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E a Elca, hein…?

O Rogério, de vez em quando, apelava para o palavrão mas tinha a vantagem de conseguir com que tudo — ou pelo menos muita coisa — saísse da sua boca de maneira suave: “Chove pra caralho, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.” Rogério se foi quando ainda podia ser chamado de “jovem”, carregando uma acidez que não era bem mau humor, era uma coisa que, sabe, os amigos perdoavam mas não era por isso que não era mau humor… Era um troço que ninguém sabia explicar direito. Nem mesmo os amigos. Talvez por isso achassem melhor perdoar. Claro que era melhor. Mesmo que Rogério não fosse santo. Aliás, não o chamavam muito pelo nome completo. Preferiam Roger. Muitas vezes, depois de tirar o acento agudo e aquelas duas últimas letras, davam uma risada que… que era a comprovação de que não havia mau humor ali naquelas rodas.

Alguns parceiros de Roger, quando se encontravam num boteco, gostaram de falar também do Marcos. Que era outro que tinha partido e a quem raramente se referiam pelo nome. Preferiam falar Meleka. E era assim com “k” porque se tratava de uma espécie de precursor da cultura da tag. Como Roger resumia bem: “O filho-da-puta era um rabiscador de mesa, na escola.” Era mesmo, porque tinha um problema com sua letra: achava horrível, o resultado; sentia vergonha. Não houve caderno de caligrafia que desse jeito. E quando Meleka se cansou de ouvir os camaradas dizerem que ele tinha “letra de médico”, começou a escrever usando “letra de imprensa”. Ou “letra tipo bastão”, como aprendera na aula de Técnicas Comerciais, numa escola pública da Penha. As mesinhas que ocupava na escola eram invariavelmente preenchidas por letras tipo bastão. Escrevia letras de músicas dos grupos punks que curtia. E às vezes fazia desenhos. O melhor de todos foi um garçom correndo com uma bandeja.

Um dos sobreviventes, quando passava de quatro cachaças, sempre, sempre puxava uma discussão sobre um possível encontro entre Roger e Meleka, no Além. E era sempre o Além que esticava as argumentações, as manifestações de descrença e desgosto, as defesas apaixonadas e cheias e culpa. Pulavam daí para a política e começavam a falar mal do prefeito da cidade. Era quando todos voltavam a rir, não sem uma dose de preocupação, mas sentindo o cheiro da adolescência, de quando acreditavam na “revolução” e panfletavam e escreviam nas paredes frases que consideravam transformadoras e capazes de mobilizar as pessoas. Meleka escrevia estas mensagens com letras tipo bastão. E saía tudo tão arrumadinho, às vezes, que ele tinha medo que pudesse ser preso por conta daquilo. Todo mundo ria, lembrando dessa história. Era certo que em algum momento falassem da Elza, por quem um dia todos tinham se apaixonado. Na certa, alguém ia perguntar, arrancando uma gargalhada-geral: “E a Elca, hein…?”

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Puxar, babar, lamber

Uma “atividade” parecia estar sendo especialmente prejudicada pelo isolamento social. A do Puxa-Saco. Ou do “Puxa-Sacos”, como parecem preferir os mais estudados. Atualmente, é mais fácil falar do Bava-Ovo, pra todo mundo entender. Mas os mais estudados, sempre eles, talvez prefiram Baba-Ovos. A questão não é o S, mas a puxação, ou babação em si. Virtualmente, isto é, pela web, a segunda “profissão” mais antiga do mundo parecia ameaçada de perder força.

O Puxa-Saco tem todo aquele jogo de corpo, né? Começando com o olhar pidão, detalhe que integra um semblante extremamente doador, com aquela dualidade que só os subservientes e interesseiros parecem ser capazes de colocar em prática. Como fazer isso online? Com as palminhas batendo, no WApp? Perde muito da graça. Um “hahahaha” ou um “rsrsrsrs” jamais terão a gosminha de uma gargalhada forçada após uma piada que nem era assim tão boa.

