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Em nome de Lynch e Maradona: amém

Se tem uma grande sacanagem que o PPP fez foi emporcalhar o “conceito” de oração. PPP, você sabe, é o Projeto Pentecostal de Poder. Letras bastante razoáveis, estas, né: não sustentam nenhum palavrão e deixam bem claro o que há por trás (e pela frente, e de ladinho) daquela Igreja. Igreja contra Igreja é uma equação que soa beeem velha. Mas por que falar de oração, então? Por causa do Maradona, que nos deixou. E por conta dos vídeos do David Lynch.

Teve um Argentino, o Emi, que frequenta um bar ali de Laranjeiras, que chorou e tudo. Não foi zoado por nenhum de seus compadres de copo. Todos foram solidários. Ali tinha/era, claro, entre muitas coisas, uma celebração da macheza, defensores do pinto como centro do mundo sendo bróders uns dos outros. A despeito dos vômitos que isso possa ter causado nas feministas da área, foi fofo, foi o reconhecimento, a celebração da “obra” de um cara que fez bonito na sua passagem por aqui. Vacilou, claro. Mas mandou bem e tirou uma onda que muito verde-e-amarelo-aí-do-futebol jamais conseguirá. Maradona tinha tutano. Talvez isso deixe o adeus mais doloroso. O tutano do mundo parece que está mesmo super-acabando.

Oração, segundo o google-cionário é um “ato religioso que visa ativar uma ligação, uma conversa, um pedido, um agradecimento”. A explicação fala também num “ser transcendente e divino”, mas é possível “entender” o bagulho como um todo sem chegar até aí. Gritar “Gol!” é uma oração, num certo sentido, porque é uma celebração extremamente positiva, um momento de superação de todos os perrengues. Ou pelo menos de muitos perrengues.

Há a oração de todo mundo, talvez corriqueira, mas mesmo assim “necessária”. E há a de cada um. Pelo menos, pode haver. Ah, pode. No mesmo boteco que o Emi frequenta, alguém sempre deixa, no balcão, uns brinquedinhos feitos de papel. Aquilo que antigamente chamavam de Origami. Um destes brinquedinhos invariavelmente gera comentários: o Tsuru. Aquele pássaro, tão ligados? Há quem acredite que mil, isso mesmo, fazer mil Tsurus meio que equivale a uma oração.

Outra coisa que parece ser um equivalente do exercício de “ligação” são os vídeos diários do David Lynch. Ele quase que invariavelmente fala sobre o tempo em Los Angeles, emendando isso com um comentário sobre a cultura americana. Tipo uma crônica-oração. Você até pode achar importante saber há quanto tempo  uma pessoa faz orações. Pode surgir a pergunta sobre quantos vídeos Mr. Lynch já fez e se é por isso, por talvez ter passado dos mil, que a brincadeira pode ser considerada uma oração. Não é bem por isso. É por ser uma rotina, diária, que estabelece uma ligação entre ele e seus “seguidores”. Também neste caso, é possível ficar com uma explicação/retórica que não chegue até a discussão do “ser transcendente e divino”.

Estes vídeos são os Tsurus do senhor David Lynch. Hoje, o escriba que vos digita teve a chance de presentear o tiozinho cineasta com o milésito polegar-pra-cima do dia. Se ele orou por isso, conseguiu. Há orações diferentes. Há rezas diferentes. Há até quem fale em “rezo”, em vez de “reza”, o que chega a ser surpreendente nesta época de “feminização forçada” da Língua. Mas isso é outra ladainha. Ninguém (aqui) disse/diz que você deve restringir-se a uma única oração. Lynch, por exemplo, faz também regularmente um (outro modelo de) vídeo, no qual sorteia números. Mas isso aí também é outra ladainha.

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Ardência

“Duas por cinco, ainda?” O classe-mediano compra flores, na feira; mas não dispensa a pechincha. Já não se sente culpado por negociar trocados e conseguir vantagens em cima duma galera que está bem mais ferrada do que ele. O classe-mediano anda tentando evitar palavrões, então, “ferrada” é uma palavra atualmente bastante usada. A camiseta branca surrada, amarelada em certas partes, principalmente ali pelo sovaco, parece dar a ele a desenvoltura e o direito de além de tudo escolher com muito cuidado as melhores peças, as que vai levar para a casa. Porque estamos falando de alguém que quer um axé maneiro para a semana, que está só começando; ué. Mas aí pinta aquele constrangimento/incômodo quando, na hora em que estava prestes a se decidir por Aquela Rosa Vermelha Já Mais Aberta, tem que dizer “não” a um cara que do nada — Bum! — apareceu para pedir dinheiro. Quer dizer, “não é dinheiro, não”, declarou o pedinte.

