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Bolo de fubá

Viram que a Dona Lena está mais magrinha? Dá para imaginar? Mais magra, pois é: passou entre dois táxis que estavam estacionados ali, no ponto da Senador Correa, perto da praça; e nem precisou ficar de ladinho para completar o movimento. Vinha com aquele vestido roxo, com detalhes verdes, aquela combinação sobre a qual a gente sempre fica comentando, que ela usa quase toda terça-feira, e o vestido deu uma espanada na poeira daqueles carros amarelos, porque estava ventando muito quando Dona Lena apareceu e se espremeu por ali. Quer dizer, ela não se espremeu.

Tá ligado nas unhas da Dona Lena, né? Outro dia, alguém estava comentando sobre isso mas em vez de falar “unhas da” optou por “unhas de”, e, aí, começou aquela palhaçada de um zoar o outro dizendo/acusando “Você é de Bangu e por isso fala assim”. Mas parece que acontece também em Jacarepaguá, isso de falar com “de”. E Dona Lena participava da discussão, lembrando das coisas que tinha aprendido com o pai farmacêutico, sem saber que o gatilho para aquilo tudo tinham sido suas unhas enormes, que às vezes chamavam ainda mais a atenção porque vinham pintadas. Teve uma menininha da escola ali da praça que demonstrou medo uma vez quando viu as unhas roxas de Dona Lena. Roxo é uma cor que aquela senhora simplesmente adora.

Era engraçado ver como ela conseguia mobilizar os motoristas para contar sobre as coisas que tinha aprendido com o pai. Havia quem achasse que os caras só paravam para ouvir por conta de um detalhe: quando ia contar histórias, ela trazia uns pedaços de bolo de fubá. “Porra, o bolo de fubá da Dona Lena é show!” Invariavelmente, havia a explicação de que no caso do bolo a receita era de uma tia e não do pai. Na sequência, quase sempre ela falava que aquelas duas eram as pessoas de quem mais sentia saudades.

Alguém sempre lembrava de uma ocasião em que Dona Lena havia explicado por que não sentia saudades da mãe. Parece que uma vez ficou esperando muito tempo, na saída escola, numa noitinha de chuva, e a mãe havia demorado muito a aparecer e como desculpa disse que tinha ido ao mercado. Dona Lena teria perguntado pelas compras e a resposta da mãe foi “Não me questione, menina…”

Dona Dorinha da papelaria conta que foi neste dia que Dona Lena elegeu o roxo como sua cor preferida. Era portanto um gosto que vinha desde a infância. Parece que ela falou, muito pequena ainda, como ainda era quando aconteceu aquilo do atraso da mãe, parece que ela falou que “cor é uma coisa alegre mas é importante a gente saber usar as cores para conseguir lidar com as tristezas e o roxo é bom para isso…” Diz Dona Dorinha que Dona Lena falou isso no dia seguinte ao da demora da mãe.

Agora que começou a circular essa história de que Dona Lena está mais magra, calhou de comentarem também que ela está com algum problema com a irmã, que parece que é a única pessoa que lhe resta da família que um dia já foi grande. O detalhe engraçado é que ninguém sabe o nome da irmã. Já até disseram que as duas não se dão muito bem. Vai ver que essa irmã era a preferida da mãe. Mas isso é só especulação. Foi a irmã com certeza que deu à Dona Lena aquele vestido roxo com detalhes verdes, o das terças-feiras, e as pessoas sabem disso porque, aí, sim, Dona Lena comentou.

Quem talvez saiba dizer se há alguma coisa errada com Dona Lena é o Jorge Advogado, ali do prédio da esquina. Ele era o responsável pelo acerto do aluguel do apartamento em que mora Dona Lena. Parece que ela paga bem pouco. O imóvel é de uma senhorinha muito boa, amiga de Dona Lena também do tempo da escola. E é uma senhora que tem boas condições de vida, anda sempre muito arrumada, mora ali na Paissandu, que é tida na região como uma rua mais nobre. E ela fez essa gentileza de cobrar um aluguel simbólico de Dona Lena porque não precisa de dinheiro. Talvez alguém devesse dizer a ela que Dona Lena está parecendo mais magra, se é que essa história ainda não chegou à Paissandu, porque de repente esta senhora endinheirada pode ajudar de alguma maneira. Se for o caso.

