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Já prepara aí

Preparação. É uma coisa que você consegue perceber no cinema. É quando — literalmente — preparam a gente pra algo que vai acontecer. Mostram, sei lá, um bicho morto e você com razão saca e pensa: “Ih, vai dar M…” Afinal, M de cara pode não fazer muito sentido, pelo menos para quem ainda se liga em histórias bem contadas, então, num bom filme, te preparam direitinho para a M. As samambaias que sumiram ali no número 39, as begônias que o Capitão Nando percebeu que faltavam lá no 57 e… bom, o desaparecimento da samambaia que enfeitava ali o cantinho da praça foi a gota d’água. “Tem alguém surrupiando as bichinhas”, pensou o Capitão.

Ele não era capitão de verdade. Mas gostava de heróis, ou um dia tinha gostado do Capitão Marvel, e brincava com a esposa quando chegava em casa: “Capitão Nando na Área!” Ela respondia com um “Shazam!!” Isso mesmo. Assim como há as Loucas dos Gatos, há os Defensores das Verdinhas. Ele preferia, por uma questão meio moral, chamar as plantas de “Verdinhas” em vez de “Bichinhas”. Mas quando deu por falta da Samambaia o sofrimento foi tanto que não conseguiu controlar o vocabulário. Sabia que deveria ter controlado, porque, com superpoderes, vêm as super-responsabilidades; inclusive as semânticas. Sim, nosso herói também gostava do Spider-Man.

Nando, isto é, Capitão Nando vinha andando, não muito atento, pela Senador Correa, aquela rua que dá bem na praça, quando seu Instinto Verdinho fez seus pelos se eriçarem. Viu perto da igreja uma velhinha que agachava lentamente, porque é assim que a maioria das velhinhas faz, levando a mão na direção de uma pobre e indefesa Espada de São Jorge que alegrava ali o jardinzinho em frente à casa do Seu Zeca. Apressou o passo, agradecendo aos céus por ter este superpoder. Resolveu recorrer ao supergogó, quando viu que a velhinha era rápida no agachamento e a Espada de São Jorge ali sozinha não tinha a menor chance naquela briga. “EI, SENHORA!” Tirou a máscara, sem que ela se desprendesse da orelha direita, falou, e colocou de volta.

Esperou que ela respondesse com “Senhora, não…” e completasse com sua alcunha de vilã. Mas Dona Melina não foi além de ficar um pouco ruborizada. Levantou-se, ela; como quem assume que está fazendo algo que não é mesmo aquilo que os padres ensinavam nas missas de antigamente. É, os ensinamentos de antigamente, nas missas, deviam ser melhores que as de hoje. No Largo do Machado, por exemplo, já se viu sacerdote que fala até em armas em tom de “piada” quando quer repreender catequista. Mas aí é outra história, assunto para outro super-herói. Deus, talvez.

Dona Melina arrumou o vestido verde-claro, com as mãos sujas, e soltou um palavrãozinho quando percebeu que isso tinha deixado uma mancha na roupa. Foi bem no instante em que o Capitão Nando estava a uma distância em que era possível ouvir o que saía da boca da inimiga recém-descoberta. Era a vez de ele ruborizar um pouco. Herói e Vilã que ruborizam, frente a frente, não é coisa que se vê todo dia. Parecia que a batalha ia ser boa. Lembrava cinema de verdade porque de alguma janela saíam os versos de “Agressão repressão”, com os Ratos de Porão. Devia ser do apartamento do Ari, que é conhecido como metaleiro mas ouve na boa umas coisas de crossover. Música também serve como preparação, dá um clima. O filme, quer dizer, a chapa estava esquentando.

“O que que a senhora tá fazendo aí? Deixa a plantinha! Solta a plantinha, por favor!”, desafiou Nando, o Capitão dessa vez sem afastar a máscara. Foi quando pensou em usar no rosto algo que trouxesse uma frase do tipo “Salve as Verdinhas!”, mas desistiu logo porque podiam achar que ele estava se referindo a dólares e não a plantas. Pensaria mais tarde noutra mensagem para estampar. Era hora de manter o foco. “Geeente, eu só tava pensando em levar a bichinha pra colocar num vasozinho…”, devolveu a anciã, sem para isso retirar seus acessórios pandêmicos: máscara de pano com compartimento para filtro descartável e aquela proteção que se assemelha a um para-brisa.