Uma vantagem que a gente talvez possa apontar é que, teclando, parece que se cria um contrato de babação, uma declaração de puxa-saquismo, a formalização daquela velha sem-vergonhice. É comum a gente voltar a uma mensagem para ter certeza de que o entendimento foi correto. É comum a gente ler um contrato, ou parte dele, para ter certeza de que é aquilo mesmo. Nada mais “normal” então do que dedicar alguns minutos à releitura de uma babação-de-ovo no Foicebook ou no WApp. Para em seguida perguntar-se: é isso mesmo, é pro mundo inteiro ver e entender que é babação descarada?

Os protocolos internéticos, aquelas coisas de atenção aos momentos em que se usa caixa alta, as carinhas, os “risos”… tudo isso criou uma “gordura” para a linguagem que pode ser bem aproveitada pelos bajuladores de plantão. Estamos vivendo uma época de divisão de águas. Agora, veremos sobreviverem e se sobressaírem os babadores realmente sérios e comprometidos com a “coisa social”. O Pusa-Saco entra finalmente no século XXI, diferenciando-se do Pela-Saco, que — vale explicar — parece ser a evolução quase natural do Puxa-Saco que se deixa tomar pelo ódio.

A contemporaneidade/inteligentsia ainda não achou resposta para a questão de gênero. Falar em Puxa-Saco traz uma perspectiva muito masculina. Na busca/luta por igualdade, precisamos dar a todEs a chance de serem escrotEs. Talvez Lambe-Botas, hein? Mas aí fica muito old-school, né? Tem a pegada fetichista/BDSM, mas é muito old-school. Para sobreviver, o puxa-saquismo precisa continuar evoluindo, como tem acontecido, agora; não voltar atrás…

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Futum

Pra muita gente, hoje é dia de voltar ao passado. Porque acham corriqueiro e ao mesmo sério e pertinente agora falar do episódio que muitos passaram a chamar de O Dia Que Mudou A História. A maioria faz isso ainda sem saber se deve escrever assim, com maiúsculas, ou não; sem ter lá muita certeza sobre aquilo de que estão sentenciando. É a perspectiva botequiana tomando de novo conta da História, emprestando seriedade ao mesmo tempo em que banaliza; mesmo em dias/noites de botecos vazios. O que você estava fazendo, 19 anos atrás? É a pergunta que mais se ouve, hoje? Ou geral está mais preocupado com o preço do arroz?

O Passado é compadre da Justiça? Segure a gargalhada aí, porque a pergunta é séria. Poucos anos atrás, era comum a gente ouvir alguém dizer que os dias que estávamos vivendo eram os melhores que havíamos conseguido alcançar. Agora, já não dá para dizer/garantir isso. Quase dá para ter certeza do contrário. Águas passadas não movem mesmo moinhos. E o arroz será sempre uma das partes do binômio que no fim das contas comanda toda a organização da humanidade por estas: o arroz-com-feijão. Ah, sim: Feijão, pode esperar, a tua hora vai chegar/voltar. Afinal, se tem uma coisa que o Passado nos ensina é que, se podem ferrar a massa com dois ingredientes, não usarão apenas um.

Cada um de nós tem o próprio 11 de Setembro. Ou terá. Aquele dia em que é atingido(a) no peito com uma frase mortal, desconstrutora/desmoronante, fatal para uma enxurrada de sonhos que podiam sair dali mas se perderam. Viraram poeira. “Você não sabe o que é amor.” “Seu filho morreu.” “É que eu quero ficar com outra pessoa.” “Foi embora.” “Vá embora.” “Some da minha frente.” “Eu não sou isso aí que você está falando, não…” Aviões derrubando torres. Perceber pessoas se esforçando para entender O Dia Que Mudou A História, quase duas décadas depois de um acontecimento que ainda merece manchete, pode ser um ótimo estopim para quem pretende entender (pelo menos um pouco) o próprio percurso. Ou a interrupção do percurso, o que não deixa de ser percurso-em-si.

Para quem ainda está em isolamento, por conta da pandemia, este pode ser um exercício ainda mais marcante/assustador. Quem ainda vive de construir listas, coisa que parece não sair da moda, pode brincar com a coincidência entre os números: no décimo nono aniversário do ataque às torres gêmeas, estamos às voltas com o Covid-19. No mesmo dia, pipoca uma notícia de que as vendas de vinis ultrapassaram as de CDs na primeira metade do ano. Passado é assim: às vezes, traz um perfuminho. Mas noutras resgata mesmo é um futum bem desagradável. Tá sentindo, né?