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Haja punk rock

“Aperta aqui. Depois, a gente passa um álcool na mão e tá tudo certo.” Foi assim a tentativa de encerrar uma discussão que começou com futebol e, por causa da cerveja, não terminava. O álcool por dentro talvez tenha estimulado o mais calmo dos dois a sugerir o álcool por fora, isto é, nas mãos, para encerrar e pendenga de maneira que, digamos, nenhum dos dois lados levasse prejuízo para casa. Como os mais civilizados faziam, antigamente. Neste caso, o prejuízo seria o Covid. Mas logo depois de pronunciada a frase… Bom, a coisa acabou, ali, acabou mesmo. Mas com os dois fazendo papel de cara-de-bunda, sem o aperto de mãos. Mesmo quase bêbados, entenderam que o álcool-70% tiraria mais do que os “germes”, como diz a Lucy do desenho dos Peanuts. A moral da história é: álcool por dentro pode estragar tudo; por fora, já não garante muita coisa, para infelicidade dos mais civilizados.

Um troço que não acaba é discussão sobre futebol e política. Outro dia, um cara, bem intencionado, até, pelo que se sabe, do tipo que nas últimas eleições não fez o papel de classe-mediano-escroto, esse cara falava de “cidadãos de bem”. Pra você ver, hein, como se trata de uma expressão emporcalhada pelo ódio mas que pode aparecer em qualquer dos 300 lados. Aconteceu num grupo de WApp. E foi só aquele social-democrata falar em “cidadão de bem” para uma integrante da turma apontar que aquele era o nome de um jornal da Ku Klux Klan. Acabou como no episódio anterior. As expressões de constrangimento, desta vez, não apareceram. Porque se tem uma coisa boa nos grupos de WApp é a garantia de certa “proteção” aos usuários: o cara-de-bunda do iPhone interage com o cara-de-bunda do Samsung sem precisar do álcool por fora.

Estes dois primeiros parágrafos resumem tão bem o “quadro” dos últimos dias que seria razoável encerrar por aqui mesmo a crônica. A vida em dois parágrafos. Histórias curtíssimas. Já é quase Natal. Esperanças limitadíssimas, mas, com um liquidozinho higienizador, tudo pode se resolver e manter a esperança de pé. Rá! Mas o tempero extra do universo — pitadas de passado quase esquecido e de futuro bastante incerto — andam aparecendo de uma forma assim tão 70%, como que prometendo desdobramentos improváveis, que há algum combustível para seguir em frente. Ah, e teve o aniversário de lançamento do “Fresh fruit for rotting vegetables”, dos Dead Kennedys, esta semana. O álbum fez 40 anos. Não dá para terminar uma prosa sem registrar isso.

Estamos falando de um álbum que não era exatamente uma pregação em favor da revolução. Mas uma zoação que beliscava os mais sensíveis num modo non-stop. E tudo com uma velocidade, um vigor, umas letras e um deboche provocador que até então a gente não estava acostumado a ver. Não foi à toa que um monte de cinquentões postou estes dias que aquele foi um disco que mudou suas vidas. Será que estes sujeitos percebem que mesmo sem o medo da terceira grande guerra podemos eleger aquela pérola punk como uma trilha bastante adequada para os tempos atuais? O legado dos Kennedys não vai morrer nunca.

Quer coisa mais Dead Kennedys do que sair para ir à feira, num sábado, e, por se tratar de um percurso feito na Zona Sul do Rio, ver uns bons 30 policiais, pelas esquinas, espalhados em duplas ou trios, cuidando (até as 20h, pelo menos) da segurança da tradicional família carioca? E em pelo menos quatro destes pontos, o que eles estavam fazendo? Mexendo em seus celulares! O que será que estavam lendo/digitando?  De que grupos de WApp será que fazem parte? Não há mesmo álcool 70% que dê jeito. Haja punk rock.

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Três lados

Está rolando, desde o último fim de semana: uma espécie de trégua. Gente de todos os tipos, digo, de quase todos os tipos fazendo a mesma pergunta. Todo mundo, ou quase todo mundo, querendo saber do presidente que história é essa de a patroa ter recebido todo aquele cascalho do Queiroz. Alguém lembra de um episódio recente em que tenha havido uma “união” assim tão grande, ainda mais nos terrenos internéticos? Bem que algum estrategista podia aproveitar isso para começar um trabalho de pacificação/reunião que tire da prefeitura do Rio aquele cara que está lá. Mas aí talvez já fosse pedir demais. Vamos nos concentrar no momento, nos contentar com a sensação de paz, boa vontade e colaboração que anda rolando. Como se o novo normal pudesse ser assim. Pelo menos aqui nesta bolha.