Era uma vilã que sabia se proteger. Mas o aparato dificultava-lhe a comunicação. O Capitão tinha a resposta, mesmo sem entender bem o que tinha saído da boca daquela “bandida”: “No Cadeg, a senhora acha várias. Lá, todas elas precisam de alguém que cuide delas…” Disse isso e sorriu, satisfeito com a dose de sarcasmo, velocidade e firmeza que havia colocado nas palavras.

Coadjuvantes se aprumaram e ameaçaram uma aproximação, nem todos com máscaras, mas todos sim com celulares nas mãos. Foi quando herói e vilã perceberam que não estavam num filme e, melhor, não queriam virar manchete de um daqueles programas tristes de TV aberta, à tardinha; quando são apresentados casos que invariavelmente dão em desgraceira. Dona Melina praguejou contra o defensor da Espada de São Jorge, de novo vermelha mas desta vez de raiva, e foi saindo. O Capitão Nando atravessou a rua, sem encarar os outros atores. E os dois sumiram rapidinho da cena. Como num filme.

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Defcon o quê?

Tava com a corda toda, hoje de manhã, a vizinha. Logo cedo, berrou contra o marido, é, devia ser o marido, berrou que ele não tivera coragem de fazer o caderninho de realizações, então, que não viesse agora em plena pandemia reclamar com ela sobre os desejos não alcançados. Será que tinha sexo, na lista não feita? Minutos de silêncio. Minutos mesmo, longos, longos períodos de silêncio; era uma berração feroz mas pausada. E o infeliz, e vale dizer infeliz porque se podia deduzir que os desejos não vinham sendo realizados, e o infeliz responde: “É que eu sabia que se fizesse você ia dar um jeito de ir lá pra ler o que tava escrito. E caderninho de realizações, sua louca, tem que ser uma coisa feita em segredo. E segredo é uma coisa que não se divide com ninguém.” Agora, boa parte da vizinhança sabia da história. Mas não era assim tão terrível porque estávamos diante de um segredo que não existia. O caderninho dele não existia.

Outra coisa que provavelmente toda a vizinhança sabia é que o mané não devia ter usado a palavra “louca”. O ritmo da pendenga mudou, ali, bem naquele instante. Os minutos de silêncio, o xadrez barulhento mas que até então poderia ser considerado “elegante” deu lugar a uma pelada, um totó cheio de desespero, recheado de roletadas. Foram apenas milésimos de segundos, se desse pra contar, sim, daria pra dizer que, milésimos de segundos após disparada a acusação, a quebradeira começou. Os que moramos em volta ficamos algum tempo, também menos que minutos, sem saber se o que rolava era uma destruição de coisas da casa ou do marido em si.

Já se vão umas duas horas de silêncio. E continuávamos sem saber, nós que tínhamos acordado cedo na segunda-feira ainda pandêmica, pra fazer coisa nenhuma além de pensar. Talvez tenham começado juntos o caderninho, sem segredos. E dizer que o lance é sem segredos passava até certo ponto a incluir moradores de umas boas três dúzias de apartamentos. De dois e três quartos, com dependências. Esperamos todos que isso pese, se for pesar, claro, que pese positivamente na realização dos desejos deles lá. E como neste momento de isolamento estamos nos tornando pessoas diferentes, diferentes no mínimo no sentido de mais gordos e gordas, esperamos também que alguns de nós tomem aquela treta como inspiração para começamos nossos próprios caderninhos de realizações.

Mesmo sem saber bem o que é uma coisa, a gente pode começar. O velho ensinamento, e dizemos velho porque é de antes da pandemia, o velho ensinamento de que basta um passo e você já está noutro lugar serve bem pra isso. Serve pra muita coisa. Mas estamos falando de caderninhos de realizações, então, por favor, concentre-se. E faça a sua lista. Pense um pouco antes se vai manter a coisa em segredo. E se é segredo Defcon 5 ou 3 ou 2. Porque periga ter uma hora em que alguém pode descobrir e os seus desejos se pá vão se espalhar pela vizinhança. Por umas boas três dúzias de apartamentos, pelo menos, onde moram pessoas que você nem conhece. Mas que podem saber/desconfiar quem é você.

