O Rogério, de vez em quando, apelava para o palavrão mas tinha a vantagem de conseguir com que tudo — ou pelo menos muita coisa — saísse da sua boca de maneira suave: “Chove pra caralho, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.” Rogério se foi quando ainda podia ser chamado de “jovem”, carregando uma acidez que não era bem mau humor, era uma coisa que, sabe, os amigos perdoavam mas não era por isso que não era mau humor… Era um troço que ninguém sabia explicar direito. Nem mesmo os amigos. Talvez por isso achassem melhor perdoar. Claro que era melhor. Mesmo que Rogério não fosse santo. Aliás, não o chamavam muito pelo nome completo. Preferiam Roger. Muitas vezes, depois de tirar o acento agudo e aquelas duas últimas letras, davam uma risada que… que era a comprovação de que não havia mau humor ali naquelas rodas.
Alguns parceiros de Roger, quando se encontravam num boteco, gostaram de falar também do Marcos. Que era outro que tinha partido e a quem raramente se referiam pelo nome. Preferiam falar Meleka. E era assim com “k” porque se tratava de uma espécie de precursor da cultura da tag. Como Roger resumia bem: “O filho-da-puta era um rabiscador de mesa, na escola.” Era mesmo, porque tinha um problema com sua letra: achava horrível, o resultado; sentia vergonha. Não houve caderno de caligrafia que desse jeito. E quando Meleka se cansou de ouvir os camaradas dizerem que ele tinha “letra de médico”, começou a escrever usando “letra de imprensa”. Ou “letra tipo bastão”, como aprendera na aula de Técnicas Comerciais, numa escola pública da Penha. As mesinhas que ocupava na escola eram invariavelmente preenchidas por letras tipo bastão. Escrevia letras de músicas dos grupos punks que curtia. E às vezes fazia desenhos. O melhor de todos foi um garçom correndo com uma bandeja.
Um dos sobreviventes, quando passava de quatro cachaças, sempre, sempre puxava uma discussão sobre um possível encontro entre Roger e Meleka, no Além. E era sempre o Além que esticava as argumentações, as manifestações de descrença e desgosto, as defesas apaixonadas e cheias e culpa. Pulavam daí para a política e começavam a falar mal do prefeito da cidade. Era quando todos voltavam a rir, não sem uma dose de preocupação, mas sentindo o cheiro da adolescência, de quando acreditavam na “revolução” e panfletavam e escreviam nas paredes frases que consideravam transformadoras e capazes de mobilizar as pessoas. Meleka escrevia estas mensagens com letras tipo bastão. E saía tudo tão arrumadinho, às vezes, que ele tinha medo que pudesse ser preso por conta daquilo. Todo mundo ria, lembrando dessa história. Era certo que em algum momento falassem da Elza, por quem um dia todos tinham se apaixonado. Na certa, alguém ia perguntar, arrancando uma gargalhada-geral: “E a Elca, hein…?”