O grandalhão da barraca de flores, bem sem saco, dispara um “aí, se liga…” e faz com as mãos um sinal que a gente facilmente entende como algo que quer dizer “sai daqui”. Parece que no cotidiano o feirante também está evitando algumas palavras. O pedinte, até ali, tinha dado a deixa de que, por sua vez, o que ele parece estar  evitando é pedir dinheiro. Talvez porque esteja difícil pra todo mundo e, na rua, deve ser possível sentir isso muito bem. Deve ser quase impossível as pessoas ouvirem o que ele diz. Aquele que pode escolher flores faz isso com tanto cuidado que parece até um lance de xadrez ou um daqueles momentos em que, conversando com o gerente do banco, precisa decidir o que fazer com aquele dinheirinho que ficou na poupança. Uma indecisão/demora cheia de “poesia”, quase um anúncio de sabonete.

O da camisa amarelada, então, fura o dedo numa das rosas que até então não tinham causado nenhum desprazer. Furos nas pontas dos dedos, você sabem, provocam uma sensação bem ruim. Quem não quiser testar isso escolhendo rosas em feiras pode optar por um daqueles testes (de colesterol?) em que furam o dedo da gente, apertam pra que o sangue saia na quantidade devida e, depois, espalham o líquido vermelho numa plaquinha transparente, aparentemente de vidro, para que seja inserida numa máquina. O classe-mediano, algo angustiado porque o atual prefeito da cidade em que mora conseguiu uma vaga no segundo turno das eleições, já fez este tipo de exame. O feirante de poucas palavras, também.

Passou pela cabeça do pechincheiro: “Deve ter a pele dos dedos bem grossa, nunca deve ter passado por um exame assim.” Antes de seguir para o pensamento seguinte, sobre a resistência das mãos do rapaz ao manusear flores com espinhos, mexeu nos bolsos e, tirando de lá muitas notas de $5 e de $2, separou o suficiente para pagar pelas flores e… E além disso pegou uma, a de menor valor, para dar ao rapaz.  Sob o olhar do feirante, dobrou uma nota, como que para que ficasse firme no trajeto entre a mão dele e a do destinatário dos dedos que nunca foram furados. E esticou aquilo na direção do homem que tinha ficado ali, meio de lado. “Mas não é dinheiro, não…”, lembrou o pedinte.

“Mas cara dinheiro é o que eu tenho, agora…”, desculpou-se com “calma” o mais bem-alimentado dos três ali. E sentiu-se aliviado com esta frase/explicação, como se ela deixasse muita, muita coisa clara. Foi ajudado pelo olhar cúmplice do vendedor, que balançava pros lados a cabeça como se não entendesse a recusa do mais ferrado dos três ali: “Pô, aí, que vacilo…” Percebeu-se suado, o comprador/pechicheiro/classe-mediano, talvez em consequência do excesso de pensamentos que tomavam conta dele, e lamentou que em tempos de pandemia não fosse possível tirar/secar as gotinhas que se haviam formado em baixo do nariz, por baixo da máscara. Era o único dos três que usava máscara. Tinha tomado o cuidado de não limpar o sangue do dedo na roupa. Bastava uma camiseta amarelada, não queria uma bermuda manchada. E, em vez de fazer isso, espalhou o líquido pela mão — que ficou um pouco grudenta. Mas uma borrifada de álcool resolveria tudo. Antecipou a ardência que sentiria no dedo furado. O classe-mediano voou para casa porque estava atrasado para a meditação. Fazia isso todos os dias. Flor era só uma vez por semana. Mas meditação era diariamente. Precisava meditar. Precisava meditar.