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Senhor Perigo, Dona Paranoia e companhia

Esta onda de reabertura oficial-e-escandalosa dos botecos, como se durante as últimas semanas muitos não tivessem desrespeitado completamente o “isolamento”, serviu para matarmos saudades que sentimos de certos personagens. O primeiro deles, antes que você reclame da irresponsabilidade desta crônica, é o Perigo. Vamos chamá-lo de Senhor Perigo, em sinal de respeito. Ele sempre esteve aí, ainda mais nestes últimos meses, mas quando de repente disseram “Pode abrir o bagulho todo, mas fechem o bagulho todo às 23h que tá tudo mais ou menos bem”, foi como se o Senhor Perigo estivesse distante e só esperando… E assim ele recebeu um convite para que voltasse a conviver oficialmente conosco. E fazer das suas. Deu um sorrisinho e aceitou, claro. Como se não tivesse sido recentemente uma das companhias mais constantes, ao lado de Dona Paranoia, Seu Vá Pro Inferno e Prima Angústia.

Claro, gente menos famosa apareceu para a festa. Era festa, afinal. Gente sem nome. Bêbado, não precisa de nome. De sobrenome, talvez. O Bêbado Sensível, por exemplo, que fica magoado quando tem que engolir junto com o 12-anos-cowboy uma amiga ladrando, a uma certa distância, talvez, que ele não passa de um “cachorro velho”. Isso provoca um estrago no coração de qualquer bicho que tenha o corpo de fato coberto por pelos brancos. A reabertura trouxe volta tristezinhas particulares assim nestes moldes. Mas aí são fatos isolados. Só mesmo para temperar a crônica. O que nos interessa são personagens famosos. É disso que vivem escriba e leitor. O Poder Público, nem se fala…

A reabertura dos bares trouxe de volta também Uma Certa Verdade. Ela estava solta, soltinha por aí. Houve quem tentasse apropriar-se dela para esfregá-la na cara de outrem. Mas Uma Certa Verdade manteve(-se) (n)a linha, arrumou a máscara e continuou desfilando sem dar bola para manipuladores de plantão. Ainda não houve quem conseguisse alcançá-la.

E, claro… Em nome da civilidade (solte agora aquela gargalhada debochada), ainda não é hora de esfregar nada na cara de ninguém. Isso seria um atentado contra as Regras de Ouro. Regras do Outro, não; Regras de Ouro mesmo, que foi como a Prefeitura da Cidade Pentecostosa do Ria Aí de Janeiro a Janeiro (pra não chorar) chamou o conjunto de normas a serem seguidas pelos estabelecimentos para que pudessem reabrir sem colocar em risco a população. Se Uma Certa Verdade estivesse em dias mais gloriosos, se pudesse atuar com cem por cento de sua capacidade de esfregação, faria o Poder Público entender que o grande risco na verdade é ele.

Quem também resolveu dar as caras foi o Beijo Na Boca. Afinal, do que adianta ir para o Lebronx, encher os cornos e voltar para casa no zero-a-zero? Vomitar, apenas, não tem graça. Antes disso, é preciso ensaiar ao menos uma bitoquinha naquela mina, naquele mano que acredita na liberdade. Por mais que, para alegrar a noite da tradicional família cariokkk, as manchetes televisivas tenham se concentrado no distanciamento responsável que não existiu… o Beijo Na Boca merecia destaque porque foi outro personagem muito visto por aí. Sem máscara, claro, porque nesse caso não tem como ser de outro jeito. Beijo e proteção, assim como chupão e comedimento, nunca foram duplas vistas de mãos dadas por aí. Imagine agora.

No bafafá, apontaram os holofotes para aquele caso do cliente que entrou sem máscara no restaurante e, abordado pelo gerente, disparou (palavra mais adequada, impossível): “Meu presidente liberou…” Houve bate-boca, entre as partes. No caso do Beijo Na Boca, não precisava discussão política alguma, porque ambos os lábios quando partem para a ação já estão de acordo em tudo. Nestes dias de Novo Normal, havia no ar um cheirinho de Velho Normal, como era de se esperar, mas aí é outro papo.