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Bolo de fubá

Viram que a Dona Lena está mais magrinha? Dá para imaginar? Mais magra, pois é: passou entre dois táxis que estavam estacionados ali, no ponto da Senador Correa, perto da praça; e nem precisou ficar de ladinho para completar o movimento. Vinha com aquele vestido roxo, com detalhes verdes, aquela combinação sobre a qual a gente sempre fica comentando, que ela usa quase toda terça-feira, e o vestido deu uma espanada na poeira daqueles carros amarelos, porque estava ventando muito quando Dona Lena apareceu e se espremeu por ali. Quer dizer, ela não se espremeu.

Tá ligado nas unhas da Dona Lena, né? Outro dia, alguém estava comentando sobre isso mas em vez de falar “unhas da” optou por “unhas de”, e, aí, começou aquela palhaçada de um zoar o outro dizendo/acusando “Você é de Bangu e por isso fala assim”. Mas parece que acontece também em Jacarepaguá, isso de falar com “de”. E Dona Lena participava da discussão, lembrando das coisas que tinha aprendido com o pai farmacêutico, sem saber que o gatilho para aquilo tudo tinham sido suas unhas enormes, que às vezes chamavam ainda mais a atenção porque vinham pintadas. Teve uma menininha da escola ali da praça que demonstrou medo uma vez quando viu as unhas roxas de Dona Lena. Roxo é uma cor que aquela senhora simplesmente adora.

Era engraçado ver como ela conseguia mobilizar os motoristas para contar sobre as coisas que tinha aprendido com o pai. Havia quem achasse que os caras só paravam para ouvir por conta de um detalhe: quando ia contar histórias, ela trazia uns pedaços de bolo de fubá. “Porra, o bolo de fubá da Dona Lena é show!” Invariavelmente, havia a explicação de que no caso do bolo a receita era de uma tia e não do pai. Na sequência, quase sempre ela falava que aquelas duas eram as pessoas de quem mais sentia saudades.

Alguém sempre lembrava de uma ocasião em que Dona Lena havia explicado por que não sentia saudades da mãe. Parece que uma vez ficou esperando muito tempo, na saída escola, numa noitinha de chuva, e a mãe havia demorado muito a aparecer e como desculpa disse que tinha ido ao mercado. Dona Lena teria perguntado pelas compras e a resposta da mãe foi “Não me questione, menina…”

Dona Dorinha da papelaria conta que foi neste dia que Dona Lena elegeu o roxo como sua cor preferida. Era portanto um gosto que vinha desde a infância. Parece que ela falou, muito pequena ainda, como ainda era quando aconteceu aquilo do atraso da mãe, parece que ela falou que “cor é uma coisa alegre mas é importante a gente saber usar as cores para conseguir lidar com as tristezas e o roxo é bom para isso…” Diz Dona Dorinha que Dona Lena falou isso no dia seguinte ao da demora da mãe.

Agora que começou a circular essa história de que Dona Lena está mais magra, calhou de comentarem também que ela está com algum problema com a irmã, que parece que é a única pessoa que lhe resta da família que um dia já foi grande. O detalhe engraçado é que ninguém sabe o nome da irmã. Já até disseram que as duas não se dão muito bem. Vai ver que essa irmã era a preferida da mãe. Mas isso é só especulação. Foi a irmã com certeza que deu à Dona Lena aquele vestido roxo com detalhes verdes, o das terças-feiras, e as pessoas sabem disso porque, aí, sim, Dona Lena comentou.

