimônia. E dava para perceber que em todo o andar estavam batendo nas mesas e cantando “Morte ao Ruivo! Morte ao Ruivo!” Dava para crescer ainda mais. E cresceu. Por toda a escola. Chegou à sala dos professores, onde entre um cafezinho e outro eles se preparavam para se encaminhar para as salas de aula. Mas a marcha ficou tão forte que os fordistas, isto é, os professores responsáveis pelas provas daquela tarde, apressaram o passo para tentarem interromper aquela onda toda. Quando um deles entrou no ambiente em que estava o Ruivo, deu um esporro: “Olha o que você fez! Como assim, rapaz!?” O menino, suado, com cara de desespero, quase não conseguiu mas falou: “M-mas eu não fiz nada! E eles querem me matar!”

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@monteiro4852 #129

Você não tinha prometido para hoje um vestido amarelo?

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Formigamento

Um passeio pela praça. Crianças brincando. Ninguém parecendo ligar para a promessa de chuva. Nenhum ambulante vendendo cerveja. Cachorros que chegam perto, atraídos sabe-se lá pelo quê — a ponto de pegar as bolinhas que os donos jogavam para, na volta, perderem o rumo. Como se a recompensa tivesse mudado de lugar. Os pombos davam uma trégua, até porque não havia nenhuma migalha por perto. Não era uma tarde de restos. Era sim um pico, um pontinho de intensidade. Talvez no plural mesmo: in-ten-si-da-des. Uma praça é uma promessa.

A história da senhorinha do prédio branco de janelas azuis é a seguinte: ela morava ali com o marido. Foi por décadas o endereço deles. E parece ainda ser, mesmo que nenhum dos dois esteja mais por lá. As janelas daquele andar revelam-se as mais desbotadas, como se há muito não fossem acariciadas com tinta nova. Janelas fechadas-fechadas-mesmo, não como as outras em que o pessoal parece se contentar em se esconder atrás de vidros. Contam que o casal de velhinhos ia sempre à feira que rola ali perto, aos domingos.

As formigas ensaiam uma mobilização. Como se estivessem estudando desenho. Figurativo mesmo, o negócio. Formigas inteligentes. Terão sido inventadas, na última hora, elas, e já estavam tomando conta de Copacabana? Estarão aliadas aos cachorros, naqueles desvios de comportamento? Será que estes bichos riem, agora entendendo a estranheza que provocam na gente que fica sentada se beijando, alheia a tudo, celebrando um amor que parece o mais intenso de todos? De todos os tempos.

Terão os bichos respostas sobre o futuro ou será que estão limitados aos desenhos que parecem capazes de fascinar um estudante do Parque Lage? Um colecionador investiria algum trocado naquilo? Talvez depois de pesquisar quanto tempo vive uma formiga e calcular como será a produção anual da turma daquela área. Um vento fresco surge para espantar as contas e evidenciar o calor. Um sopro que gela um pouco o suor e espalha cheiros doces. Gente vendendo amendoim, ali perto, amendoim doce, contribui com o adoçamento. A pergunta passa a ser sobre a influência que aquele cheiro pode ter sobre a produção artística das formigas. O espetáculo parece continuar só com as formigas, porque depois de um tempo os cachorros deixam claro que se cansam logo.

Somos todos formigamentos, organizadinhos em nossos sonhos de desenhos. Crianças num cercadinho misturando suor e poeira, vendedores de estalinhos e outros brinquedos num quadrado que deve ter sido definido pelos coronéis das redondezas, bancos convidativos com espaço para cinco mas sendo usados invariavelmente por dois caras. Um casal. Tem alguma coisa acontecendo, ali…

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1990 ou O-Ano-Da-Pantera (quase, quase Boteco Connection #9)

Ela não queria apelar para as ferramentas de pesquisa na internet. Não era uma decisão fácil, esta, porque o telefone estava ali, o tempo todo. Mas mantinha-se firme, mesmo que fosse uma tentação mergulhar no protagonismo de uma daquelas sequências em que, após uns poucos segundos de concentração, arrumando os cabelos bem pretos, ela pegaria o aparelho e, com a firmeza de quem enxerga muito bem, deslizaria as unhas pintadas de vermelho cintilante pela telinha. Andava digitando com o dedo até um pouco de lado, por causa do tamanho das garras. E assim como não era exagero falar em “garras”, também não era demais falar dela como uma pantera. Mas estamos apontando alguém que pretendia voltar aos dias de “jovem felina 1990”, quando tinha 9 anos e foi, com o pai, ver um jogo de futebol na maior cidade do país. Não qualquer jogo. Mas aquele que faria com que ela trocasse de time. O que será que uma ferramenta de busca nos mostraria como dicotomia se fôssemos opor “jovem felina 1990” e “pantera 2022”?