Ah, é, tem a questão da bolha e esta “trégua” pode ajudar a gente a entender melhor as bolhas. Ou as moedas. Quer dizer, pode ser um passo definitivo na direção da aceitação dos três (e não dois) lados da moeda. As bolhas não são apenas a reunião de um grupo de pensadores/agentes pautados por uma única verdade. Em cada bolha, há na realidade gente de diferentes tipos enxergando a “verdade” de acordo com o que é conveniente para o próprio umbigo num determinado instante. A história dos 89 mil tostões faz a gente pensar que, neste xadrez, mais do que uma bolha contra a outra, há em cada grupo discordâncias cada vez mais ferozes que andam dificultando a manutenção das bolhas em si.

Quem aí com algum tutano não conhece uma alma que considera menos privilegiada na capacidade de elaboração e entendimento do mundo mas com quem, por uma série de motivos, por “afeto”, vá lá, é capaz de (ou ao menos tenta) manter algum diálogo? Isso não significa render-se ao caô de que não há Direita nem tampouco Esquerda. Não é isso. E “afeto” não é sinônimo de perdão incondicional. Mas isso é fugir pelo menos um pouco do maniqueísmo futebolístico.

Talvez a gente pudesse seguir o exemplo daquela rapaziada californiana descolada, que, meses atrás, combinou de levar seus cachorros para passear justamente no trajeto programado para horas depois ser preenchido por uma manifestação de extremistas de Direita. A ideia não era brigar, mas sim deixar que os cachorros fizessem número dois pelo caminho para que os reaças, pelo menos alguns deles, cagassem seus pés durante a caminhada.

Imagina se essa “moda” pega, por aqui. Vislumbre um novo momento de união nas bolhas. De um lado, pessoas que se preocupam com os direitos de cães e gatos mas resistem/meditam pra não jogar seus Jeeps em cima dos humanos que estão em situação de rua… Do outro, o grupo social-democrata, que defende ações do Estado para garantir o bem-estar da maioria e que por isso são tidos como radicais de esquerda, áses da arrogância nas discussões com referências acadêmicas… Todos unidos contra aquele vizinho mané que nem enche o saco de ninguém, mas… mas há alguma coisa de “estranha” no comportamento dele, né!?

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Óleo básico

O Zé estava falando agora mesmo da Terceira Guerra Mundial. Tem que escrever assim mesmo, com maiúsculas, porque o cara empregou um tom bem sério. O Zé É sério. Comentou sobre a anticiência, sobre coisas que não são provadas, mas, apenas comentadas. “A anticiência dos nossos dias precisa ser absurda pra os computadores serem incapazes de entendê-la”, lançou, cabeceando ele mesmo logo depois: “E os discursos, nascidos sem cálculos, criam parâmetros que sendo bonzinhos a gente pode chamar de fantasiosos. TGM é isso.” Há também quem diga que o atual patamar da taxa de desemprego em países ricos é uma comprovação de que estamos vivendo a Terceira Guerra Mundial. Um vendedor de cursos online recorreu outro dia a estes números pra oferecer seu pacote de aulas. Será que o Zé compra esse tipo de coisa? Quantos terão caído nessa?

A conversa chegou aos robôs e eles foram apontados como os grandes personagens por trás da TGM. “Eles, que vão trabalhar pra sempre nos bancos.” Isso merece virar verso, tem peso para ser um pedaço de letra de música. A gente passa por aqui, por esta vida, mas rapidinho. Mas eles, os robôs, ficarão pela eternidade. Daqui a pouco, vai ter igreja vendendo isso; robôs que permanecerão no mundo para pagarem pelos pecados do humano SORTUDO que tiver conseguido adquirir um. Imagine uma época em que automóveis não serão mais os grandes sonhos de consumo.

Pode surgir uma treta aí, quando as bonecas infláveis reivindicarem seu direito ao óleo básico, querendo igualdade de condições/status com os robôs vendidos pelos templos — em suaves e abençoadas prestações mensais. Tudo com desconto em folha, para facilitar; imaginem! Em breve, a sofisticação cyber pode emprenhar a religiosidade com um detalhe impensável há até bem pouco tempo. Dá para imaginar que teremos grande oferta de modelos de terno e gravata. Um país que adora bandidos escondidos neste figurino, claro, vai achar a coisa mais normal do mundo “investir” em robôs vestidos assim.