Quem talvez saiba dizer se há alguma coisa errada com Dona Lena é o Jorge Advogado, ali do prédio da esquina. Ele era o responsável pelo acerto do aluguel do apartamento em que mora Dona Lena. Parece que ela paga bem pouco. O imóvel é de uma senhorinha muito boa, amiga de Dona Lena também do tempo da escola. E é uma senhora que tem boas condições de vida, anda sempre muito arrumada, mora ali na Paissandu, que é tida na região como uma rua mais nobre. E ela fez essa gentileza de cobrar um aluguel simbólico de Dona Lena porque não precisa de dinheiro. Talvez alguém devesse dizer a ela que Dona Lena está parecendo mais magra, se é que essa história ainda não chegou à Paissandu, porque de repente esta senhora endinheirada pode ajudar de alguma maneira. Se for o caso.

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Haja punk rock

“Aperta aqui. Depois, a gente passa um álcool na mão e tá tudo certo.” Foi assim a tentativa de encerrar uma discussão que começou com futebol e, por causa da cerveja, não terminava. O álcool por dentro talvez tenha estimulado o mais calmo dos dois a sugerir o álcool por fora, isto é, nas mãos, para encerrar e pendenga de maneira que, digamos, nenhum dos dois lados levasse prejuízo para casa. Como os mais civilizados faziam, antigamente. Neste caso, o prejuízo seria o Covid. Mas logo depois de pronunciada a frase… Bom, a coisa acabou, ali, acabou mesmo. Mas com os dois fazendo papel de cara-de-bunda, sem o aperto de mãos. Mesmo quase bêbados, entenderam que o álcool-70% tiraria mais do que os “germes”, como diz a Lucy do desenho dos Peanuts. A moral da história é: álcool por dentro pode estragar tudo; por fora, já não garante muita coisa, para infelicidade dos mais civilizados.

Um troço que não acaba é discussão sobre futebol e política. Outro dia, um cara, bem intencionado, até, pelo que se sabe, do tipo que nas últimas eleições não fez o papel de classe-mediano-escroto, esse cara falava de “cidadãos de bem”. Pra você ver, hein, como se trata de uma expressão emporcalhada pelo ódio mas que pode aparecer em qualquer dos 300 lados. Aconteceu num grupo de WApp. E foi só aquele social-democrata falar em “cidadão de bem” para uma integrante da turma apontar que aquele era o nome de um jornal da Ku Klux Klan. Acabou como no episódio anterior. As expressões de constrangimento, desta vez, não apareceram. Porque se tem uma coisa boa nos grupos de WApp é a garantia de certa “proteção” aos usuários: o cara-de-bunda do iPhone interage com o cara-de-bunda do Samsung sem precisar do álcool por fora.

Estes dois primeiros parágrafos resumem tão bem o “quadro” dos últimos dias que seria razoável encerrar por aqui mesmo a crônica. A vida em dois parágrafos. Histórias curtíssimas. Já é quase Natal. Esperanças limitadíssimas, mas, com um liquidozinho higienizador, tudo pode se resolver e manter a esperança de pé. Rá! Mas o tempero extra do universo — pitadas de passado quase esquecido e de futuro bastante incerto — andam aparecendo de uma forma assim tão 70%, como que prometendo desdobramentos improváveis, que há algum combustível para seguir em frente. Ah, e teve o aniversário de lançamento do “Fresh fruit for rotting vegetables”, dos Dead Kennedys, esta semana. O álbum fez 40 anos. Não dá para terminar uma prosa sem registrar isso.

Estamos falando de um álbum que não era exatamente uma pregação em favor da revolução. Mas uma zoação que beliscava os mais sensíveis num modo non-stop. E tudo com uma velocidade, um vigor, umas letras e um deboche provocador que até então a gente não estava acostumado a ver. Não foi à toa que um monte de cinquentões postou estes dias que aquele foi um disco que mudou suas vidas. Será que estes sujeitos percebem que mesmo sem o medo da terceira grande guerra podemos eleger aquela pérola punk como uma trilha bastante adequada para os tempos atuais? O legado dos Kennedys não vai morrer nunca.

Quer coisa mais Dead Kennedys do que sair para ir à feira, num sábado, e, por se tratar de um percurso feito na Zona Sul do Rio, ver uns bons 30 policiais, pelas esquinas, espalhados em duplas ou trios, cuidando (até as 20h, pelo menos) da segurança da tradicional família carioca? E em pelo menos quatro destes pontos, o que eles estavam fazendo? Mexendo em seus celulares! O que será que estavam lendo/digitando?  De que grupos de WApp será que fazem parte? Não há mesmo álcool 70% que dê jeito. Haja punk rock.