Puxar pela memória tinha começado como uma diversão. Sempre que esbarrava com alguém que parecia entender de futebol, ela engatilhava o assunto, mencionando a conquista de um título, naquele ano, e comentando resultados. Era boa com placares históricos, o que excitava marmanjos metidos a entender de futebol. Recheava suas crônicas — porque eram mais do que memórias — falando da eleição de uma mulher nordestina para a prefeitura de São Paulo. E enchia-se de orgulho recapitulando o episódio em que, no metrô, desafiou skinheads para proteger o irmão mais novo. Enxergava bem e tinha boa memória, a pantera. E se divertia, diante de barbudos entendedores do jogo da bola, vendo-os sem resposta para questões que, ela deixava claro, trariam grande felicidade para ela. Mobilizava os caras, sem muito esforço.

Na verdade, mais do que conseguir respostas, mais do que ser capaz de organizar na cabeça um almanaque definitivo sobre aquele jogo, ela elevava, a cada menção/tentativa, um castelo de paixões — pelo time, pela vida, pelo mar, por…. Uma construção que ia ficando sempre mais e mais imponente. Depois da pandemia do início dos Anos 2020, nossa personagem parecia estar diante da necessidade de tomar uma outra grande decisão, algo que poderia ser tão transformador quanto trocar de time, e talvez por isso mais importante do que conseguir respostas definitivas eram as chances de visitar, mentalmente, os sabores de um novo horizonte.

Ela enxergava bem e pensava também muito bem. E, ao contrário do que tinha imaginado até ali, talvez fosse possível trocar de time mais de uma vez na vida. O tempo passa. Ou, como ela dizia parecendo querer desconcertar seus interlocutores: “O tempo tem o próprio tempo. É assim que se constrói intimidade.” Se um só pensamento preenche a imensidão, também com esta medida se ergue uma fortaleza, um castelo.

Pegou-se ontem começando uma conversa, numa calçada de boteco. Tinha testemunhas, gente que já a tinha visto armar aquela arapuca. Houve até quem comentasse: “Pô, de novo, esse papo de 1990? Sério?” Era uma deixa, tal tipo de comentário, para que ela mostrasse outro talento: o sorriso. Sorria que era uma beleza. E invariavelmente seguia, firme, na prosa. Esse cara da calçada era mais ou menos da idade do pai dela, e fanático pelo mesmo clube. Sentindo o desafio, o malandro não recuou: “Mas a gente jogou nesse estádio, em 1990?” A mulher respondeu que “Sim… E a gente perdeu…” E foi quando ouviu o que precisava, sem saber que era aquilo que precisava: “Ah, é por isso então qu’eu não lembro.”

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Contagem regressiva para o festival

Atravessou a rua, sem olhar para os lados. Uma aposta bem pouco prudente, pensou, no ato, mas a torcida do time adversário bloqueava o trânsito, ele sabia; havia um cálculo naquele espasmo de amor-mucho-mucho-loco. O movimento não era a esmo, não. Tirou a camisa suada, como se bastasse aquilo para realizar o sonho do abraço demorado. Estava um pouco bêbado, mas… Mas acreditava merecer aquele encontro com palavras colhidas na hora, fresquinhas. Acreditava num futuro com sorrisos de aprovação. Não qualquer aprovação, mas uma daquelas que a gente alcança já no terceiro trimestre e sugerem vagabundagem de primeira no que resta de ano letivo.

