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Magnéticas

Tinha 13 anos e quando percebeu que acreditava que seguir as pessoas certas pod(er)ia “dar dinheiro, um dia”, no Grande Jogo. Estava com a razão. Aos 31, tinha um carro que era o mais caro da vizinhança. E era uma vizinhança fresca, vale dizer, não a região miserável onde havia passado a infância e a adolescência de cara para o computador, aquele único grande luxo a que tivera certo acesso. Estava satisfeito por conseguir seguir as pessoas certas. Sentia aquilo como um dom. Dom dom mesmo, não dom de domingo.

Começaram a inventar um monte de coisa. Cada coisa… Precisavam criar, inventar. Era o jeito. Jeito de quê? De fazer o cascalho circular. Assim, rolou de os engravatados — porque estávamos numa nação de pessoas apaixonadas por gravatas e engravatados — criarem/flexibilizarem regras que transformariam milhões de seguidores em milhões de pingadores-contribuintes. Começar a seguir alguém na hora certa podia fazer de um adolescente de Rox Mix um playba com bala n’agulha.

Havia quem acreditasse que aquilo era uma nova onda de Young Urban Professionals, que outrora haviam sido enquadrados como Yuppies. Ums cusparada para o alto. O pombo que nasceu para acabar com a alegria do bancário na hora do almoço. Tem “Yupicide” escrito num encarte qualquer de uma banda californiana de punk rock. E aí o moleque percebeu que tinha um “talento” para ir atrás de, sei lá, rappers que um dia se transformariam em sucessos-fenômenos de massa. E modelos. E jogadores de futebol. Imagina ser o “dono” de cadeiras na primeira fila de estádios virtuais. Estava nos filmes de antigamente: lugares em estádios são bens preciosos.

Chegaram ao cúmulo de vender posições. Quanto cascalho rolando. Vender posições? É, vender posições. Se você é o centésimo mané, digo, investidor-cidadão a clicar naquele botão, pode ser que, dali a algum tempo, quando outras 37 milhões de pessoas tiverem feito o mesmo, aquela posição no ranking valha algum cascalho. Porque vira ranking. É como pagar mais para ter um bom lugar no estádio em que aquela celebridade vai aparecer. Quase isso mesmo.

Andava pensando em alianças. Carregava na cabeça a frase que havia lido, fazendo alusão às posses de um jogador de futebol. “O cara carrega um apartamento nos dedos.” “Que dinheirinho bom, hein, hein?” Joias. Queria ter joias. Tinha seguidores. Seguia e era seguido. Na “humildade”. Estava no caminho certo. Joinhas.

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A velha história

Já ouviu dizer que é preciso tomar um certo cuidado com o que se quer? Isso mesmo. Porque é possível que você consiga. Isso é sério.

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Bronzeado, o sonho

Aquela coisa do Verão. Quem vai ver? Todos verão? Mais do que aquilo que se mostra, faz diferença a “cor” em que as pessoas em volta acreditam, o brilho que veem/percebem. Tanto quanto umas boas horas sob o sol, vale escolher a maneira “certa” de se posicionar. Mais do que investir num tomara-que-caia, escolher a blusa certa com alcinhas bem finas. Assim no diminutivo mesmo. Sempre lembrando de rezar por uma estação que não seja de muquiranas enchendo a paciência de quem quer descarregar pisando sem chinelos na areia. Ah, a areia… nunca fica bronzeada, resiste aos raios. Raios, raios, raios triplos, nas imortais palavras do Dick Vigarista; porque vilão bom é o que perde sempre.

Quando não há necessidade de esclarecer nada, quando o desfecho está ali plantado e basta esperar o negócio crescer. Paciência, paciência. Mesmo se chover. A julgar pelos sorrisos de quem passa, a construção de uma consciência de calor. Quando a gente pode acreditar na Justiça e sabe que não precisa pressa. Pode haver precisão na pressa? E, ao mirar numa necessidade, o que se acerta são todas as arestas que fazem o perrengue ser perrengue e de repente — Bum! — fica tudo certo, tudo bem, tudo certo, tudo bem, tudo certo. O Verão pode não ser certo, mas o bronzeamento é.