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Três lados

Está rolando, desde o último fim de semana: uma espécie de trégua. Gente de todos os tipos, digo, de quase todos os tipos fazendo a mesma pergunta. Todo mundo, ou quase todo mundo, querendo saber do presidente que história é essa de a patroa ter recebido todo aquele cascalho do Queiroz. Alguém lembra de um episódio recente em que tenha havido uma “união” assim tão grande, ainda mais nos terrenos internéticos? Bem que algum estrategista podia aproveitar isso para começar um trabalho de pacificação/reunião que tire da prefeitura do Rio aquele cara que está lá. Mas aí talvez já fosse pedir demais. Vamos nos concentrar no momento, nos contentar com a sensação de paz, boa vontade e colaboração que anda rolando. Como se o novo normal pudesse ser assim. Pelo menos aqui nesta bolha.

Ah, é, tem a questão da bolha e esta “trégua” pode ajudar a gente a entender melhor as bolhas. Ou as moedas. Quer dizer, pode ser um passo definitivo na direção da aceitação dos três (e não dois) lados da moeda. As bolhas não são apenas a reunião de um grupo de pensadores/agentes pautados por uma única verdade. Em cada bolha, há na realidade gente de diferentes tipos enxergando a “verdade” de acordo com o que é conveniente para o próprio umbigo num determinado instante. A história dos 89 mil tostões faz a gente pensar que, neste xadrez, mais do que uma bolha contra a outra, há em cada grupo discordâncias cada vez mais ferozes que andam dificultando a manutenção das bolhas em si.

Quem aí com algum tutano não conhece uma alma que considera menos privilegiada na capacidade de elaboração e entendimento do mundo mas com quem, por uma série de motivos, por “afeto”, vá lá, é capaz de (ou ao menos tenta) manter algum diálogo? Isso não significa render-se ao caô de que não há Direita nem tampouco Esquerda. Não é isso. E “afeto” não é sinônimo de perdão incondicional. Mas isso é fugir pelo menos um pouco do maniqueísmo futebolístico.

Talvez a gente pudesse seguir o exemplo daquela rapaziada californiana descolada, que, meses atrás, combinou de levar seus cachorros para passear justamente no trajeto programado para horas depois ser preenchido por uma manifestação de extremistas de Direita. A ideia não era brigar, mas sim deixar que os cachorros fizessem número dois pelo caminho para que os reaças, pelo menos alguns deles, cagassem seus pés durante a caminhada.

Imagina se essa “moda” pega, por aqui. Vislumbre um novo momento de união nas bolhas. De um lado, pessoas que se preocupam com os direitos de cães e gatos mas resistem/meditam pra não jogar seus Jeeps em cima dos humanos que estão em situação de rua… Do outro, o grupo social-democrata, que defende ações do Estado para garantir o bem-estar da maioria e que por isso são tidos como radicais de esquerda, áses da arrogância nas discussões com referências acadêmicas… Todos unidos contra aquele vizinho mané que nem enche o saco de ninguém, mas… mas há alguma coisa de “estranha” no comportamento dele, né!?

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Óleo básico

O Zé estava falando agora mesmo da Terceira Guerra Mundial. Tem que escrever assim mesmo, com maiúsculas, porque o cara empregou um tom bem sério. O Zé É sério. Comentou sobre a anticiência, sobre coisas que não são provadas, mas, apenas comentadas. “A anticiência dos nossos dias precisa ser absurda pra os computadores serem incapazes de entendê-la”, lançou, cabeceando ele mesmo logo depois: “E os discursos, nascidos sem cálculos, criam parâmetros que sendo bonzinhos a gente pode chamar de fantasiosos. TGM é isso.” Há também quem diga que o atual patamar da taxa de desemprego em países ricos é uma comprovação de que estamos vivendo a Terceira Guerra Mundial. Um vendedor de cursos online recorreu outro dia a estes números pra oferecer seu pacote de aulas. Será que o Zé compra esse tipo de coisa? Quantos terão caído nessa?