Acertar a entrada da chave, sem olhar para a fechadura era mais difícil do que cruzar a rua. Equilibrar-se para tirar as meias sem precisar apelar para a banqueta, idem. Chegar a uma conclusão sobre a necessidade de novos jatos de desodorante, também. No primeiro lugar da lista de impossibilidades estava “Lembrar em que fase estava a Lua”, então, o negócio era continuar arriscando. Pegou o celular e com cuidado vasculhou o aparelho. O protetor de tela estava quebrado e dificultava as coisas. “Pra que facilitar, né?”, perguntou-se, sabendo que não haveria resposta. “Aposto que ela está por perto. Vou mandar mensagem”, programou-se.

Tinham tomado juntos um café, no dia anterior. E pela primeira vez — ele achava que tinha sido a primeira vez, pelo menos — escolheram docinhos diferentes. “É bom que as diferenças apareçam”, digitou. Mas antes de mandar a mensagem, percebeu que não era aquilo que deveria ser dito num momento regido pelo sonho do abraço demorado. “Porra, maluco, tá de bobeira!?” “Calma, calma…” E aí sim digitou, de uma tacada só, uma daquelas mensagens de tela inteira, em que falava uma coisa, emendava com outra, tentava uma piada e não dizia o que queria de verdade.

“Tropix” estava esparramado no prato do toca-discos. Era como se não tivesse coragem de tirar de lá aquele álbum. “Ela trouxe um disco, cara!” Ninguém sabia, mas, ultimamente, quando precisava de um pico de coragem para fazer ou falar alguma coisa, um dos recursos era colocar aquela bolacha para rodar. Outra possibilidade era apelar para uma dose de Januária, mas, ali, naquela hora, não, era melhor manter alguma sobriedade para o instante do abraço. Precisava de um abraço. Só isso. “Só isso tudo!”, como diziam na época do ensino médio. Alcançou alguma concentração e escreveu: “Muita, muita saudade!”

Toda essa conversinha aí sobre amores líquidos, os fantasmas que o ajudaram a atravessar a rua, a conta que ficou pendurada no bar, o moleque com a camisa do tamanho errado mas do time certo lhe pedindo dinheiro e ele dando. A conversa dos escolados esclarecidos e suas verdades bem arrumadinhas, a banca de jornal que virou tabacaria, essa gente que entende de cervejas e de vinhos e de comidinhas. Por um instante, ficou em dúvida: o botão certo era o de fugir ou o de enviar?

Um scroll-down-sem-fim, um benza-Deus-por-um-rim. O Zé dizendo pra segurar a onda que o sofrimento ia ter fim, Maria concordando e dizendo que sim. Que falta passou a fazer um doce de limão. Como podia um percurso pesar tanto assim? Uma intimidade tão desejada que era como se tivesse sempre existido, uma prova em que dez era a única nota possível. “Vamos almoçar então?” “Vamos. Vamos, sim.”

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Quadro colorido

Foi um diálogo rápido. Mas chamou a atenção porque era um pouco Doce contra Salgado. E Doce contra Salgado mobiliza as pessoas. O “contra” não revelava uma oposição, exatamente, mas talvez uma impossibilidade, ou incapacidade — de ambas as partes — de chegar a um acordo. Porque a opção pelo desacordo criava pelejas como aquela. Durou uma meia-hora. Divertido, às vezes, para quem teve a sorte de acompanhar. Houve até quem fizesse vídeo, sob a promessa de não publicar em lugar nenhum mas, sim, guardar as imagens apenas como… Recordação? Recordação de uma discussão? Big-brothermente falando, fica difícil hoje em dia filmar algo e não publicar, mas a questão ali era o Doce contra o Salgado, então o pessoal soube se concentrar no que importava: nos ensinamentos.

“Você tem 39 anos e nunca entrou num banheiro de Salgado”, perguntou Salgado ao Doce. “Como é que pode isso?” E com o sorriso de quem parecia conhecer segredos do oponente seguiu no ataque: “Banheiro é território de liberdade. Você não precisa ter medo de sair do seu e entrar no do outro…” Foi possível perceber o desconforto com que Doce ouviu aquilo. Parecia saber que se tratava de uma piada. Entendia a provocação, porque era isso, uma provocação, mas não queria perder tempo pesando consequências e atirou: “Você está muito enganado!” Não era só defesa. Era também ataque.