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Boteco connection #3 — Sapatinho de cristal e cara de pau

A pandemia criou uma nova categoria: o intelectual de calçada. Você pode chamar de uma evolução do intelectual de boteco. A diferença entre os dois é que os do novo grupo se preocupam mais com a saúde. Ou têm mais medo de morrer. O que (para os menos esclarecidos, pelo menos) pode dar no mesmo. Ambos ficam com aquele caô de chamar o garçom pelo nome, ensaiando uma intimidade/gentileza que não passa do terceiro copo ou do primeiro “não” que o trabalhador for obrigado a dizer. O que é que ia mudar mesmo, depois do Covid, hein? Ah, a maneira como as pessoas veem o mundo, a vida, quem está do lado…

Seguimos esperando. E bebendo. Porque cerveja é coisa sagrada, para esquerdopatas e terraplanistas. Disso, você já sabe. É o que obriga os dois a acreditarem na água, mesmo que no fim da rodada cada um dê um peso para aquele “produto”. Mas nestes dias de pré-derrubada do atual prefeito do Rio (com o caminho aberto pela queda do Trump), faz mais sentido a gente falar naquilo que — pra te influenciar — colocam no teu WApp (e não na piada mais velha, sobre o que puseram na água) e não no encanamento. Capivarinha esperta não deveria beber qualquer água ou acreditar em qualquer vídeo. Mas não podemos esperar muito de capivarinhas.

Pois então: tava em algumas bolhas, no WApp, a historinha de uma Patrícia que teria pedido ao menino do boteco que cruzasse uma praça inteira para, como um favor, comprar para ela um maço de cigarros. A primeira resposta dele, depois da cara de descrença diante do pedido, foi o “não”. A cliente seguiu tentando. Explicou que estava usando saltos muito altos e que precisava fazer aquilo porque o calçado tinha sido presente da avó. “Tenho que provar para a minha avó que usei o presente dela”, declarou, sorrindo. A cara do garçom continuou sendo de descrença. Faltam palavras para descrever a cara de quem estava em volta, alguém que provavelmente frequentou alguma aula de teatro.

Conhecida num passado não muito distante como destruidora de superego, a cerveja pós-pandemia poderá ajudar em duas coisas: combustível para juntar os cacos dos muros que forem quebrados. E, o que é mais provável, a quebrar barreiras que durante estes dias difíceis acabaram se solidificando ainda mais. Como sempre, haja goró.

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Boteco connection #2 — Cortando a asa do pavão

A louca dos gatos. O louco dos cães. Dois personagens que, entra pandemia, sai pandemia, continuam aí firmes e fortes. Às vezes, sem máscara, desafiam as “leis”, como se sua relação com os bichos garantisse tudo. Além de afeto-anti-estresse, eles parecem ter superpoderes que lhes permitem descartar(/desdenhar d)o paninho na cara. Já tem até loja de animais de estimação prometendo, além do pet, uma dose extra de imunidade/saúde/anticorpos para seus clientes. Se não tem, anota aí, vai ter. Afinal, se tem uma coisa que a doença não colocou abaixo é essa história de que “marketing é tudo”. Pra algumas pessoas, não vai ser atraente, porque ficam mais “atraentes” de máscara mesmo.

Outro dia, uma LDL, tipo numa “crise”, foi ao bar levando na gaiolinha o felino de estimação. Disse que fazia aquilo por conta da dedetização que estava em andamento na casa em que moram ela e a gatinha. Explicou também que “a pessoa é alérgica a gatos e mesmo assim tem gatos”, o que pareceu colocar abaixo (ou ao menos em xeque) o cheiro de razão que havia primeira justificativa. Mas loucura é loucura, a gente não está aqui (e muito menos nos bares) para apontar a cura para ninguém. A gente só espera que os bichos, na hora do passeio, estejam devidamente preparados: com máscaras e, no caso dos cachorros, com coleira e se pá focinheira.

Porque marketing não resolve tudo. Ponto para o cidadão de bom senso, se é que ainda existe algum solto por aí. Aliás, marketing bom (ou ao menos divertido) muitas vezes é marketing desmontado. Os montadores de estratégias não deviam ter medo disso. Assim como muita gente não tem medo de sair sem máscara.