A conversa chegou aos robôs e eles foram apontados como os grandes personagens por trás da TGM. “Eles, que vão trabalhar pra sempre nos bancos.” Isso merece virar verso, tem peso para ser um pedaço de letra de música. A gente passa por aqui, por esta vida, mas rapidinho. Mas eles, os robôs, ficarão pela eternidade. Daqui a pouco, vai ter igreja vendendo isso; robôs que permanecerão no mundo para pagarem pelos pecados do humano SORTUDO que tiver conseguido adquirir um. Imagine uma época em que automóveis não serão mais os grandes sonhos de consumo.

Pode surgir uma treta aí, quando as bonecas infláveis reivindicarem seu direito ao óleo básico, querendo igualdade de condições/status com os robôs vendidos pelos templos — em suaves e abençoadas prestações mensais. Tudo com desconto em folha, para facilitar; imaginem! Em breve, a sofisticação cyber pode emprenhar a religiosidade com um detalhe impensável há até bem pouco tempo. Dá para imaginar que teremos grande oferta de modelos de terno e gravata. Um país que adora bandidos escondidos neste figurino, claro, vai achar a coisa mais normal do mundo “investir” em robôs vestidos assim.

Estamos diante de uma retomada do Philip-K-Dickianismo, quando a gente achava que já tinha usado todas as referências para reclamar da lama que nos borra a camiseta que deveria estar limpa para quem ainda não desistiu de encarar uma Smart Fit da vida. Com hora marcada, agora, para que sejamos montanhas de músculos re-al-men-te saudáveis, isto é, livres do Covid. Já houve quem, com alguma pretensão de ser humano-e-esclarecido, questionasse estes templos da boa forma, acusando aquele ambiente de criar… robôs. Profético, né, esse pessoal da psicanálise!? Mas a provocação não chegou a ganhar eco entre a intelectualidade. Nas mãos de um Fausto Fawcett, isso talvez rendesse um álbum.

Dirão alguns que falar sobre máquinas é falar do mesmo. Mas elas evoluem tanto que acaba sendo algo novo, porque jogamos luz sobre modelos fresquinhos. Máquinas carregam um princípio Tostines. Máquinas e Marcas, como essas “coisas” estão próximas, hein, caramba! Próximas, não. Podem ser tomadas como uma só coisa. As guerras estão aí para estimular as indústrias e o consumo, já tivemos toneladas de punkrocks, pelo menos duas gerações de anarcopunks explicando isso. Na Terceira Guerra Mundial, não seria diferente. Humanos de boa vontade concordarão.

Dick é o verdadeiro pai dos replicantes
Dick é o verdadeiro pai dos replicantes

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Padaria

Saudade parece que nunca anda sozinha. A falta que a gente sente de escrever ou de desenhar se emenda fácil, fácil, na falta que faz (convi)ver (co’)uma determinada pessoa. Numa época em que rabiscar pensando em alguém tornou-se um exercício muito mais comum e possível do que rabiscar olhando de perto para alguém, é bom achar uma maneira de lidar com elas, as saudades. Sobram os textos, às vezes, e sorte de quem consegue achar que isso é muito/suficiente.

Fica um pouco chato quando, quase clicando no link da sabotagem, o cara se pega fugindo da escrita, guiado por algum circuito da cachola em que aquilo se transformou numa obrigação. Saudade, quando vem, está longe de ser uma obrigação. É isso sim uma orca te perseguindo na praia, você sabendo que não está suficientemente perto da areia para conseguir fugir. É bom respeitar/aceitar o texto, quando ele surge, porque se aquilo escapa você provavelmente nunca mais conseguirá rever/repensar naqueles mesmos “moldes”. Textos mais do que nunca moldam saudades.

Com a poesia é a mesma coisa. Ou pior. Porque com os versos a gente pode ficar mais escabreado, juntando à possibilidade de registro o medo do ridículo. Se para provocar a gente diz que “fazer poesia é fácil, difícil é confessar que fez…”, imagina pensar poesia, e não escrever nada… No mundo ideal, seria ainda mais “confortável”. Mas o desespero de perder um versinho, um versinho que seja, pode ser também uma semente de ferida com a qual ninguém aí está preparado para lidar. Se disser que está, pode ser uma declaração que não passa de cagaço. Trocando em miúdos, é isso: cagaço.