Estamos diante de uma retomada do Philip-K-Dickianismo, quando a gente achava que já tinha usado todas as referências para reclamar da lama que nos borra a camiseta que deveria estar limpa para quem ainda não desistiu de encarar uma Smart Fit da vida. Com hora marcada, agora, para que sejamos montanhas de músculos re-al-men-te saudáveis, isto é, livres do Covid. Já houve quem, com alguma pretensão de ser humano-e-esclarecido, questionasse estes templos da boa forma, acusando aquele ambiente de criar… robôs. Profético, né, esse pessoal da psicanálise!? Mas a provocação não chegou a ganhar eco entre a intelectualidade. Nas mãos de um Fausto Fawcett, isso talvez rendesse um álbum.

Dirão alguns que falar sobre máquinas é falar do mesmo. Mas elas evoluem tanto que acaba sendo algo novo, porque jogamos luz sobre modelos fresquinhos. Máquinas carregam um princípio Tostines. Máquinas e Marcas, como essas “coisas” estão próximas, hein, caramba! Próximas, não. Podem ser tomadas como uma só coisa. As guerras estão aí para estimular as indústrias e o consumo, já tivemos toneladas de punkrocks, pelo menos duas gerações de anarcopunks explicando isso. Na Terceira Guerra Mundial, não seria diferente. Humanos de boa vontade concordarão.

Dick é o verdadeiro pai dos replicantes
Dick é o verdadeiro pai dos replicantes

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Padaria

Saudade parece que nunca anda sozinha. A falta que a gente sente de escrever ou de desenhar se emenda fácil, fácil, na falta que faz (convi)ver (co’)uma determinada pessoa. Numa época em que rabiscar pensando em alguém tornou-se um exercício muito mais comum e possível do que rabiscar olhando de perto para alguém, é bom achar uma maneira de lidar com elas, as saudades. Sobram os textos, às vezes, e sorte de quem consegue achar que isso é muito/suficiente.

Fica um pouco chato quando, quase clicando no link da sabotagem, o cara se pega fugindo da escrita, guiado por algum circuito da cachola em que aquilo se transformou numa obrigação. Saudade, quando vem, está longe de ser uma obrigação. É isso sim uma orca te perseguindo na praia, você sabendo que não está suficientemente perto da areia para conseguir fugir. É bom respeitar/aceitar o texto, quando ele surge, porque se aquilo escapa você provavelmente nunca mais conseguirá rever/repensar naqueles mesmos “moldes”. Textos mais do que nunca moldam saudades.

Com a poesia é a mesma coisa. Ou pior. Porque com os versos a gente pode ficar mais escabreado, juntando à possibilidade de registro o medo do ridículo. Se para provocar a gente diz que “fazer poesia é fácil, difícil é confessar que fez…”, imagina pensar poesia, e não escrever nada… No mundo ideal, seria ainda mais “confortável”. Mas o desespero de perder um versinho, um versinho que seja, pode ser também uma semente de ferida com a qual ninguém aí está preparado para lidar. Se disser que está, pode ser uma declaração que não passa de cagaço. Trocando em miúdos, é isso: cagaço.

Teve esta semana a história de um cara que, para lidar com a falta de tempo e a saudade, ocupava ainda mais as brechas que se lhe apresentavam. Isso. Não tinha tempo e tratava de ter ainda menos. Desandou a fazer pães. Cismou com isso e dizia aos manos que aquela “brincadeira” era uma espécie de meditação. Mais um louco-de-pandemia. Quando comia o resultado do trampo, da queima de um tempo que nem existia direito, ou quando distribuía aquilo entre amigues, relaxava. E percebia um alívio. Mas durava só um piscar de olhos, porque a onda era preencher todas, todas as brechas. Pra muita gente, não tem dado tempo de sentir nada.

Lidar com o tempo nunca foi fácil. Com a saudade, menos ainda. Nestes dias, a tarefa parece ter assumido ares ainda mais impossibilitadores. Porque a gente pode se pegar sem conseguir decidir se ele, o tempo, está passando rápido demais ou demasiado lento. No mesmo dia, você pode ouvir alguém dizendo que “já é Agosto” e uma esquina depois que “nem parece que já se passaram quatro meses de trancamento em casa”. O mundo precisa se decidir.