Aquele cheiro de manifestação, aquela entrega livre de conflitos. Uma determinação descontraída e sorridente. Dois paus e a cobra livre, sugerindo ali a criação duma nova perspectiva do que são os direitos dos animais. Animais de esquerda. Animais de centro. Animais de direita. Pássaros com bicos que destroem gaiolas. Ratos e gatos trocando ideias, certos de que a cachorrada é indispensável e estará no time, em muito pouco tempo. Quem nunca sentiu vontade de latir, de uivar, diante de um fogaréu?

A pessoa e o próprio umbigo se entendendo como se fossem uma pessoa e o próprio umbigo. Aproveitando as doações que vieram com o melhor Axé, sem medo de dividir aquele segredo com quem quer que seja — porque não precisa mais ser segredo. Dinheiro pra pagar chope pra quem está sem. Todas as paçocas que a criança está vendendo, porque aquela é a última rodada dela neste tipo de empreitada, não a última da noite, mas a última-última-mesmo. Que pele, que pele, gente.

A música lá longe, a noite toda. A espuma na taça. O desejo vestido de monge. Uma série inteira precedendo o desmonte, alguém que não se esconde. O medo de parar. O horror diante do empate. A vitória que é pra ser geral. A gentileza ímpar, sorridente mas despretensiosa, convidando para mais um gole. O fogo. A faca. O porre. Bronzeada, a pele fica mais sensível. E nobre.

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@monteiro4852 #31

Primeira Pata-Maravilha do ano. Ou Wonder-Duck, if you wish. Ano Novo nessa joça. Esperando pela vacina, pelo Amor, por um novo pastel de siri. Com paciência. Esperando, esperando, esperando.

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Esperança

Dedo Mindinho, Seu Vizinho, Maior De Todos, Fura-Bolos, Mata-Piolhos. Continue cantando: “Cadê o docinho que tava aqui?” Agora, sério: se forem procurar um “culpado” diferente, em vez de deixar o Gato ir atrás do Rato, como sempre foi feito… a coisa pode ficar ruim para o Seu Vizinho! Pode apostar. Porque é um dedo aparentemente sem moral nenhuma. SV, coitado, parece que dá no máximo a sorte de ser confundido com SUV, que é aquele carro do playba que tem muito para gastar em seguro e gasolina. A ladainha pode piorar se estivermos falando do pessoal do andar de baixo: neste caso, os dedos do pé.

Será mesmo? Abaixo o coitadismo (esta palavra tão da moda). Dá para dizer que, assim como o classe-mediano motorizado vive de ilusões, o Seu Vizinho Do Pé circula bem menos coberto por esparadrapos do que o Mindinho. A comprovação estava no testemunho de um mané que, outro dia, num boteco, de Havaianas, exibia o menorzinho todo coberto por uma fôrma/armadura branca. “Foi o Magnetismo: o Mindinho sempre atrai a quina do armário ou a porta. Acontece demais”, repetia, com cara de quem ao caminhar experimentava ainda alguma dor.

“Fura Bolo” já foi até nome de picolé, lembra? Da (boa e velha) Gelato. Mas o SV, discreto, consegue significativo destaque, quase holofotes, nos encontros do pessoal grati-luz-descolado. Quando a terapeuta invariavelmente começa com aquela história de “levar ‘vida’ a partes do corpo que estão esquecidas”, ele, o Seu Vizinho Do Pé, leva tanta massagem e estímulos/carinhos quanto um irmão mais famoso (o Mindinho) e muito mais do que outro mano superpop (o Dedão). Sim, é com massagem e mimo que (quase-)místicos dão vida a partes do corpo que sofrem por conta do esquecimento. O cérebro pode mesmo ser um vacilão, né? A família de dedos comprova.

Pode haver quem aponte que o Seu Vizinho Do Pé na verdade dá mole por ser um dedo que mergulhou na timidez. Aquela história de o Sol brilhar para todos, manja? Vai saber… Outro ponto é que, se, por um lado, ele, o  SVDP, não tem tamanho de caçula, lugar/posto que pode garantir muitos privilégios vindos dos pais, também não fica sob o jugo de todos os outros irmãos. A gente sabe que irmão mais velho pode ser o cão, né? Esses dias mesmo alguém tava falando que numa família do Méier os três mais velhos obrigavam a mais jovenzinha a comer minhoca. Isso antes de a TV exibir “Jackass”.

