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Crônica Literatice Paulo-Coelhismo

Cliques

Passava pelo Dorminhoco, tirava uma foto. Ele “pedia”. Às vezes, era um movimento que chamava a atenção de quem estava perto. Mas nunca deve ter parecido invasão de privacidade. Jamais houve uma reprimenda e, com o tempo, o “fotógrafo” foi sentindo-se mais à vontade para investir nos registros. Tinha se acostumado a chamar daquele jeito um senhor que parecia ganhar a vida como guardador de carros, ali perto daquela padaria na Ministro Lira. Quase sempre calçava chinelos de couro, ele. Havaianas, nunca. Durante muito tempo, exibiu uma certa dignidade: roupas limpas, barba sempre bem feita. Era comum vê-lo mais dormindo do que acordado, mas invariavelmente com sacolas de mercado penduradas num dos braços. Vazias, sempre.

Tinha se tornado um exercício regular, aquela história de chegar perto e registrar o sono daquela pessoa. Era um sono despreocupado, o dele. Ou parecia ser. Mesmo enquanto dormia, dava a impressão de estar tomando conta ali do pedaço. Fechava os olhos, mas demonstrava autoridade. Falando assim, é difícil alguém acreditar. Assim como era um desafio entender de que maneira um cochilo podia ser aproveitado nas posturas que aquele senhor assumia/exibia. Mas era prazerosamente esparramado nas cadeiras que ele comandava as coisas. Depois, a cadeira foi substituída por um banco. Pra que encosto, né?

As capturas com o celular variavam na medida em que o Dorminhoco se mostrava em mergulhos diferentes. Mergulhos de/no sono. Houve uma vez em que o lugar escolhido por ele para encostar-se foi a porta de acesso a uma escada que levava ao segundo andar do prédio colado à banca de jornal. Funcionavam lá em cima um restaurante japonês e uma sinuca. O japonês era conhecido por ser o mais barato da região. A sinuca, pelas mesas grandes lindonas e por ter apenas cerveja e nenhum petisco disponível. Mas, para o fotógrafo, vamos chamar o cara de fotógrafo mesmo, para ele, bem, o importante era aqueles estabelecimentos estarem no caminho/quadrado do Dorminhoco. Tinha mesmo desenvolvido alguma relação com aquele personagem.

Planejava abordá-lo. Achava ter ouvido alguém na padaria chamá-lo de “Sapão”. Achou pouco respeitoso, o apelido. Não gostou. Preferiu ficar com “Dorminhoco” mesmo. Ainda mais que não tinha revelado a alcunha a ninguém. Chamava-o daquele jeito mas só fazia isso quando falava consigo mesmo. “Então, tudo bem. E ele pede…”

Certa vez, com uma metideza de artista, o homem-do-smartphone ficou na dúvida se deveria ou não aproximar-se bem do “alvo”. E resolveu ir. Teve a impressão de que sua chegada havia sido notada. Os olhos daquele homem pareceram se abrir um tantinho. Nunca soube se aquela velocíssima encarada aconteceu ou não mas, depois daquela noite, ficou pensando: “Caramba, ele tá ligado no que eu tô fazendo…” Naquela ocasião, o Dorminhoco estava meio torto sobre um caixote que fazia a gente se perguntar como é que alguém conseguia se equilibrar ali para dormir. Parecia não haver espaço para alguém sentar-se, quanto mais para dormir.

O tempo passa, dessa maneira que um dia todo mundo percebe que é mesmo assim como parece/anunciam. Superveloz. Sabe? Numa tarde, estava lá um jovem, com traços muito parecidos com os do Dorminhoco. Será que ia ocupar o lugar do pai? Será que era o filho ou um dos filhos? Dias depois, aparece de novo o Dorminhoco, sem uma perna, e com roupas já não tão limpas. Os diálogos que nunca existiram, sempre foram necessários, mas nunca existiram, pareceram então ser impossíveis. Houve uma breve troca de olhares. Havia dor, sim. Mas existia também calma. Nenhuma foto. Assim como não havia mais perna, parecia não haver mais sono.

Depois que as imagens foram organizadas no que se podia chamar até de uma série, o fotógrafo pensou em imprimir tudo. Mais: talvez aquilo pudesse render algum dinheiro para o personagem. O Dorminhoco ia gostar de saber. Mas de repente tudo mudou, no cenário. A banca de jornal foi substituída por uma maior. Dessas com vidro e aparelho de ar-condicionado. O japonês e a sinuca fecharam as portas. O que se vê lá hoje são placas com números de telefone, para quem estiver interessado nos imóveis. O Dorminhoco tinha sumido, assim como sua perna fizera antes. O rapaz sentiu um certo alívio, por nunca ter mostrado as imagens a ninguém. Desejou que seu amigo estivesse numa cama confortável. Teve medo de perder o sono. Sentiu-se com sorte por isso não ter acontecido.

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