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Um brinde, Bebel

Para fugir da(s possibilidades de aglomeração), três caras marcam um encontro naquele que para o grupo é o boteco-do-coração. Em Copacabana, às 14h de uma terça-feira. Serão apontados como exemplo de vagabundagem e vão se orgulhar de defender a essência da carioquice. Sem falar que se os chopes forem como antigamente, tudo/muito terá valido a pena. É no que acreditam, estes irresponsáveis. O grande lamento é que neste horário o garçom preferido deles, o Beto, ainda estará em casa. A promessa de beber apenas três copos é isso, uma promessa. Em nome de velhos sonhos, que vêm se desfazendo, cumprir o escrito, mesmo se estiver escrito no WApp, está com tudo. Cumprir o combinado é o novo black. Mesmo de mentirinha. Mesmo para os irresponsáveis.

Outro black parece ser o zine novo do MZK. Está lá no Foicebook, um aperitivo, para quem quiser ver. Se é para a gente ser engolido pela WWW e ainda por cima ser acusado de dar piti, que o azul seja outro diferente daquele do Foicebook, né? Aquele troço lá só pra de vez em quando mesmo, para colocar o link de uma crônica ou outra e, sem querer querendo, esbarrar com desenhos de caras como o Maurício Zuffo Kuhlman. E do Sica. Também tinha um livro do Rafael Sica, anunciado lá. Tiragem baixa, acho que com assinatura. O minúsculo e o gigante, conforme disseram três décadas atrás, estão se confirmando como tendência. O minúsculo, que são caras como estes artistas aí, estão dando de dez nos gigantes. Esqueceram de falar nos miseráveis, naquelas palestras dos anos 90, e continuam esquecendo agora.

Para lidar com gigantes, vale seguir as dicas sobre como ludibriar o algoritmo. Tem uma história de visitar páginas feitas por pessoas com as quais você não concorda muito. E até mesmo fazer comentários. Porque assim afrouxam-se os filtros sobre o que te é oferecido na timeline. Que coisa, hein!? Perca aí uma tarde pensando, pra ver se encontra equivalente para isso nos tempos passados. Surge no ar a pergunta sobre a necessidade de ter filtros/algoritmos para oferecerem aquilo que vamos consumir/ler/ouvir/ver. Mas uma terceira acusação de piti ninguém aguenta. Desligar o aparelhinho está cada vez mais difícil. Dirão os esquerdopatas que “feliz era o porteiro, que mergulhava no radinho de pilha mas ainda tinha algum tempo para brigar sobre futebol”.

Naquele lugar em que se encontram gigantes, anões, blacks, whites, enfim, quem estiver de máscara e não se importar com xingamento… bem ali, estão os sonhos. Recorrentes, às vezes, e nestes dias de Blade Runner se materializando em cada esquina. Como as bonecas com aparência quase humana para quem se sente “só”. O Zé Sem Nome falava outro dia sobre robôs e testes feitos com robôs, sobre como isso desperta a compaixão de certos humanos. Pois é, Zé, a humanidade, está mais do que se afeiçoando às máquinas. Investindo neste tipo de “aparência” para si mesmo, facilita muito as coisas para a indústria. Eram proféticos os versos d’Os Replicantes, em “Astronauta”: “…Agora quando a lua cresce no céu/ Aperto contra o peito o coração de Bebel/ E abençoo toda a indústria eletrônica/ Por ter criado a minha nova esposa fiel/ E molho a garganta tentando me livrar/ Das últimas partículas de poeira lunar/ Bebel então percebe e começa a chorar/ E eu tenho medo que ela vá enferrujar…”

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Sem crachá?

O pessoal da Astrologia está dizendo que o Sol… Ah, passou rápido demais. Não deu pra pegar. Mas está fazendo sol, hoje, e esta minúscula no início, na sequência, não é “desrespeito”; é só pra aproveitar com mais intimidade. O pessoal da Astrologia também estava falando de Lilith. Mas a grande preocupação do dia é com a fiscalização. Os homens com crachás vão voltar e é bom que esteja tudo em ordem. Depois da ordem, vai ser o caso de torcer: para os caras terem alcançado um bronzeado legal e estarem bem-humorados. “Se o Sol está contente, também vale a pena a gente ficar”, dizem na internet os estudiosos dos astros. Fiscais pálidos, a gente ainda encara. Mas se estiverem azedos, aí…

Além da multiplicação de lives no Instagram e no Youtube, a rede mundial de computadores assistiu a uma revoada de aconselhamentos e cursos. De todos os tipos. Ontem, este escriba foi alvo de propagandas de uma série educativa sobre Magia. Ninguém quer problemas com fiscais e nem tampouco com magos. Vai ficar endinheirado, o sujeito que resolver montar um pacote de programas que ensine como lidar com representantes do Poder Público. Será que, na primeira aula, aquela gratuita, já seria o caso de pintar a dica de oferecer água ou cafezinho para começar a conversar depois disso? Que toque você aí dá para o empreendedor?