Tudo bem que na hora de um footworship a chupação/adoração fique mais para outrem. Se há um dedo poeta, um “sofredor” capaz de emergir do sofrimento e revelar-se um habilidoso intelectual ganhador de prêmios, é sem dúvida o SV. Do pé ou da mão. Porque fora das historinhas já convencionais e infantis, como a famosa musiquinha cantada no início desta prosa, sobra a disposição/paciência, verdadeiramente uma necessidade de observar o mundo e com isso construir uma fábula diferente. (Que alguém entenda.)

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Meio miau

Existe o “caminho do meio”. E existe o “meio de uma crônica”. Você sente/percebe que está no meio de uma crônica quando, no carro em que te ofereceram uma bela carona, o motorista teve o cuidado de borrifar com álcool os pontos das portas em que os passageiros põem com frequência as mãos. Mais ainda: quando ele, o condutor, está todo esticadinho — o banco com o encosto num ângulo que deve ser de 90 graus e… O que chama mais a atenção: sai das caixas de som uma música que te leva para outra época. Uma melodia que sugere um filme de humor-verdade e, também, te convida a congelar, ali mesmo, antes da próxima curva, essa vidinha besta e veloz em que a gente uma vez por ano apaga velinhas.

A iluminação não passa necessariamente por saber pra quem vai o primeiro pedaço de bolo. Porque nem sempre tem guloseima e os esfomeados que desde a adolescência conhecemos precisam(os) engolir é esta (sensação de) “falta”. E que ninguém reclame, porque tampouco pros festivos cachaceiros que mais recentemente se agregaram deverá haver qualquer mimo. Na reta final de uma curta e cinematográfica viagem de carro, antes de descer do veículo fica o lamento pelo afastamento da tão sonhada companhia.

Lá vai ela. Após, restará a cada-vez-mais-velha-conhecida solitude, e é como se um segundo parágrafo se fechasse. Mas estamos falando apenas de um segundo parágrafo, não de um segundo capítulo. E é a hora de você rir de novo por ter que em meio à pandemia cortar um dobrado para explicar aos amigos que não, não vai ter comemoração porque aumenta a preguiça de fazer isso, numa época como esta.

Alguns passos depois, a confirmação. Pode ser um dia de muitas surpresas, este. E isso vai construir não apenas uma crônica mas, quem sabe, revelará palpites para apostar numa loteria, ensinamentos que te afastarão definitivamente do clube dos velhos babões e insensíveis que acham que podem tudo porque… porque podem pagar, porque vêm de circuitos em que sempre, desde sempre, tudo foi permitido. Desde é claro que você tenha aquele sangue ali. Quando uma crônica se mostra já em andamento, ela está te dando a chance de no mínimo melhorar as coisas. Agradeça por isso.

No aprendizado, nem sempre há conforto. Há dúvida, às vezes. Há testes que talvez ainda precisem ser feitos. E há novas dúvidas, escoradas por velhos medos e lembranças doces como a que vai ficar de uma carona acidental e acertadamente aceita. Você percebe que está no meio de uma crônica quando sente que, dali a dez anos, vai lembrar daquele momento e estará tomando por sentimentos doces e muito familiares. Inexplicáveis, doces e familiares. Você sente o miolo da história ao tentar fazer uma lista de desejos que inclui uma chance de gravar aquilo, de perpetuar alguma coisa mesmo que não saiba bem do que está falando.

“Você está triste?” “Como assim, precisa escrever?” Dependendo de onde vem a pergunta, dependendo do flow para a elaboração de boas respostas… Bem, a coisa pode sempre empacar, né? Na moral: é pandemia, pô! Tudo que você precisa é de uma taça fininha cheia de vinho e uma caneta com tinta bem preta para escrever “saudade”. Aí, é seguir em frente e esperar por uma nova folha. Que poderá não estar em branco.

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Cabe a você, playboy

Agora, foi o Noam Chomsky, do alto dos seus mais de 90 anos, ali numa daquelas redes sociais falando das transformações, pequenas que sejam, que a gente pode fazer no cotidiano. Será que é aquela história de cotidianizar a revolução? Se o Chomsky está falando, é o caso de parar e ouvir pelo menos um pouco. É engraçado ver propostas/sugestões, digamos, mais radicalmente transformadoras, partindo de uma galera mais cascuda, quer dizer, experiente. A juventude parece que só pensa mesmo no oba-oba. “Pensa” é ótimo, né? Não que os mais cascudos de um modo geral tenham muita moral para dizer que são pensadores mais ativos e preparados.