Aconteceu outro dia, num balcão aqui das Laranjeiras: o gerente de vendas de uma grande marca acompanhava o seu “vendedor” para enfrentar uma comerciante com fama de raivosa. Falando assim é quase como que falar de um cão ou um gato, né? Mas vivemos uma época em que muita gente tem mesmo mais “paciência” com bicho do que com gente. Aqui nesta página, não deixamos de acreditar na coleção de motivos de ninguém. Chegaram na lojinha e disseram, quer dizer, disse o gerente: “Senhora, esta cerveja não pode custar menos do que aquela…” Ao que a dona olhou por cima dos óculos e num momento de rara calma respondeu que “Pode, sim, porque aquela outra é mais popular, todo mundo quer, e aquele pessoal lá quando diz que vai entregar, entrega mesmo. Os pedidos que faço a vocês vêm sempre faltanto alguma coisa…”

O gerente e seu quase-cão saíram algo enfurecidos/cabisbaixos. A senhora foi quase aplaudida pela simplicidade e firmeza com que enfrentou a situação. Ela não precisa de bichos de estimação. É ela mesmo quem diz isso. Precisa apenas de marqueteiros que não se metam onde não devem. E que cumpram o que prometem. Ponto para as vendedoras deste naipe, enquanto ainda estão soltas por aí.

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Cruzamentos

É engraçado ler o que pensam algumas pessoas sobre as estradas, essa história de que elas afastam e ao mesmo tempo aproximam. Quase dá vontade de rir, mas é um riso nervoso, vale dizer, já que tanto é possível considerar o caminho como tudo e ao mesmo tempo como nada. Tá bom, tá bom, vamos controlar o raul-seixismo, hoje. Mas, sim… Tem que passar por aí para concluir que, no fim das contas, não, nenhuma destas duas extremidades conta. Segure a onda. Sem cara de desprezo, ok? O que conta, então? Ah, acho que vamos demorar um pouco mais para saber. Se é que vamos chegar sequer perto. Um amigo acaba de dizer, agora, agora mesmo, que ontem para variar estava nesta avaliação do “todo”, numa daquelas tardes em que a gente joga xadrez com a gente mesmo, e somos nós contra a Morte, e acabou conseguindo fazer um zinão. O detalhe é que isso acabou se desenrolando num mergulho de 15 anos, porque ele foi até o início do século para garimpar as imagens com que trabalhou para apertar o botão da descarga de poesias. O botão de descarga de poesias é um recurso criado por esse amigo para libertar uma série de coisas escritas que ficam travadas em folhas de rascunho que quase que invariavelmente se perdem na casa que ele tem fora da cidade. E quando pinta esse papo de “fora da cidade” fica fácil voltar a pensar nas pessoas que falam sobre as estradas, as ligações, os passados, os presentes, os futuros que nunca foram tão incertos. Ah, tá, você não é boba nem nada, não chegou a falar dos futuros, conseguiu cuidar/escapar disso, deve ser o caso de agradecer ao ventinho da estrada, aquele que entra pela janela do carro, quando a gente alcança uma velocidade boa. Não que seja preciso um bagulho de quatro rodas e motor para aproveitar um ventinho: o amigo de fora da cidade consegue isso de bicicleta e às vezes sem sair do próprio quintal, quando ele leva para lá uma mesa portátil, canetas, pincéis e tintas vagabundas e, naquele caô de passados recheados de lembranças, acaba fazendo um zine. Tudo não passa de desculpa para revisitar o Centro e lamentar o fim de um monte de papelarias. As estradas, os ventos, os zines, os passados… são todos detalhes e costuras entre pessoas que nunca se conheceram direito, beberam menos do que desejaram, se abraçaram beeem menos do que mereciam, cozinharam demoradamente questões que nunca ficaram macias a ponto de serem digeridas adequadamente. E se até hoje não estão prontas para serem engolidas, estas questões, haja dente, haja maxilar, haja paciência, haja pandemia, haja exercício de alongamento, porque isso uma hora vai ter que acontecer. Haja estômago. E quando chegar esta hora, a dos acontecimentos que estão ali sendo chocados, vai ser um danado de um presente. E pode ser que ninguém esteja devidamente preparado para isso. E tudo bem se não estiver, porque isso é assim mesmo: a gente nunca está cem por centro para aguentar os duzentos por centro que desde sempre ameaçam desabar sobre a nossa cabeça. Em dias nublados, isso pode chegar a trezentos por cento. Então, é melhor não reclamar e seguir na direção da Luz. É o mínimo que pode fazer um candidato a Louco. As estradas estão aí pra isso.