Talking Heads, a banda, tinha este nome numa alusão às cabeças que ficavam falando na TV. Hoje em dia, quando a TV parece ter ficado no passado, cabeças continuam falando e brigando por fama. E por dinheiro, claro, através de cursos (atualmente). Se for só fama, é bom o pessoal rever os sonhos porque parece época de se contentar com 15 segundos. Em época de pandemia, o noticiário faz a gente não saber se ainda tem 15 minutos de vida… E se vier um trocadinho junto, ótimo, claro. Imagina quando começar a fiscalização na WWW. Como será chamar para um cafezinho, via computador?

Não se tem mais notícia de concurso público. Mas, num passado não muito distante, todo mundo tinha um conhecido que estudava para ser aprovado em um. Talvez o poder do fiscal faça parte do emaranhado-inconsciente-coletivo dos nossos dias. Porque quando você se depara com um sujeito marrento, por exemplo, conhecedor de um determinado assunto, é como se ele fosse fiscal daquilo.

Imagina Fiscal de Hendrix, por exemplo. Existe. Teve aquele caso do amigo que, para testar o outro, desafiou: “Me diz o nome de uma música do Hendrix. Só uma!” Era uma daquelas antigas conversas sobre música, coisa comum de acontecer em botequim. E a prosa empacou, ali. Por conta da bebedeira, ou por desconhecimento mesmo, não houve resposta do desafiado e o desafiante, digo, o Fiscal de Hendrix, voltou para casa com a sensação de ter humilhado um adversário, alguém que havia vindo ao mundo para lamber-lhe as botas, glauco-mattosomente falando.

Era comum, antes da pandemia, a gente ouvir também a respeito do Fiscal da Natureza. Falar isso sobre alguém era como um xingamento. De leve, mas era. Melhor evitar a piada, porque ninguém quer ver fiscal ficando nervosinho.

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Defcon o quê?

Tava com a corda toda, hoje de manhã, a vizinha. Logo cedo, berrou contra o marido, é, devia ser o marido, berrou que ele não tivera coragem de fazer o caderninho de realizações, então, que não viesse agora em plena pandemia reclamar com ela sobre os desejos não alcançados. Será que tinha sexo, na lista não feita? Minutos de silêncio. Minutos mesmo, longos, longos períodos de silêncio; era uma berração feroz mas pausada. E o infeliz, e vale dizer infeliz porque se podia deduzir que os desejos não vinham sendo realizados, e o infeliz responde: “É que eu sabia que se fizesse você ia dar um jeito de ir lá pra ler o que tava escrito. E caderninho de realizações, sua louca, tem que ser uma coisa feita em segredo. E segredo é uma coisa que não se divide com ninguém.” Agora, boa parte da vizinhança sabia da história. Mas não era assim tão terrível porque estávamos diante de um segredo que não existia. O caderninho dele não existia.

Outra coisa que provavelmente toda a vizinhança sabia é que o mané não devia ter usado a palavra “louca”. O ritmo da pendenga mudou, ali, bem naquele instante. Os minutos de silêncio, o xadrez barulhento mas que até então poderia ser considerado “elegante” deu lugar a uma pelada, um totó cheio de desespero, recheado de roletadas. Foram apenas milésimos de segundos, se desse pra contar, sim, daria pra dizer que, milésimos de segundos após disparada a acusação, a quebradeira começou. Os que moramos em volta ficamos algum tempo, também menos que minutos, sem saber se o que rolava era uma destruição de coisas da casa ou do marido em si.