Teve esta semana a história de um cara que, para lidar com a falta de tempo e a saudade, ocupava ainda mais as brechas que se lhe apresentavam. Isso. Não tinha tempo e tratava de ter ainda menos. Desandou a fazer pães. Cismou com isso e dizia aos manos que aquela “brincadeira” era uma espécie de meditação. Mais um louco-de-pandemia. Quando comia o resultado do trampo, da queima de um tempo que nem existia direito, ou quando distribuía aquilo entre amigues, relaxava. E percebia um alívio. Mas durava só um piscar de olhos, porque a onda era preencher todas, todas as brechas. Pra muita gente, não tem dado tempo de sentir nada.

Lidar com o tempo nunca foi fácil. Com a saudade, menos ainda. Nestes dias, a tarefa parece ter assumido ares ainda mais impossibilitadores. Porque a gente pode se pegar sem conseguir decidir se ele, o tempo, está passando rápido demais ou demasiado lento. No mesmo dia, você pode ouvir alguém dizendo que “já é Agosto” e uma esquina depois que “nem parece que já se passaram quatro meses de trancamento em casa”. O mundo precisa se decidir.

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Um brinde, Bebel

Para fugir da(s possibilidades de aglomeração), três caras marcam um encontro naquele que para o grupo é o boteco-do-coração. Em Copacabana, às 14h de uma terça-feira. Serão apontados como exemplo de vagabundagem e vão se orgulhar de defender a essência da carioquice. Sem falar que se os chopes forem como antigamente, tudo/muito terá valido a pena. É no que acreditam, estes irresponsáveis. O grande lamento é que neste horário o garçom preferido deles, o Beto, ainda estará em casa. A promessa de beber apenas três copos é isso, uma promessa. Em nome de velhos sonhos, que vêm se desfazendo, cumprir o escrito, mesmo se estiver escrito no WApp, está com tudo. Cumprir o combinado é o novo black. Mesmo de mentirinha. Mesmo para os irresponsáveis.

Outro black parece ser o zine novo do MZK. Está lá no Foicebook, um aperitivo, para quem quiser ver. Se é para a gente ser engolido pela WWW e ainda por cima ser acusado de dar piti, que o azul seja outro diferente daquele do Foicebook, né? Aquele troço lá só pra de vez em quando mesmo, para colocar o link de uma crônica ou outra e, sem querer querendo, esbarrar com desenhos de caras como o Maurício Zuffo Kuhlman. E do Sica. Também tinha um livro do Rafael Sica, anunciado lá. Tiragem baixa, acho que com assinatura. O minúsculo e o gigante, conforme disseram três décadas atrás, estão se confirmando como tendência. O minúsculo, que são caras como estes artistas aí, estão dando de dez nos gigantes. Esqueceram de falar nos miseráveis, naquelas palestras dos anos 90, e continuam esquecendo agora.

Para lidar com gigantes, vale seguir as dicas sobre como ludibriar o algoritmo. Tem uma história de visitar páginas feitas por pessoas com as quais você não concorda muito. E até mesmo fazer comentários. Porque assim afrouxam-se os filtros sobre o que te é oferecido na timeline. Que coisa, hein!? Perca aí uma tarde pensando, pra ver se encontra equivalente para isso nos tempos passados. Surge no ar a pergunta sobre a necessidade de ter filtros/algoritmos para oferecerem aquilo que vamos consumir/ler/ouvir/ver. Mas uma terceira acusação de piti ninguém aguenta. Desligar o aparelhinho está cada vez mais difícil. Dirão os esquerdopatas que “feliz era o porteiro, que mergulhava no radinho de pilha mas ainda tinha algum tempo para brigar sobre futebol”.