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Bart, Lisa e você aí

Tem um episódio (bem antigo) de “Os Simpsons” que é maravilhoso. A Lisa pergunta mais ou menos assim ao Bart: “Se uma árvore cai, no meio da floresta… isso fez barulho?” O pequeno capeta responde e ela ensina que, tipo, aquilo é uma questão filosófica, é uma frase/pergunta que permeia nossas vidas há séculos e “não tem uma resposta definitiva”. Para o pequeno garoto amarelo, parece ter resposta, sim. Talvez ele viva uma vida mais confortável que a da irmã. Que não é exatamente um anjo, mas está do lado oposto ao de Bart. O lado de quem “sofre”, talvez.

Seres humanos têm a sorte de poder contar com frases, filmes, livros que são capazes de tornar melhores as suas vidas. Não, não precisa ser livro daquele tipo lindamente (des)organizado, como os que aparecem atrás de muita gente que faz live. Ah, sim, hoje em dia, há também as lives no Instagram; mas isso é outra parada. Boas histórias e bons roteiros deixam a gente com um sorriso de satisfação e, se não chegam a ser um ensinamento, são vá lá um quase-ensinamento. O que já é muita coisa. Nesse sentido, “Los Angeles – Cidade proibida” (“L.A. confidential”, de 1997) merece ser citado. Uma frase muda o filme, explica ligações, provoca um “estalo” no mocinho. É, tem uma espécie de herói, mas dá pra perdoar isso em nome de um bom insight/script.

Na sequência, você pode ficar se perguntando que frases está deixando de entender, quais crimes foi incapaz de perceber, quantos lobos continuam ali do lado disfarçados. Não porque você é louco. Mas porque lobos, no sentido “mau cidadão, sujeito escroto” da palavra, existem. Estão nas reuniões de condomínio, nos agrupamentos de WhatsApp. Ah, nos grupos de WhatsApp, então, nem se fala. E é muito difícil enxotá-los.

Passamos horas e horas, mensagens e mensagens, esperando que se contradigam. Percebemos a astúcia e constatamos péssimas intenções em falas aparentemente cheias de boa vontade. Temos certeza de que planos horríveis estão em andamento e levarão todo o grupo a uma grande armadilha. O tempo passa, o candidato a herói continua sofrendo e aquela frase cinematográfica não vem. Não vem nem em hora errada, quanto mais no momento certo.

Aí, o que pode ser ainda pior, surge a desconfiança de que mesmo se surgir a frase não há plateia suficiente acompanhando com atenção a história para entender a grande revelação. Surgem dúvidas sobre o combustível gasto só para manter atenção nos enredos que nos cercam, na tentativa de sobreviver aos lobos, às árvores que caem na floresta, ao preço do milk shake ou da cerveja (que não para de subir). Nessa hora, muita gente pode sentir inveja do Bart Simpson. E com certa razão.

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Cloroquina no Covid dos outros é refresco

Entre os espíritos de porco da bolha nossa de cada dia, tem sempre aquele que se acha capaz de zoar sem parecer que está zoando. Ou pelo menos sem achar que parece. Quantos cínicos orgulhosos te seguem? Quantos cínicos orgulhosos você segue? Hoje, foi possível ouvir por aí a defesa de um mundo pop divertido e livre de preconceitos, quer dizer, livre de correção política. E o preço seria justamente este, uma certa licença para ser politicamente incorreto. Tudo bem que rir é o melhor remédio. Mas já não chega de dar certas gargalhadas? Cloroquina pra tratar Covid dos outros é refresco, né, minha filha?

Os absurdos podem servir para o aprendizado de todos nós. A sugestão que fica para debochadinhos criativos é que, ao contrário, acabar com o “mundo pop” é que seria um preço baixíssimo para interromper a multiplicação de mentalidades mergulhadas em… em… ah, nisso aí em que eles estão. A pandemia pode ter piorado ainda mais a “audição” de uma galera. Como será que reagem às indicações musicais que surgem nas bolhas? Porque tá assim, ó, de gente entendendo de e sugerindo som… Bolhas incham, bolhas desincham. Sacos se enchem e se esvaziam. Como uma onda no mar.

Depois de muita gente falar sobre o documentário dos Beastie Boys, que nem é tão maravilhoso assim, tivemos outro dia a chance de ver muitos comentátios e alusões aos 30 anos de lançamento do “Goo”, álbum do Sonic Youth. Horas depois, carcomidos pela saudade e orgulhosos pela sintonia que mantêm com as novidades, muitos roqueiros de meia-idade começaram a falar do “Covid-666”, do Brujeria. Outra onda. Mas pra quem quer se livrar do caldo do deboche que gruda nos ouvidos, vale um mergulho pelo menos na faixa-título.