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Boteco connection

Dali, de trás do balcão, pelo que podia ver, nada tinha mudado muito. Havia o dinheiro mais curto. Quer dizer, quase não havia dinheiro. Quando aparecia, era o de plástico. Mas tirando isso estavam lá os bêbados, as bêbadas em menor número, crianças pedindo salgadinho, vendedores tentando emplacar uma mercadoria nova que não era assim tão nova e por isso era quase certo que não conseguiriam nada. Os incansáveis adestradores de amendoins, que jamais faltavam e impressionavam todo mundo com sua capacidade de encaixar aquele papelzinho com uma família de “bichinhos” no meio da mesa-selva de garrafas vazias e copos pela metade. O pessoal de esquerda e de direita se misturando, de novo, nos hábitos, quase como se não houvesse mesmo nenhuma diferença entre eles, como se esta distinção tivesse deixado de existir. Talvez fosse possível dizer que estavam todos mais tolerantes. Talvez. Tolerantes entre aspas, claro. Cansados, com certeza. Cerveja já não deixava ninguém relax.

O cara do bar ficava um pouco angustiado com aquela história de usar máscara e fechar mais cedo. Sentia que estava deixando crescer uma espécie de dívida com a Madrugada. Tinha a Madrugada, que ele sempre havia considerado uma amiga, carinhosa e silenciosa, mas agora a distância entre os dois crescia e o deixava angustiado. A distância era tipo capim: tomava espaço, preenchia gretas. Se havia “alguém” com quem não queria faltar com o respeito, era com a Dona Madrugada. Escolhia muito bem, ele, o que e quem merecia “respeito”. Mas vinha parecendo impossível negociar qualquer coisa, então, o que sobrava era a resignação. E a percepção de que aquela grande amiga estava como que indo embora. Seria capaz de ir e nunca mais voltar, a Madrugada? Temia que não fosse um afastamento temporário, como todo mundo apostava. Tentava não pensar nisso. Ver de longe a grande amiga era doloroso demais.

Houve quem dissesse que ele andava cuidando das cervejas com mais carinho. Zoaram a ponto de jurar que estavam mais geladas. Coisa que ofendia o dono do boteco. Porque ele sempre — sempre — fez questão de não dar mole de ser encaixado no perfil do porcalhão e de avarento. Fazia isso não economizando em boas geladeiras e organizando a pia do estabelecimento, oferecendo copos descartáveis para quem insistia em beber na calçada, usando papel branco — em vez do pardo e do rosado, que até eram mais baratos — para embrulhar as empadinhas que a dona Silvia entregava e que eram um sucesso. As noites de terças, quintas e sábados eram noites de empadinhas.

Dona Silvia tinha provocado uma tempestade porque “permitiu” que um fio de cabelo ocupasse um espaço bem indevido numa das empadinhas de camarão. “Porra, justo na de camarão.” Costumava comer, de vez em quando, uma ou outra empadinha. De camarão. Sempre de camarão. Só vendia coisas que era capaz de comer. E cervejas que era capaz de beber. E, numa dessas, encontrou o fio. Quase vomitou. E amaldiçoou dona Silvia, por conta daquele vacilo. Jurou que não compraria mais os produtos dela. Por “sorte”, tinha sido ele o contemplado com o fio de cabelo na iguaria. “Imagina se acontece com o seu Zeca, aquele… Ia todo mundo achar que sou porco… Não posso dar esse mole.”

Dona Silvia dependia dos salgadinhos para pagar as contas. E o bar do amigo da Madrugada era o melhor cliente. Na verdade, o único com regularidade. Ela fez cara de desesperada, disse que não sabia como aquilo tinha acontecido, explicou que usava touca justamente para evitar este tipo de chateação… Depois de ouvir as explicações, Tito, o amigo da Madrugada se chamava Tito, ficou se perguntando se o que tinha encontrado era mesmo cabelo ou se não poderia ter sido um fio dental que ficara preso nos dentes, da noite anterior. Tito usava fio dental. E isso era outro motivo de orgulho dele. Acabou aceitando o pedido de perdão de dona Silvia. O que fez com que ela se perguntasse: “Será que anos atrás, quando os dois se separaram, faltou empenho da parte dela?” Foi tomada pela sensação de que havia perdido seu grande amor por descuido.  E por falta de insistência.