A conversa começou com os dois professores falando de questões estéticas. O que está escrito em banheiros masculinos será parecido com o que fica registrado nos femininos? Tipo isso. “Eu não sei, porque não frequento banheiros masculinos”, declarou a professora, tranquilamente, sem imaginar o ataque que viria em seguida: “Ah, mas vai dizer que você nunca entrou em um?”. Era uma provocação, claro. E talvez entregasse que havia, ou que tivesse havido, entre eles, mais do que uma relação cordial.

Cada um bebeu um gole de cachaça, a bebida disponível, ali, por perto, em copinhos minúsculos e com detalhes que permitiam identificar o que era de quem. Copinhos que pareciam dizer: cuide do que é seu, não do que é dos outros. E era como se Doce e Salgado precisassem também de marcas mais visíveis, para que pudessem entender quem era de quem. Ou melhor: que ninguém era de ninguém. Ver duas pessoas discutindo por uma coisa e perceber que, na verdade, há outros pontos em jogo, é divertido. Pode ser assustador, mas, ali, estava divertido. Ainda bem que existe cachaça.

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O herói da estação

Um estêncil “incômodo” com o qual a gente precisou se acostumar a conviver é o “Não desvie o olhar”. Um desagrado bom/necessário, nos dias de hoje, parecendo pretender convidar ao pensamento crítico. De um modo geral, fica(va) em postes, na parte baixa, rente à rua. Como que numa alusão à população que rasteja também ali naquela altura. Eles, os pedintes. Pessoas em “situação de rua”, como dizem. Quando A. parou na esquina, naquela sexta, estava perto de um daqueles sinais. Pensava na Primavera, sobre a qual tinha ouvido muita gente falar, naquelas últimas horas. Era o primeiro dia da estação. Estava avexado, mesmo antes de encarar a sentença pintada em azul. Não queria ler. Queria ser lido. Chegou a imaginar que, talvez por isso, para se mostrar, estivesse parado, ali naquele cruzamento. Mas não teve jeito: foi incapaz de fingir que não viu.

Tinha aprendido que ficar parado numa esquina representa risco. O ensinamento viera de um policial, anos antes. O sujeito disparou num bar algo do tipo “O cara fardado não pode ficar de bobeira, pra não virar alvo”, e, mesmo sem farda, fez todo mundo ali entender que estava diante de um prisioneiro de uma daquelas roupas. Quase todo mundo fingiu que não ouviu. Um flash silencioso e nada mais, foi o que aconteceu. A bebida é mesmo um ótimo entretenimento, às vezes. Mas o bagulho ainda ecoava nas entranhas de A., anos depois. “Porra, cadê as flores?”, reclamava, ali, parado, sem conseguir decidir se estava mais amolodado com as lembranças ou com a frase na grande estaca de concreto. Fingir, isto é, representar não era assim tão fácil.

Parecia ter chegado a hora de tornar mesmo aquele momento um troço mais cinematográfico. Como? Acendendo um cigarro. “Mesmo sem Zippo, funcionou”, concluiu, rindo sozinho, quando uma mulher parou e pediu informação sobre uma rua. Sentiu-se, aí, sim, um ator num filme. Era como se naquele momento a Primavera tivesse finalmente começado para ele. Respirou como um herói: preocupado com o pessoal jogado nas calçadas, conhecedor dos nome das ruas da vizinhança, com a camisa bem passada. Ah, sim: calculou um movimento para ajeitar a roupa. “Herói tem que ser um pouco vaidoso”, desculpou-se, num cálculo-pensamento na velocidade da luz. Ouviu um bem-te-vi. E, ainda com aquela aceleração impressionante, rimou com quero-te-ouvir. “Ela quer me ouvir, é isso que ela quer…”, falou, deixando confusa a interlocutora que, com olhos um pouco arregalados, apressou o passo e saiu daquela cena.

Desconcertado, A. olhou em volta. Não sabia bem o que estava procurando. Era como se o silêncio o isolasse. Pensava em por que os carros tinham parado de fazer barulho. Tentava entender como as crianças jogando bola do outro lado da rua conseguiam fazer aquilo em silêncio absoluto. Teve medo de perder os super-poderes. Olhava para todos os cantos, como que num daqueles passatempos de antigamente, o Jogo dos Sete Erros. Foi quando viu uma mulher e duas crianças, protegidas por uma marquise de prédio. “Porra”, soltou alto, colocando a mão no bolso enquanto ainda não estava completamente certo do que dar a eles como almoço. Não queria perguntar. Ia fazer surpresa. O bem-te-vi de novo cantou, naquele instante, e meio que confirmou que como herói era aquilo mesmo que A. deveria fazer.