Mas, sim, aqui nesta bolha há a impressão de que atualmente podemos esbarrar com mais gente “madura” defendendo essa história de que geral no fim das contas vai dar uma “boa repensada”. Quando será que chega o “fim das contas”? Repensada, para os mais pessimistas, pode não passar de uma nova fórmula para anúncios de margarina. No fim das contas, seja em que bolha for e seja quando for, é garantia de veia entupida, qualidade de vida piorando mas… com aquele sorriso maneiro de quem consegue consumir o que DEVE ser consumido. É a pandemia das dívidas, esta.

A margarina é uma das coisas que estão custando mais caro, né? Para resolver isso, tem o homem que ensina no YouTube como fazer para ficar rico. Ele esses dias deu uma esculachada nos bancos, no esquema de juros, e seguindo sua doutrina de “como conquistar a liberdade”, bateu nas mesmas teclas de sempre. Não falou da margarina, mas isso deve ser com o pessoal que fala de saúde. Espirrou? Tava com a máscara, vacilão? Isso, a crônica hoje é quase um rap.

Ainda não dá para dizer que se trata de um momento de revisão dos padrões, mas, estes dias, num grupo de WApp, um sujeito beirando meio século de vida consultou seus “amigos” sobre um “empreendimento”. Está querendo abrir uma banca de jornal, no Rio. O silêncio imperou. Houve quem sugerisse um tiro na cabeça. Isso, sim, vai ser mais fácil, agora, com o fim das taxas para quem quer importar revólveres e pistolas. Quem quer ser rico precisa mesmo de muitas e boas informações. E talvez precise saber a diferença entre um e outro tipo de arma, nem que seja para fazer a coisa “certa” depois de um empreendimento errado.

Basta um parágrafo falando em armas para que a coisa toda pareça contaminada por um cheiro ruim. Como nessa história tem margarina, que também não é a parada mais legal do mundo, tá difícil encontrar uma boa saída para terminar a falação. Como o rap sugere muitos lances sem explicar, cabe a você, playboy, decidir o que fazer com a margarina e o trabuco. Lembrando que no dos outros é refresco e aí não vale.

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Em nome de Lynch e Maradona: amém

Se tem uma grande sacanagem que o PPP fez foi emporcalhar o “conceito” de oração. PPP, você sabe, é o Projeto Pentecostal de Poder. Letras bastante razoáveis, estas, né: não sustentam nenhum palavrão e deixam bem claro o que há por trás (e pela frente, e de ladinho) daquela Igreja. Igreja contra Igreja é uma equação que soa beeem velha. Mas por que falar de oração, então? Por causa do Maradona, que nos deixou. E por conta dos vídeos do David Lynch.

Teve um Argentino, o Emi, que frequenta um bar ali de Laranjeiras, que chorou e tudo. Não foi zoado por nenhum de seus compadres de copo. Todos foram solidários. Ali tinha/era, claro, entre muitas coisas, uma celebração da macheza, defensores do pinto como centro do mundo sendo bróders uns dos outros. A despeito dos vômitos que isso possa ter causado nas feministas da área, foi fofo, foi o reconhecimento, a celebração da “obra” de um cara que fez bonito na sua passagem por aqui. Vacilou, claro. Mas mandou bem e tirou uma onda que muito verde-e-amarelo-aí-do-futebol jamais conseguirá. Maradona tinha tutano. Talvez isso deixe o adeus mais doloroso. O tutano do mundo parece que está mesmo super-acabando.

Oração, segundo o google-cionário é um “ato religioso que visa ativar uma ligação, uma conversa, um pedido, um agradecimento”. A explicação fala também num “ser transcendente e divino”, mas é possível “entender” o bagulho como um todo sem chegar até aí. Gritar “Gol!” é uma oração, num certo sentido, porque é uma celebração extremamente positiva, um momento de superação de todos os perrengues. Ou pelo menos de muitos perrengues.

Há a oração de todo mundo, talvez corriqueira, mas mesmo assim “necessária”. E há a de cada um. Pelo menos, pode haver. Ah, pode. No mesmo boteco que o Emi frequenta, alguém sempre deixa, no balcão, uns brinquedinhos feitos de papel. Aquilo que antigamente chamavam de Origami. Um destes brinquedinhos invariavelmente gera comentários: o Tsuru. Aquele pássaro, tão ligados? Há quem acredite que mil, isso mesmo, fazer mil Tsurus meio que equivale a uma oração.