Já se vão umas duas horas de silêncio. E continuávamos sem saber, nós que tínhamos acordado cedo na segunda-feira ainda pandêmica, pra fazer coisa nenhuma além de pensar. Talvez tenham começado juntos o caderninho, sem segredos. E dizer que o lance é sem segredos passava até certo ponto a incluir moradores de umas boas três dúzias de apartamentos. De dois e três quartos, com dependências. Esperamos todos que isso pese, se for pesar, claro, que pese positivamente na realização dos desejos deles lá. E como neste momento de isolamento estamos nos tornando pessoas diferentes, diferentes no mínimo no sentido de mais gordos e gordas, esperamos também que alguns de nós tomem aquela treta como inspiração para começamos nossos próprios caderninhos de realizações.

Mesmo sem saber bem o que é uma coisa, a gente pode começar. O velho ensinamento, e dizemos velho porque é de antes da pandemia, o velho ensinamento de que basta um passo e você já está noutro lugar serve bem pra isso. Serve pra muita coisa. Mas estamos falando de caderninhos de realizações, então, por favor, concentre-se. E faça a sua lista. Pense um pouco antes se vai manter a coisa em segredo. E se é segredo Defcon 5 ou 3 ou 2. Porque periga ter uma hora em que alguém pode descobrir e os seus desejos se pá vão se espalhar pela vizinhança. Por umas boas três dúzias de apartamentos, pelo menos, onde moram pessoas que você nem conhece. Mas que podem saber/desconfiar quem é você.

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Bart, Lisa e você aí

Tem um episódio (bem antigo) de “Os Simpsons” que é maravilhoso. A Lisa pergunta mais ou menos assim ao Bart: “Se uma árvore cai, no meio da floresta… isso fez barulho?” O pequeno capeta responde e ela ensina que, tipo, aquilo é uma questão filosófica, é uma frase/pergunta que permeia nossas vidas há séculos e “não tem uma resposta definitiva”. Para o pequeno garoto amarelo, parece ter resposta, sim. Talvez ele viva uma vida mais confortável que a da irmã. Que não é exatamente um anjo, mas está do lado oposto ao de Bart. O lado de quem “sofre”, talvez.

Seres humanos têm a sorte de poder contar com frases, filmes, livros que são capazes de tornar melhores as suas vidas. Não, não precisa ser livro daquele tipo lindamente (des)organizado, como os que aparecem atrás de muita gente que faz live. Ah, sim, hoje em dia, há também as lives no Instagram; mas isso é outra parada. Boas histórias e bons roteiros deixam a gente com um sorriso de satisfação e, se não chegam a ser um ensinamento, são vá lá um quase-ensinamento. O que já é muita coisa. Nesse sentido, “Los Angeles – Cidade proibida” (“L.A. confidential”, de 1997) merece ser citado. Uma frase muda o filme, explica ligações, provoca um “estalo” no mocinho. É, tem uma espécie de herói, mas dá pra perdoar isso em nome de um bom insight/script.

Na sequência, você pode ficar se perguntando que frases está deixando de entender, quais crimes foi incapaz de perceber, quantos lobos continuam ali do lado disfarçados. Não porque você é louco. Mas porque lobos, no sentido “mau cidadão, sujeito escroto” da palavra, existem. Estão nas reuniões de condomínio, nos agrupamentos de WhatsApp. Ah, nos grupos de WhatsApp, então, nem se fala. E é muito difícil enxotá-los.

Passamos horas e horas, mensagens e mensagens, esperando que se contradigam. Percebemos a astúcia e constatamos péssimas intenções em falas aparentemente cheias de boa vontade. Temos certeza de que planos horríveis estão em andamento e levarão todo o grupo a uma grande armadilha. O tempo passa, o candidato a herói continua sofrendo e aquela frase cinematográfica não vem. Não vem nem em hora errada, quanto mais no momento certo.

Aí, o que pode ser ainda pior, surge a desconfiança de que mesmo se surgir a frase não há plateia suficiente acompanhando com atenção a história para entender a grande revelação. Surgem dúvidas sobre o combustível gasto só para manter atenção nos enredos que nos cercam, na tentativa de sobreviver aos lobos, às árvores que caem na floresta, ao preço do milk shake ou da cerveja (que não para de subir). Nessa hora, muita gente pode sentir inveja do Bart Simpson. E com certa razão.

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Cliques

Passava pelo Dorminhoco, tirava uma foto. Ele “pedia”. Às vezes, era um movimento que chamava a atenção de quem estava perto. Mas nunca deve ter parecido invasão de privacidade. Jamais houve uma reprimenda e, com o tempo, o “fotógrafo” foi sentindo-se mais à vontade para investir nos registros. Tinha se acostumado a chamar daquele jeito um senhor que parecia ganhar a vida como guardador de carros, ali perto daquela padaria na Ministro Lira. Quase sempre calçava chinelos de couro, ele. Havaianas, nunca. Durante muito tempo, exibiu uma certa dignidade: roupas limpas, barba sempre bem feita. Era comum vê-lo mais dormindo do que acordado, mas invariavelmente com sacolas de mercado penduradas num dos braços. Vazias, sempre.

