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Conto Literatice

Bem, às vezes…

“Tá pronta, filha?” O pai fez a pergunta, certo de que a resposta seria o costumeiro “Peraí, por favor…” mas não chegou a ficar surpreso quando em vez disso ganhou ligeiro um “Vamos lá”. Saíram com mochilas, a menina de 7 anos com uma bem pequena, que era num formato de pandinha, e o chefe da família com uma grandona, de armação, antiga, da qual ele se orgulhava. Tinha pensado em desistir daquela mochila, porque ela era camuflada e trazia num dos lados uma bandeirinha do Brasil. Levavam também dois cases, sendo que um era para manter frios alguns dos alimentos que seriam consumidos, durante o fim de semana. Fazia friozinho, naquela sexta.

“Vai ser legal, né, papai?” Ele sorriu e respondeu que sim, enquanto arrumava no carro todas as coisas. “Mas precisa paciência, porque viagem, você sabe: às vezes, é árvore; às vezes, é cidade; às vezes, é vaca; às vezes, é fio; às vezes, não tem fio…” A menina sorriu o melhor sorriso daquela manhã, e revelou resíduos de pão francês entre os dentinhos da frente. O pai percebeu e ligou o botão da voz firme para dizer que eles precisariam voltar para o apartamento, para que a pequena escovasse os dentes, coisa que ela não tinha mesmo feito.

Já na estrada, a garota ocupava seu lugar na parte de trás do 4×4, e se divertia com um pacote de biscoitos de queijo. O pai caçava o olharzinho dela pelo espelho e ficava pensando se haveria algum problema com os dentes da filha, já que ela não parava de comer e ele precisava ficar toda hora lembrando da escovação… Tinha aprendido fazia pouco tempo a não deixar que pensamentos assim o levassem para um poço escuro, tomado por água-raiva, onde encontrava a ex-mulher e se afogava com ela em discussões sobre o valor da pensão.

“Às vezes, é o aluguel; às vezes, um extra pro dentista; às vezes, uniforme novo; às vezes, dentista… Porra, tem essa porra de dentista…”, deixou escapar, deixou escapar bem, com um tom de voz que foi crescendo. Se tivesse parado no aluguel, a menina não o teria ouvido. Mas ela ouviu. Sorte dele, porque a resposta para aquele momento de cólera, foi o melhor dos antídotos: “Eu te amo super ultra big mega power infinito, papai… Estou muito feliz de ir viajar com você. Acho que eu vou amar o acampamento…” Ele sorriu e explicou: “Não vai ser bem acampamento, dessa vez. Tem que ser aos poucos, porque eu sou cascudo mas você, não. Com o tempo, a gente vai acampar, perto das praias, perto dos rios, e aí vai ser muito, muito legal. Mas por enquanto a gente vai ficar numa cabana. E vai ter lareira, vai ser muito legal, a gente vai brincar de acender fogueira…”

Pararam num posto, para abastecer, e também porque precisavam comer alguma coisa. Quem sabe a menina poderia escovar os dentes, coisa que acalmaria muito o pai. “Porra, tem essa porra de dentista…” O frentista vestia por baixo do macacão a camisa de um time de futebol que era justamente a agremiação pela qual pai e filha não tinham muita simpatia. “Ih, papai, olha a camisa dele…” “Pois é, filha… Deixa pra lá…” Por algum motivo, o pai deu cinco pratas de gorjeta ao rapaz que limpou o para-brisa, colocou água nos lugares em que era preciso colocar água, reabasteceu o veículo, sorriu um sorriso meio amarelo mas que não deixava de ser sorriso. Ficou satisfeito, ele, por ter dado aquelas cinco pratas. Sorriu um sorriso que também era meio amarelo, antes de seguir com a menina para a lanchonete incrustada ao posto.

Era um daqueles lugares onde você pega um cartão magnético em que são registrados os produtos consumidos. A pequena quis um cartão só para ela, mesmo depois de a moça da entrada ter dito que “Criança pode registrar tudo no cartão do pai, e é bom que aí o pai paga…” Depois de sorrir um sorriso meio amarelo, diante da frase da moça, a menina sorriu um sorriso mais de verdade para o pai e começou a conversa que duraria todo o tempo que eles passariam ali dentro: “Viagem, às vezes, é árvore; às vezes, é cidade; às vezes, é vaca; às vezes, é fio; às vezes, não tem fio… Né, papai?”