Lembrar do “Goo” pode provocar na cabeça do quarentão avançado uma série de associações. O desenho do Pettibon nos leva ao Black Flag. E nesta era de pandemia e lives todo santo dia desembocamos naqueles antigos álbuns em que o sujeito em vez de cantar… falava. Eram verdadeiros discursos. Devem ter inspirado um ou outro humorista dessa história de stand-up comedy. Então, tem aquele disco do Black Flag que um bom exemplo disso: “Family man”, que dá título ao álbum (de 1984), merece ser ouvida. Não é bem um “spoken” no estilo Jello Biafra, tem um quê de poesia. Mas dá pra dizer que não é um troço cantado e sim falado.

A capa, também by Pettibon, é uma porrada. E essa faixa-título, podes crer, mermão, é um negócio beem atual. Não é à toa que a gente corre o risco de ficar com essa sensação de volta ao passado. E sabe lembra na essência um pouco a onda rap de grupos como os Racionais. Porque parece uma pregação, aquilo que sai das caixinhas de som. Ah, claro, pensar em “Goo” ou qualquer coisa daquela época também provoca uma inevitável saudade das grandes caixas de som. Quando bons deboches ganhavam a vizinhança. Numa provocação que não era internética mas não tinha fim.

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Cliques

Passava pelo Dorminhoco, tirava uma foto. Ele “pedia”. Às vezes, era um movimento que chamava a atenção de quem estava perto. Mas nunca deve ter parecido invasão de privacidade. Jamais houve uma reprimenda e, com o tempo, o “fotógrafo” foi sentindo-se mais à vontade para investir nos registros. Tinha se acostumado a chamar daquele jeito um senhor que parecia ganhar a vida como guardador de carros, ali perto daquela padaria na Ministro Lira. Quase sempre calçava chinelos de couro, ele. Havaianas, nunca. Durante muito tempo, exibiu uma certa dignidade: roupas limpas, barba sempre bem feita. Era comum vê-lo mais dormindo do que acordado, mas invariavelmente com sacolas de mercado penduradas num dos braços. Vazias, sempre.

Tinha se tornado um exercício regular, aquela história de chegar perto e registrar o sono daquela pessoa. Era um sono despreocupado, o dele. Ou parecia ser. Mesmo enquanto dormia, dava a impressão de estar tomando conta ali do pedaço. Fechava os olhos, mas demonstrava autoridade. Falando assim, é difícil alguém acreditar. Assim como era um desafio entender de que maneira um cochilo podia ser aproveitado nas posturas que aquele senhor assumia/exibia. Mas era prazerosamente esparramado nas cadeiras que ele comandava as coisas. Depois, a cadeira foi substituída por um banco. Pra que encosto, né?

As capturas com o celular variavam na medida em que o Dorminhoco se mostrava em mergulhos diferentes. Mergulhos de/no sono. Houve uma vez em que o lugar escolhido por ele para encostar-se foi a porta de acesso a uma escada que levava ao segundo andar do prédio colado à banca de jornal. Funcionavam lá em cima um restaurante japonês e uma sinuca. O japonês era conhecido por ser o mais barato da região. A sinuca, pelas mesas grandes lindonas e por ter apenas cerveja e nenhum petisco disponível. Mas, para o fotógrafo, vamos chamar o cara de fotógrafo mesmo, para ele, bem, o importante era aqueles estabelecimentos estarem no caminho/quadrado do Dorminhoco. Tinha mesmo desenvolvido alguma relação com aquele personagem.