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Decolagens

Vários assuntos que não emplacaram muito. Tretas-wanna-bes que se desdobram em pensamentos selvagens, paulo-coelhamente falando, e se revelam verdadeiros tiros n’água, conforme os parágrafos se passam. Pode ser o caso de colocar em prática, ou pelo menos ensaiar, um coisa que o Lúcio Medeiros, da Casa de Ferreiro achou boa ideia: um texto-proposta-de-pauta. Na verdade, o que o LM achou bom foi um grupo de WApp que nas brigas gere conteúdo pra um zine. Mas é quase a mesma coisa.

1. Pode ser que exista mesmo uma “estética da maldade”. Simplificando muito, você vasculha vilões de desenhos animados antigos, esbarra nos Irmãos Bacalhau, assistentes do Tião Gavião no bom e velho “Os apuros de Penélope”, e aqueles narigões ali… de alguma maneira criam uma expressão que lembra o Gru do (bem mais recente) “Meu malvado favorito”. Isso sem falar no Sr. Burns, de “Os Simpsons”. Ah, e quando bigodinhos se encaixam direitinho perto dos focinhos dos fascistas, parecemos estar diante de outra comprovação. Para combater isso, a Força parece às vezes ser a saída. “A Força?”, pergunta/desdenha um amigo. “Aquela coisa Jedi…”, parece ser uma resposta rápida e bem adequada, pra ninguém ficar achando que é briga de turma desta vizinhança contra aquela outra. A fé numa coisa criada/chupada pelo George Lucas pode não dar em nada. Mas fé é fé, Força é Força, e aqui nesta bolha está todo mundo muito mais pra dar uma moral pro Darth Vader do que pro Bispo Macedo. Amigos existem pra te zoar e a zoação, quando é um despertador que vai te tirar MESMO da cama, aí, sim, tá valendo. A batalha decisiva está acontecendo neste instante.

2. Pra relaxar, não vai dar pra ouvir o álbum novo do Thurston Moore, no formato vinil, agora; por causa do preço. Também não vai ser o caso de ler logo o livro novo da ex-dele, a Kim Gordon, recém-lançado na gringa. Será aquilo mesmo que está lá na Amazon, $ 259,68? Ah, tá, deve ser por causa da capa dura. Mal sabem eles que estamos todos duros aqui neste lado da Linha do Equador. Voltando à maldade e suas carinhas às vezes narigudas, cabe a gente ficar imaginando como s(er)ão os cornos do mandachuva de lá da Amazon. Não vamos gastar Google com isso, camos apenas imaginar.

3. Nestes dias de pandemia, a máscara, que pelo que se vê nas ruas foi uma moda que ainda não colou muito, escapou fácil de possíveis acusações de enfeiamento. Ela não piora mané nenhum. Pelo contrário: esconde o narigão dos vilões, cria uma barreira para bafos desagradáveis e… aí, pra quem já é adulto, oferece a possibilidade de revelar (e logo depois, esconder, de novo) um sorriso. Funciona quase como uma piscada de olho. Experimente. Sorria, por baixo da máscara, e se você fizer isso bem feitinho os olhos entregarão já um pouco do que está acontecendo. Mas (longe de aglomerações, por favor, tá?) experimente manter o sorriso, afastar muito rapidamente a máscara e depois colocá-la de volta. Funciona muito bem.

4. Assim como tem seca-pimenteira, podia ter seca-vírus, né? Seria muito mais útil e bem-vindo, nos dias de hoje. Nos dias de hoje, na verdade, pela onda que está se formando, seria “bem-vinde”. Imagina aquela pessoa que você encontra na esquina e, mesmo sem tirar da cara a proteção de pano, te deixa zerado, ou zerade, no bom sentido, o sentido sem-Covid. Inveja em tempos internéticos: como lidar com isso? Telefonemas em tempos internéticos: como lidar com isso?

5. Uma frase como “Aviões decolam contra o vento” é mesmo capaz de ajudar alguém a encarar uma quinta-feira que tem tudo para ser desastrosa?