Naquele lugar em que se encontram gigantes, anões, blacks, whites, enfim, quem estiver de máscara e não se importar com xingamento… bem ali, estão os sonhos. Recorrentes, às vezes, e nestes dias de Blade Runner se materializando em cada esquina. Como as bonecas com aparência quase humana para quem se sente “só”. O Zé Sem Nome falava outro dia sobre robôs e testes feitos com robôs, sobre como isso desperta a compaixão de certos humanos. Pois é, Zé, a humanidade, está mais do que se afeiçoando às máquinas. Investindo neste tipo de “aparência” para si mesmo, facilita muito as coisas para a indústria. Eram proféticos os versos d’Os Replicantes, em “Astronauta”: “…Agora quando a lua cresce no céu/ Aperto contra o peito o coração de Bebel/ E abençoo toda a indústria eletrônica/ Por ter criado a minha nova esposa fiel/ E molho a garganta tentando me livrar/ Das últimas partículas de poeira lunar/ Bebel então percebe e começa a chorar/ E eu tenho medo que ela vá enferrujar…”

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Sem crachá?

O pessoal da Astrologia está dizendo que o Sol… Ah, passou rápido demais. Não deu pra pegar. Mas está fazendo sol, hoje, e esta minúscula no início, na sequência, não é “desrespeito”; é só pra aproveitar com mais intimidade. O pessoal da Astrologia também estava falando de Lilith. Mas a grande preocupação do dia é com a fiscalização. Os homens com crachás vão voltar e é bom que esteja tudo em ordem. Depois da ordem, vai ser o caso de torcer: para os caras terem alcançado um bronzeado legal e estarem bem-humorados. “Se o Sol está contente, também vale a pena a gente ficar”, dizem na internet os estudiosos dos astros. Fiscais pálidos, a gente ainda encara. Mas se estiverem azedos, aí…

Além da multiplicação de lives no Instagram e no Youtube, a rede mundial de computadores assistiu a uma revoada de aconselhamentos e cursos. De todos os tipos. Ontem, este escriba foi alvo de propagandas de uma série educativa sobre Magia. Ninguém quer problemas com fiscais e nem tampouco com magos. Vai ficar endinheirado, o sujeito que resolver montar um pacote de programas que ensine como lidar com representantes do Poder Público. Será que, na primeira aula, aquela gratuita, já seria o caso de pintar a dica de oferecer água ou cafezinho para começar a conversar depois disso? Que toque você aí dá para o empreendedor?

Talking Heads, a banda, tinha este nome numa alusão às cabeças que ficavam falando na TV. Hoje em dia, quando a TV parece ter ficado no passado, cabeças continuam falando e brigando por fama. E por dinheiro, claro, através de cursos (atualmente). Se for só fama, é bom o pessoal rever os sonhos porque parece época de se contentar com 15 segundos. Em época de pandemia, o noticiário faz a gente não saber se ainda tem 15 minutos de vida… E se vier um trocadinho junto, ótimo, claro. Imagina quando começar a fiscalização na WWW. Como será chamar para um cafezinho, via computador?

Não se tem mais notícia de concurso público. Mas, num passado não muito distante, todo mundo tinha um conhecido que estudava para ser aprovado em um. Talvez o poder do fiscal faça parte do emaranhado-inconsciente-coletivo dos nossos dias. Porque quando você se depara com um sujeito marrento, por exemplo, conhecedor de um determinado assunto, é como se ele fosse fiscal daquilo.

Imagina Fiscal de Hendrix, por exemplo. Existe. Teve aquele caso do amigo que, para testar o outro, desafiou: “Me diz o nome de uma música do Hendrix. Só uma!” Era uma daquelas antigas conversas sobre música, coisa comum de acontecer em botequim. E a prosa empacou, ali. Por conta da bebedeira, ou por desconhecimento mesmo, não houve resposta do desafiado e o desafiante, digo, o Fiscal de Hendrix, voltou para casa com a sensação de ter humilhado um adversário, alguém que havia vindo ao mundo para lamber-lhe as botas, glauco-mattosomente falando.

Era comum, antes da pandemia, a gente ouvir também a respeito do Fiscal da Natureza. Falar isso sobre alguém era como um xingamento. De leve, mas era. Melhor evitar a piada, porque ninguém quer ver fiscal ficando nervosinho.