Planejava abordá-lo. Achava ter ouvido alguém na padaria chamá-lo de “Sapão”. Achou pouco respeitoso, o apelido. Não gostou. Preferiu ficar com “Dorminhoco” mesmo. Ainda mais que não tinha revelado a alcunha a ninguém. Chamava-o daquele jeito mas só fazia isso quando falava consigo mesmo. “Então, tudo bem. E ele pede…”

Certa vez, com uma metideza de artista, o homem-do-smartphone ficou na dúvida se deveria ou não aproximar-se bem do “alvo”. E resolveu ir. Teve a impressão de que sua chegada havia sido notada. Os olhos daquele homem pareceram se abrir um tantinho. Nunca soube se aquela velocíssima encarada aconteceu ou não mas, depois daquela noite, ficou pensando: “Caramba, ele tá ligado no que eu tô fazendo…” Naquela ocasião, o Dorminhoco estava meio torto sobre um caixote que fazia a gente se perguntar como é que alguém conseguia se equilibrar ali para dormir. Parecia não haver espaço para alguém sentar-se, quanto mais para dormir.

O tempo passa, dessa maneira que um dia todo mundo percebe que é mesmo assim como parece/anunciam. Superveloz. Sabe? Numa tarde, estava lá um jovem, com traços muito parecidos com os do Dorminhoco. Será que ia ocupar o lugar do pai? Será que era o filho ou um dos filhos? Dias depois, aparece de novo o Dorminhoco, sem uma perna, e com roupas já não tão limpas. Os diálogos que nunca existiram, sempre foram necessários, mas nunca existiram, pareceram então ser impossíveis. Houve uma breve troca de olhares. Havia dor, sim. Mas existia também calma. Nenhuma foto. Assim como não havia mais perna, parecia não haver mais sono.

Depois que as imagens foram organizadas no que se podia chamar até de uma série, o fotógrafo pensou em imprimir tudo. Mais: talvez aquilo pudesse render algum dinheiro para o personagem. O Dorminhoco ia gostar de saber. Mas de repente tudo mudou, no cenário. A banca de jornal foi substituída por uma maior. Dessas com vidro e aparelho de ar-condicionado. O japonês e a sinuca fecharam as portas. O que se vê lá hoje são placas com números de telefone, para quem estiver interessado nos imóveis. O Dorminhoco tinha sumido, assim como sua perna fizera antes. O rapaz sentiu um certo alívio, por nunca ter mostrado as imagens a ninguém. Desejou que seu amigo estivesse numa cama confortável. Teve medo de perder o sono. Sentiu-se com sorte por isso não ter acontecido.

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O cidadão 125 cilindradas

Estava num post, pra todo mundo ver: a história de um entregador que, feito o serviço, estendeu para o cliente uma nota de dez pratas dizendo “Olha, por favor, fica com isso aqui e me dá o mesmo valor em gorjeta lá pelo aplicativo, porque, quando mais gorjeta eu tiver, mais me chamam pra outras entregas”.  Não estava escrito lá se a proposta havia sido ou não aceita. Entregadores tomaram mesmo conta dos nossos corações e mentes.

“Coxinha” é uma palavra que parece ter ficado no passado. Mas é tão fofa que vamos resgatá-la. Aqui, agora, ó… O coxinha-padrão, que enxerga nos rapazes de moto ou de bicicleta do Itaú exemplos de força de vontade, de boa índole e de empreendedorismo, deve aplaudir a proposta do rapaz… Afinal, ele está tentando garantir o seu. O que deixa um classe-mediano-coxinha mais feliz do que um “pobre esforçado”? Eles têm convicção de que “é por aí mesmo”. Se for um pobre que freqüenta a igreja, então, aí não há felicidade maior.

O esquerdopata… O esquerdopata fala algo sobre isso? Ou o mortadela (outro resgate semântico) está até agora pensando o que é mais OK: “Pedir comida pelo telefone ou pelo aplicativo”? O esquerdista-raiz gasta seu tempo não comendo, mas mergulhado na digestão dos possíveis desdobramentos de uma “greve ‘séria’ de entregadores”. Antes, sonhava com a organização do proletariado, agora, pós-pandemia, não lhe sai da cabeça uma paralisação/conscientização do motocariado.

Enquanto uns fazem greve, outros fazem pedidos. E há ainda os que se viram. Como é que os arautos pregadores da resiliência ainda não recorreram ao exemplo dos motoboys para suas palestras online? O pessoal do Tarot, também muito na ativa, nos dias de hoje, já podia pensar em adicionar uma carta ao deck: O Entregador. E os compositores? Teve aniversário do Chico Buarque, estes dias, né? Daqui a pouco, surge um hit com algo do tipo “Você não pede nada pra mim, mas sua filha…”

Uma avalanche de possibilidades, né, minha filha? Muito mais desdobramentos do que imaginava o rapaz que fez a proposta de trocar dinheiro vivo por gorjeta virtual. Seguindo assim, a gente daqui a pouco vê surgir um Partido dos Entregadores. E aí já dá pra antecipar um futuro em que a grande discussão será se a culpa por tudo isso que está aí é ou não desse desgraçado desse PE.