Outra coisa que parece ser um equivalente do exercício de “ligação” são os vídeos diários do David Lynch. Ele quase que invariavelmente fala sobre o tempo em Los Angeles, emendando isso com um comentário sobre a cultura americana. Tipo uma crônica-oração. Você até pode achar importante saber há quanto tempo  uma pessoa faz orações. Pode surgir a pergunta sobre quantos vídeos Mr. Lynch já fez e se é por isso, por talvez ter passado dos mil, que a brincadeira pode ser considerada uma oração. Não é bem por isso. É por ser uma rotina, diária, que estabelece uma ligação entre ele e seus “seguidores”. Também neste caso, é possível ficar com uma explicação/retórica que não chegue até a discussão do “ser transcendente e divino”.

Estes vídeos são os Tsurus do senhor David Lynch. Hoje, o escriba que vos digita teve a chance de presentear o tiozinho cineasta com o milésito polegar-pra-cima do dia. Se ele orou por isso, conseguiu. Há orações diferentes. Há rezas diferentes. Há até quem fale em “rezo”, em vez de “reza”, o que chega a ser surpreendente nesta época de “feminização forçada” da Língua. Mas isso é outra ladainha. Ninguém (aqui) disse/diz que você deve restringir-se a uma única oração. Lynch, por exemplo, faz também regularmente um (outro modelo de) vídeo, no qual sorteia números. Mas isso aí também é outra ladainha.

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Ardência

“Duas por cinco, ainda?” O classe-mediano compra flores, na feira; mas não dispensa a pechincha. Já não se sente culpado por negociar trocados e conseguir vantagens em cima duma galera que está bem mais ferrada do que ele. O classe-mediano anda tentando evitar palavrões, então, “ferrada” é uma palavra atualmente bastante usada. A camiseta branca surrada, amarelada em certas partes, principalmente ali pelo sovaco, parece dar a ele a desenvoltura e o direito de além de tudo escolher com muito cuidado as melhores peças, as que vai levar para a casa. Porque estamos falando de alguém que quer um axé maneiro para a semana, que está só começando; ué. Mas aí pinta aquele constrangimento/incômodo quando, na hora em que estava prestes a se decidir por Aquela Rosa Vermelha Já Mais Aberta, tem que dizer “não” a um cara que do nada — Bum! — apareceu para pedir dinheiro. Quer dizer, “não é dinheiro, não”, declarou o pedinte.

O grandalhão da barraca de flores, bem sem saco, dispara um “aí, se liga…” e faz com as mãos um sinal que a gente facilmente entende como algo que quer dizer “sai daqui”. Parece que no cotidiano o feirante também está evitando algumas palavras. O pedinte, até ali, tinha dado a deixa de que, por sua vez, o que ele parece estar  evitando é pedir dinheiro. Talvez porque esteja difícil pra todo mundo e, na rua, deve ser possível sentir isso muito bem. Deve ser quase impossível as pessoas ouvirem o que ele diz. Aquele que pode escolher flores faz isso com tanto cuidado que parece até um lance de xadrez ou um daqueles momentos em que, conversando com o gerente do banco, precisa decidir o que fazer com aquele dinheirinho que ficou na poupança. Uma indecisão/demora cheia de “poesia”, quase um anúncio de sabonete.

O da camisa amarelada, então, fura o dedo numa das rosas que até então não tinham causado nenhum desprazer. Furos nas pontas dos dedos, você sabem, provocam uma sensação bem ruim. Quem não quiser testar isso escolhendo rosas em feiras pode optar por um daqueles testes (de colesterol?) em que furam o dedo da gente, apertam pra que o sangue saia na quantidade devida e, depois, espalham o líquido vermelho numa plaquinha transparente, aparentemente de vidro, para que seja inserida numa máquina. O classe-mediano, algo angustiado porque o atual prefeito da cidade em que mora conseguiu uma vaga no segundo turno das eleições, já fez este tipo de exame. O feirante de poucas palavras, também.