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@monteiro4852 #119

O almoço de quinta-feira foi muito bom. Queria ter todo dia este apetite.

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Boteco Connection #7 — TX

“TX” foi como uma galera se acostumou a fazer referência ao “táxi”. Ah, a era das abreviações… “Valeu” virou “vlw”; “obrigado” passou a ser “obg”. E por aí vai. Mas uma citação que se espreme em duas letras pode ser considerada carinhosa/relevante? Sim, sim. Duas letras são capazes de exprimir apreço, medo, ofensa. “Cu” é um bom exemplo disso, para falar de um componente muito presente em nossos cotidianos. E voltando aos encurtamentos: quem nunca teve que encarar um “vtnc” num debate sobre política no Zap? Não soa mais ameno do que quando todas as letras são usadas? Mas fiquemos no universo dos taxistas, estes quase-pescadores/historiadores, às vezes safados [como qualquer dono(a) de cu pode ser], às vezes prestativos, gente conhecedora das leis, de Economia. Um pessoal que parece saber a Verdade. Isso tudo pra afirmar: ponto de táxi perto de um boteco pode ser garantia de animação fora da curva.

Fora da curva, não fora do taxímetro. Porque ninguém acorda cedo para levar desvantagem nas vias do Rio de Janeiro. Em grupo, eles se sentem seguros. Normal. Mas mais do que isso: parecem também capazes de oferecer segurança/proteção. Não numa perspectiva miliciana. Na camaradagem, em nome de uma certa “família”. Em português mesmo: família. Taxista, graças aos céus, é um cara que parece ter conseguido fugir dos anglicismos. Não existe meeting de taxistas. Existe churrasco mesmo. E mesmo se a carne estiver bonita, eles vão deixar pra lá a fome e vão conduzir o bêbado classe-mediano que saiu do boteco até o endereço informado. Porque agora tem a concorrência do Uber, né, então, minha gente, é tempo de ser mais prestativo do que nunca.

Os apelidos compõem um ingrediente espetacular. Filé. Fofão. Conde. Tim Maia. China. Kiko. Chaves. Medonho. Lobinho. Quando estão juntos, num dia fraco de corridas, ou numa noite com poucos bêbados solitários precisando chegar em casa logo para vomitar e mergulhar no sofá, o clima na calçada é de Segundo Grau. Segundo Grau no sentido de período escolar, o que hoje é conhecido como Ensino Médio. Ver um bando de “adultos”(#sqn) se zoando, a ponto de dois se juntarem para fazer uma cama-de-gato que vai derrubar um terceiro… Não tem preço. Esta categoria, a de taxista, parece às vezes ser um indicativo do que é a sociedade. Há as pessoas mais “sérias”,  há os com os carros mais bonitos, há os que confrontam uma torcida inteira e após uma garrafada no quengo choram como bebês, há os que mentem descaradamente, e ainda há os que não querem te levar a Santa Teresa usando como justificativa aquele caô de que “os trilhos do bonde podem rasgar os pneus do carro”. E — viva! — tem os que servem de “inspiração”, quando um escriba quer manter a regularidade e parece não ter sobre o que falar.

Taxistas parecem ser uma viagem ao passado. A um mundo pré-internet. Você não pode entrar no carro do Fofão — ainda mais se for o Fofão — e mandar uma mensagem com letras maiúsculas exigindo que ele desligue o rádio. Tem que investir na cordialidade e pedir com jeito. Esse pessoal em carros amarelos com listas azuis, aqui no Rio é assim, esse pessoal passa pelo mundo e vê o mundo passar. Às vezes, em alta velocidade. Nem sempre respeitam sinais. Nem sempre fazem os melhores caminhos. Quase nunca têm troco. Às vees, não são assim tão simpáticos. Nem sempre torcem para o time certo. Nem sempre votam no melhor candidato. Mas a vida é assim. É bom, quando estão ali; depois que a gente sai do boteco.