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É, camará…

“Nem tudo que reluz é ouro… Nem tudo que balança cai…”, diz um corrido de Capoeira. Isso parece retratar bem nosso momento político, nos fazendo pensar que estamos em meio a um grande, grande jogo, né? Todo mundo achava que estava acontecendo uma coisa, mas, na verdade, é bem outra que se revela co’o andar da carruagem: é o que está implícito nas estrofes que abrem este texto. “Corridos” são os versos cantados por quem está, digamos, no comando da roda. E estes versos são respondidos pelos que integram o grupo e, não raramente, por quem está assistindo ao espetáculo. As respostas formam um coro. Talvez o corrido mais conhecido seja o “Paranaê…” Todo mundo sabe a resposta e isso ajuda muito a animar o jogo. O coro fica bonito.

Dependendo da escola, há às vezes gente batendo palmas; para com isso contribuir com o ritmo. Na Capoeira, a música pode funcionar como uma espécie de crônica: fala sobre o que está acontecendo, ali, no momento. Noutras ocasiões, é a música quem imprime/dita uma cadência, faz certos movimentos se desenvolverem ou, no mínimo, inspira isso. Uma canção superpode tornar mais rápidos e consequentemente mais agressivos os movimentos dos jogadores.

Assim… Se um participante leva uma rasteira, o puxador pode mudar rapidamente o canto e soltar um “Meu facão cortou em baixo, eu falei…” E todo mundo vai/deve responder: “A bananeira caiu!” Está aí um bom exemplo de “crônica”. Ou, por outro lado, se o mestre responsável num determinado instante avalia que o clima está morno demais, tem o “direito” de provocar, cantando algo como “Olha, rala o coco…” E a resposta para isso será: “Catarina!” Com a repetição de “Catarina!…”, de forma constante e mais acelerada do que vinha acontecendo até então no coro, é certo que os movimentos ficarão mais acalorados. No mínimo, mais animados/quentes.

Há outros tipos de música, nos rituais capoeirísticos. A Ladainha, que abre os trabalhos, é uma das mais importantes. Além de contar uma história, de muitas vezes fazer alusões, por exemplo, ao passado da vida dos negros escravos, a Ladainha pode conter provocações. Agachado, de frente para o oponente, um jogador pode puxar uma música que soe como afronta. E isso pode ser o prenúncio de uma movimentação particularmente ardilosa, com o intuito de desconcentrar/desnortear o “oponente”.

Co’essa história do confinamento, não se vê roda de Capoeira pela cidade. As pessoas já estão andando pela orla, enchendo bares, deixando máscaras de lado, mas roda de Capoeira — graças a Deus — ainda não anda rolando, o que talvez comprove que capoeirista é mesmo malandro(a). Malandro(a), no bom sentindo, sim. A “malandragem”, aliás, é um dos temas musicais mais recorrentes, nestas reuniões de praticantes da grande arte/luta que tem como referências mais famosas os mestres baianos Pastinha e Bimba.

Um corrido que nos faz pensar na situação política que a gente vive pode ser um convite para que mergulhemos noutros ensinamentos da Capoeira. Ficar bem atento ao que está acontecendo, no jogo, por exemplo. Isso é uma regra básica, que serve para a vida como um todo. Vai que na hora daquele bocejo despreocupado vem um pé na orelha… Na orelha de quem estava só assistindo ao jogo. Cabe a nós identificar o sujeito que, pela postura, ou por uma orquestração enganosa, sugere que é capaz de fazer e acontecer, mas… Mas em cinco segundos mostra que ginga feito um siri com câimbra. Atenção, camará! Atenção para o jogo em que te puseram. Atenção pra não responder errado na hora do coro, hein!

