Categorias
Cinema Comportamento Crônica Freudcast Literatice Paulo-Coelhismo

Bolo de fubá

Viram que a Dona Lena está mais magrinha? Dá para imaginar? Mais magra, pois é: passou entre dois táxis que estavam estacionados ali, no ponto da Senador Correa, perto da praça; e nem precisou ficar de ladinho para completar o movimento. Vinha com aquele vestido roxo, com detalhes verdes, aquela combinação sobre a qual a gente sempre fica comentando, que ela usa quase toda terça-feira, e o vestido deu uma espanada na poeira daqueles carros amarelos, porque estava ventando muito quando Dona Lena apareceu e se espremeu por ali. Quer dizer, ela não se espremeu.

Tá ligado nas unhas da Dona Lena, né? Outro dia, alguém estava comentando sobre isso mas em vez de falar “unhas da” optou por “unhas de”, e, aí, começou aquela palhaçada de um zoar o outro dizendo/acusando “Você é de Bangu e por isso fala assim”. Mas parece que acontece também em Jacarepaguá, isso de falar com “de”. E Dona Lena participava da discussão, lembrando das coisas que tinha aprendido com o pai farmacêutico, sem saber que o gatilho para aquilo tudo tinham sido suas unhas enormes, que às vezes chamavam ainda mais a atenção porque vinham pintadas. Teve uma menininha da escola ali da praça que demonstrou medo uma vez quando viu as unhas roxas de Dona Lena. Roxo é uma cor que aquela senhora simplesmente adora.

Era engraçado ver como ela conseguia mobilizar os motoristas para contar sobre as coisas que tinha aprendido com o pai. Havia quem achasse que os caras só paravam para ouvir por conta de um detalhe: quando ia contar histórias, ela trazia uns pedaços de bolo de fubá. “Porra, o bolo de fubá da Dona Lena é show!” Invariavelmente, havia a explicação de que no caso do bolo a receita era de uma tia e não do pai. Na sequência, quase sempre ela falava que aquelas duas eram as pessoas de quem mais sentia saudades.

Alguém sempre lembrava de uma ocasião em que Dona Lena havia explicado por que não sentia saudades da mãe. Parece que uma vez ficou esperando muito tempo, na saída escola, numa noitinha de chuva, e a mãe havia demorado muito a aparecer e como desculpa disse que tinha ido ao mercado. Dona Lena teria perguntado pelas compras e a resposta da mãe foi “Não me questione, menina…”

Dona Dorinha da papelaria conta que foi neste dia que Dona Lena elegeu o roxo como sua cor preferida. Era portanto um gosto que vinha desde a infância. Parece que ela falou, muito pequena ainda, como ainda era quando aconteceu aquilo do atraso da mãe, parece que ela falou que “cor é uma coisa alegre mas é importante a gente saber usar as cores para conseguir lidar com as tristezas e o roxo é bom para isso…” Diz Dona Dorinha que Dona Lena falou isso no dia seguinte ao da demora da mãe.

Agora que começou a circular essa história de que Dona Lena está mais magra, calhou de comentarem também que ela está com algum problema com a irmã, que parece que é a única pessoa que lhe resta da família que um dia já foi grande. O detalhe engraçado é que ninguém sabe o nome da irmã. Já até disseram que as duas não se dão muito bem. Vai ver que essa irmã era a preferida da mãe. Mas isso é só especulação. Foi a irmã com certeza que deu à Dona Lena aquele vestido roxo com detalhes verdes, o das terças-feiras, e as pessoas sabem disso porque, aí, sim, Dona Lena comentou.

Quem talvez saiba dizer se há alguma coisa errada com Dona Lena é o Jorge Advogado, ali do prédio da esquina. Ele era o responsável pelo acerto do aluguel do apartamento em que mora Dona Lena. Parece que ela paga bem pouco. O imóvel é de uma senhorinha muito boa, amiga de Dona Lena também do tempo da escola. E é uma senhora que tem boas condições de vida, anda sempre muito arrumada, mora ali na Paissandu, que é tida na região como uma rua mais nobre. E ela fez essa gentileza de cobrar um aluguel simbólico de Dona Lena porque não precisa de dinheiro. Talvez alguém devesse dizer a ela que Dona Lena está parecendo mais magra, se é que essa história ainda não chegou à Paissandu, porque de repente esta senhora endinheirada pode ajudar de alguma maneira. Se for o caso.