Passou pela cabeça do pechincheiro: “Deve ter a pele dos dedos bem grossa, nunca deve ter passado por um exame assim.” Antes de seguir para o pensamento seguinte, sobre a resistência das mãos do rapaz ao manusear flores com espinhos, mexeu nos bolsos e, tirando de lá muitas notas de $5 e de $2, separou o suficiente para pagar pelas flores e… E além disso pegou uma, a de menor valor, para dar ao rapaz.  Sob o olhar do feirante, dobrou uma nota, como que para que ficasse firme no trajeto entre a mão dele e a do destinatário dos dedos que nunca foram furados. E esticou aquilo na direção do homem que tinha ficado ali, meio de lado. “Mas não é dinheiro, não…”, lembrou o pedinte.

“Mas cara dinheiro é o que eu tenho, agora…”, desculpou-se com “calma” o mais bem-alimentado dos três ali. E sentiu-se aliviado com esta frase/explicação, como se ela deixasse muita, muita coisa clara. Foi ajudado pelo olhar cúmplice do vendedor, que balançava pros lados a cabeça como se não entendesse a recusa do mais ferrado dos três ali: “Pô, aí, que vacilo…” Percebeu-se suado, o comprador/pechicheiro/classe-mediano, talvez em consequência do excesso de pensamentos que tomavam conta dele, e lamentou que em tempos de pandemia não fosse possível tirar/secar as gotinhas que se haviam formado em baixo do nariz, por baixo da máscara. Era o único dos três que usava máscara. Tinha tomado o cuidado de não limpar o sangue do dedo na roupa. Bastava uma camiseta amarelada, não queria uma bermuda manchada. E, em vez de fazer isso, espalhou o líquido pela mão — que ficou um pouco grudenta. Mas uma borrifada de álcool resolveria tudo. Antecipou a ardência que sentiria no dedo furado. O classe-mediano voou para casa porque estava atrasado para a meditação. Fazia isso todos os dias. Flor era só uma vez por semana. Mas meditação era diariamente. Precisava meditar. Precisava meditar.

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Boteco connection #3 — Sapatinho de cristal e cara de pau

A pandemia criou uma nova categoria: o intelectual de calçada. Você pode chamar de uma evolução do intelectual de boteco. A diferença entre os dois é que os do novo grupo se preocupam mais com a saúde. Ou têm mais medo de morrer. O que (para os menos esclarecidos, pelo menos) pode dar no mesmo. Ambos ficam com aquele caô de chamar o garçom pelo nome, ensaiando uma intimidade/gentileza que não passa do terceiro copo ou do primeiro “não” que o trabalhador for obrigado a dizer. O que é que ia mudar mesmo, depois do Covid, hein? Ah, a maneira como as pessoas veem o mundo, a vida, quem está do lado…

Seguimos esperando. E bebendo. Porque cerveja é coisa sagrada, para esquerdopatas e terraplanistas. Disso, você já sabe. É o que obriga os dois a acreditarem na água, mesmo que no fim da rodada cada um dê um peso para aquele “produto”. Mas nestes dias de pré-derrubada do atual prefeito do Rio (com o caminho aberto pela queda do Trump), faz mais sentido a gente falar naquilo que — pra te influenciar — colocam no teu WApp (e não na piada mais velha, sobre o que puseram na água) e não no encanamento. Capivarinha esperta não deveria beber qualquer água ou acreditar em qualquer vídeo. Mas não podemos esperar muito de capivarinhas.

Pois então: tava em algumas bolhas, no WApp, a historinha de uma Patrícia que teria pedido ao menino do boteco que cruzasse uma praça inteira para, como um favor, comprar para ela um maço de cigarros. A primeira resposta dele, depois da cara de descrença diante do pedido, foi o “não”. A cliente seguiu tentando. Explicou que estava usando saltos muito altos e que precisava fazer aquilo porque o calçado tinha sido presente da avó. “Tenho que provar para a minha avó que usei o presente dela”, declarou, sorrindo. A cara do garçom continuou sendo de descrença. Faltam palavras para descrever a cara de quem estava em volta, alguém que provavelmente frequentou alguma aula de teatro.

Conhecida num passado não muito distante como destruidora de superego, a cerveja pós-pandemia poderá ajudar em duas coisas: combustível para juntar os cacos dos muros que forem quebrados. E, o que é mais provável, a quebrar barreiras que durante estes dias difíceis acabaram se solidificando ainda mais. Como sempre, haja goró.