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Bocas e suas orientações políticas

Outro dia, numa pesquisa de Twitter, uma jornalista usou a linha do tempo para tocar uma pauta: “Quantas pessoas de esquerda estão com empregada em casa na pandemia?” Era provavelmente uma pesquisa para achar personagens para uma matéria. Mas um detalhe — o “de esquerda” — chamou a atenção de gente que noutra esquina da rede mundial de computadores discutia os “50 tons de esquerda”. Era um grupo de lero às vezes bem-humorado, batizado a partir do nome daquele filme de 2015. Uma galera também muito “atenta”, do tipo que está em casa agora durante o isolamento, porque pode. Gente capaz de pescar a pesquisa da repórter para rechear suas argumentações, contra e a favor de qualquer coisa.

Para você ter uma ideia do que rolava: ali, naquela aglomeração internética, e portanto atualmente permitida, era possível ler coisas como “se é de esquerda, não tem como ser machista”. Questão que, como resposta, TODAS dadas por mulheres, além de uma ameaça de tapa na cara gerou a única unanimidade daquela tarde: a conclusão de que estavam diante de um “esquerdomacho”. A ameaça de esbofeteamento, caso venha mesmo a acontecer, só após o período de isolamento. A conferir.

Quanta variedade, nestas discussões de grupos de mensagens! É. Parecia feira. Dá pra imaginar pessoas de jaleco, sacudindo moedas nos bolsos como se fossem chocalhos e oferecendo seus produtos, quase esfregando na cara da dona que passa com o carrinho aquele caqui da promoção. “Experimenta, experimenta aqui!” Ofertas que às vezes soavam como ameaças. Houve quem aparecesse para dizer que não acreditava mais em Esquerda. O “consolo” é que não acreditava também em Direita, o que para ambos os lados pareceu ainda pior.

Estavam ligados pelo desconforto. Sim, parecia que no debate eram todos esquerdopatas, mas falar dos tons quase colocava alguém do/de outro lado. Mesmo num grupo em que os membros se identificavam pelas ideias em comum, havia diferenças. E aí… havia lados diferentes. Pra não dizer opostos. O que pra muitos significava “Direita”. A conferir, também — aí, provavelmente, só nas próximas eleições. Quando e se surgir o papo de “voto útil”, isso poderá ajudar muito.

“Eu nunca tive dúvidas de que você era a Esquerda da Direita. Ou a Direita da Esquerda”, dizia um playboy, tentando ser simpático. Sim, havia playbas na conversa. E eles se comportavam até bem. Talvez estivessem medrosos, o que fazia deles pelo menos temporariamente “playbas razoáveis”. E, às vezes, dava para ser simpático. Talvez porque estivessem todos neste “momento água”, vendo no Youtube (e indicando) vídeos sobre resiliência. Com certeza, cansados de estar em casa por tanto tempo. Vale repetir: sim, eram do tipo de gente que anda podendo ficar entre quatro paredes, lidando com a culpa, em muitos casos, e, noutros, rezando para o achatamento da Curva.

Eram bons de explicações, os envolvidos. E faziam questão de pormenorizar as coisas, às vezes distanciando-se da discussão que parecia ser mais importante num determinado momento. Apelaram muito para o futebol, apontando que, “historicamente”, entre os que amam o jogo de bola, “os times trabalham pela destruição do adversário, muitas vezes, mais do que para o sucesso da própria agremiação.” Foi um dos poucos momentos de consenso, naquelas horas quentes.

Podia parecer um pouco estranho a exemplificação não ir para o mundo das cervejas, depois de passar pelo futebol. Talvez porque não haja muita familiaridade co’o rótulo Esquerda-Loura-Gelada. Por outro lado, ali naquelas intermináveis mensagens sobre “50 tons de esquerda”, foi quase consenso que “esquerda nutella” anda sendo um troço difícil de sustentar porque o pote de 650 gramas dessa parada está saindo por 40 moedas num supermercado da Zona Sul do Rio. “E não pode ser um pote menor?”, perguntou um conciliador esperançoso, porque entre esquerdopatas há conciliadores, sim. Depois, teve que engolir, sem cacau com avelã, que “precisa ser da grande, sim, porque a gente não quer socializar pobreza, a gente quer dividir riqueza”.

É importante manter o bom humor nas discussões. Ou, então, o cara pira. Seja de que lado estiver. A grande lição foi que, se é do tipo que anda recebendo diarista em casa, o negócio é manter a boca fechada. Seja qual for a orientação política da boca.