Categorias
Crônica Literatice Paulo-Coelhismo

Cliques

Passava pelo Dorminhoco, tirava uma foto. Ele “pedia”. Às vezes, era um movimento que chamava a atenção de quem estava perto. Mas nunca deve ter parecido invasão de privacidade. Jamais houve uma reprimenda e, com o tempo, o “fotógrafo” foi sentindo-se mais à vontade para investir nos registros. Tinha se acostumado a chamar daquele jeito um senhor que parecia ganhar a vida como guardador de carros, ali perto daquela padaria na Ministro Lira. Quase sempre calçava chinelos de couro, ele. Havaianas, nunca. Durante muito tempo, exibiu uma certa dignidade: roupas limpas, barba sempre bem feita. Era comum vê-lo mais dormindo do que acordado, mas invariavelmente com sacolas de mercado penduradas num dos braços. Vazias, sempre.

Tinha se tornado um exercício regular, aquela história de chegar perto e registrar o sono daquela pessoa. Era um sono despreocupado, o dele. Ou parecia ser. Mesmo enquanto dormia, dava a impressão de estar tomando conta ali do pedaço. Fechava os olhos, mas demonstrava autoridade. Falando assim, é difícil alguém acreditar. Assim como era um desafio entender de que maneira um cochilo podia ser aproveitado nas posturas que aquele senhor assumia/exibia. Mas era prazerosamente esparramado nas cadeiras que ele comandava as coisas. Depois, a cadeira foi substituída por um banco. Pra que encosto, né?

As capturas com o celular variavam na medida em que o Dorminhoco se mostrava em mergulhos diferentes. Mergulhos de/no sono. Houve uma vez em que o lugar escolhido por ele para encostar-se foi a porta de acesso a uma escada que levava ao segundo andar do prédio colado à banca de jornal. Funcionavam lá em cima um restaurante japonês e uma sinuca. O japonês era conhecido por ser o mais barato da região. A sinuca, pelas mesas grandes lindonas e por ter apenas cerveja e nenhum petisco disponível. Mas, para o fotógrafo, vamos chamar o cara de fotógrafo mesmo, para ele, bem, o importante era aqueles estabelecimentos estarem no caminho/quadrado do Dorminhoco. Tinha mesmo desenvolvido alguma relação com aquele personagem.

Planejava abordá-lo. Achava ter ouvido alguém na padaria chamá-lo de “Sapão”. Achou pouco respeitoso, o apelido. Não gostou. Preferiu ficar com “Dorminhoco” mesmo. Ainda mais que não tinha revelado a alcunha a ninguém. Chamava-o daquele jeito mas só fazia isso quando falava consigo mesmo. “Então, tudo bem. E ele pede…”

Certa vez, com uma metideza de artista, o homem-do-smartphone ficou na dúvida se deveria ou não aproximar-se bem do “alvo”. E resolveu ir. Teve a impressão de que sua chegada havia sido notada. Os olhos daquele homem pareceram se abrir um tantinho. Nunca soube se aquela velocíssima encarada aconteceu ou não mas, depois daquela noite, ficou pensando: “Caramba, ele tá ligado no que eu tô fazendo…” Naquela ocasião, o Dorminhoco estava meio torto sobre um caixote que fazia a gente se perguntar como é que alguém conseguia se equilibrar ali para dormir. Parecia não haver espaço para alguém sentar-se, quanto mais para dormir.

O tempo passa, dessa maneira que um dia todo mundo percebe que é mesmo assim como parece/anunciam. Superveloz. Sabe? Numa tarde, estava lá um jovem, com traços muito parecidos com os do Dorminhoco. Será que ia ocupar o lugar do pai? Será que era o filho ou um dos filhos? Dias depois, aparece de novo o Dorminhoco, sem uma perna, e com roupas já não tão limpas. Os diálogos que nunca existiram, sempre foram necessários, mas nunca existiram, pareceram então ser impossíveis. Houve uma breve troca de olhares. Havia dor, sim. Mas existia também calma. Nenhuma foto. Assim como não havia mais perna, parecia não haver mais sono.

Depois que as imagens foram organizadas no que se podia chamar até de uma série, o fotógrafo pensou em imprimir tudo. Mais: talvez aquilo pudesse render algum dinheiro para o personagem. O Dorminhoco ia gostar de saber. Mas de repente tudo mudou, no cenário. A banca de jornal foi substituída por uma maior. Dessas com vidro e aparelho de ar-condicionado. O japonês e a sinuca fecharam as portas. O que se vê lá hoje são placas com números de telefone, para quem estiver interessado nos imóveis. O Dorminhoco tinha sumido, assim como sua perna fizera antes. O rapaz sentiu um certo alívio, por nunca ter mostrado as imagens a ninguém. Desejou que seu amigo estivesse numa cama confortável. Teve medo de perder o sono. Sentiu-se com sorte por isso não ter acontecido.