Tinha se tornado um exercício regular, aquela história de chegar perto e registrar o sono daquela pessoa. Era um sono despreocupado, o dele. Ou parecia ser. Mesmo enquanto dormia, dava a impressão de estar tomando conta ali do pedaço. Fechava os olhos, mas demonstrava autoridade. Falando assim, é difícil alguém acreditar. Assim como era um desafio entender de que maneira um cochilo podia ser aproveitado nas posturas que aquele senhor assumia/exibia. Mas era prazerosamente esparramado nas cadeiras que ele comandava as coisas. Depois, a cadeira foi substituída por um banco. Pra que encosto, né?

As capturas com o celular variavam na medida em que o Dorminhoco se mostrava em mergulhos diferentes. Mergulhos de/no sono. Houve uma vez em que o lugar escolhido por ele para encostar-se foi a porta de acesso a uma escada que levava ao segundo andar do prédio colado à banca de jornal. Funcionavam lá em cima um restaurante japonês e uma sinuca. O japonês era conhecido por ser o mais barato da região. A sinuca, pelas mesas grandes lindonas e por ter apenas cerveja e nenhum petisco disponível. Mas, para o fotógrafo, vamos chamar o cara de fotógrafo mesmo, para ele, bem, o importante era aqueles estabelecimentos estarem no caminho/quadrado do Dorminhoco. Tinha mesmo desenvolvido alguma relação com aquele personagem.

Planejava abordá-lo. Achava ter ouvido alguém na padaria chamá-lo de “Sapão”. Achou pouco respeitoso, o apelido. Não gostou. Preferiu ficar com “Dorminhoco” mesmo. Ainda mais que não tinha revelado a alcunha a ninguém. Chamava-o daquele jeito mas só fazia isso quando falava consigo mesmo. “Então, tudo bem. E ele pede…”

Certa vez, com uma metideza de artista, o homem-do-smartphone ficou na dúvida se deveria ou não aproximar-se bem do “alvo”. E resolveu ir. Teve a impressão de que sua chegada havia sido notada. Os olhos daquele homem pareceram se abrir um tantinho. Nunca soube se aquela velocíssima encarada aconteceu ou não mas, depois daquela noite, ficou pensando: “Caramba, ele tá ligado no que eu tô fazendo…” Naquela ocasião, o Dorminhoco estava meio torto sobre um caixote que fazia a gente se perguntar como é que alguém conseguia se equilibrar ali para dormir. Parecia não haver espaço para alguém sentar-se, quanto mais para dormir.

O tempo passa, dessa maneira que um dia todo mundo percebe que é mesmo assim como parece/anunciam. Superveloz. Sabe? Numa tarde, estava lá um jovem, com traços muito parecidos com os do Dorminhoco. Será que ia ocupar o lugar do pai? Será que era o filho ou um dos filhos? Dias depois, aparece de novo o Dorminhoco, sem uma perna, e com roupas já não tão limpas. Os diálogos que nunca existiram, sempre foram necessários, mas nunca existiram, pareceram então ser impossíveis. Houve uma breve troca de olhares. Havia dor, sim. Mas existia também calma. Nenhuma foto. Assim como não havia mais perna, parecia não haver mais sono.

Depois que as imagens foram organizadas no que se podia chamar até de uma série, o fotógrafo pensou em imprimir tudo. Mais: talvez aquilo pudesse render algum dinheiro para o personagem. O Dorminhoco ia gostar de saber. Mas de repente tudo mudou, no cenário. A banca de jornal foi substituída por uma maior. Dessas com vidro e aparelho de ar-condicionado. O japonês e a sinuca fecharam as portas. O que se vê lá hoje são placas com números de telefone, para quem estiver interessado nos imóveis. O Dorminhoco tinha sumido, assim como sua perna fizera antes. O rapaz sentiu um certo alívio, por nunca ter mostrado as imagens a ninguém. Desejou que seu amigo estivesse numa cama confortável. Teve medo de perder o sono. Sentiu-se com sorte por isso não ter acontecido.