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Seja pvc

Mais uma daquelas cenas em que as pessoas se encontram, demonstram pra começar algum entusiasmo e vão invariavelmente murchando abrigadas/protegidas dentro de suas máscaras e amarras pandêmicas. A estas, uma boa dose de Bruce Lee! O cara que já se foi mas em vídeos nos explica que a água deve/pode tornar-se a garrafa. E este espaço todo que anda ficando entre as pessoas, este void/vazio que parece ser impossível de preencher, hoje em dia, como a gente vai resolver isso, depois da vacina? Como, Bruce? De onde você estiver, mande uma resposta ou um sinal. Será esta a grande transformação pela qual vai passar a classe média, a tomada de consciência a respeito do vazio que mais do que nunca HÁ entre as pessoas?

Claro que não, né, porque esperar que o classe-mediano-mediano experimente um insight qualquer, mesmo dos pequenininhos, e perceba seu lugar no mundo, antes ou depois da pandemia, tanto faz, é esperar demais. Está aí, o novo grande ensinamento pandêmico é este, a grande queda da ficha é: “O idiota classe-mediano não vai aprender nada mesmo, porque ele não veio ao mundo para aprender. Ele bebe uma cachaça e fala besteira com o peito estufado. E só.” Quer dizer, aprende, sim, uma ou outra música de torcida, um ou outro passinho de dança, e o estrangulamento básico — porque não basta alimentar-se bem, é preciso praticar um esporte maneiro para conseguir encarar este mundão de meu Deus.

É justamente do vazio que falava o cozinheiro desempregado, ali na mesa ao lado. Ele acredita que “os restaurantes vão precisar se reinventar”. E depois de declarar de peito também projetado pra frente suas crenças básicas, aos quase-aglomerados tasqueiros em derredor, ele pode ter deixado muita gente em dúvida sobre quantos vídeos no YT precisou ver para chegar a esta conclusão. A pergunta seguinte também é básica para os dias de hoje: quando ele vai começar o seu próprio canal naquela rede? É mais fácil ser showman do que fazer batatas fritas decentes? Há quem acredite que sim. O que será que Bruce, lá de onde ele está, tem a dizer sobre essa dicotomia?

Por falar em batata frita, o segredo para muitos candidatos à fama parece ser este: transformar-se numa espécie de salgadinho. E na Grande Lanchonete Universal do Reino do Entretenimento seguir se movimentando para que as pessoas babem de vontade de morder algo todas as vezes que te percebem na tela. Simples assim. Vale dizer que por trás de uma batata-frita-style muitas vezes há técnicas surpreendentes. No próprio YT, você vai encontrar receitas que dizem que o segredo é fritar duas vezes. Há muitos segredos por trás de uma batata. Imaginem o que nos escondem os pastéis, hein!?

Está aí uma instituição que perigou sumir do mapa, ou pelo menos das feiras, nestes tempos de Covid. Foi estranho ver rolos e mais rolos de plástico finíssimo envolvendo as barracas que servem caldos de cana, pastéis e hoje em dia também quibes e bolinhos de bacalhau. Agora, é estranho testemunhar que aquela barreira já foi dispensada. De repente, é isso, hein… Lições da pandemia… É com filme de pvc que vamos “amenizar” o danado do vazio. O que Bruce Lee diria sobre isso?

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Pediu, levou

Tem uma música d’O Rappa, uma daquelas antigas, que fala em “tapa na cara”. Logo no início, numa “locução” do saudoso Marcelo Yuca: “Tapa na cara pra mostrar quem é que manda…” O tabefe, como aponta a letra, sempre foi (tido como) uma verdadeira instituição nacional. Talvez até mundial, né? É possível que a bofetada tenha perdido espaço — na preferência de agentes da lei — para o “estrangulamento”. Teve o “I can’t breathe”, do falecido George Floyd, lembra? E o BJJ parece ter se tornado tão popular quanto a Capoeira, como produto de exportação. Mas, de volta aos sopapos: eles ainda têm seu lugar no imaginário de grande fatia do “público em geral” e, neste fim de semana, bem no dia de Cosme e Damião, o Alexandre Coutinho, vizinho aqui da área, experimentou uma variante que parecia andar, esta, sim, meio em “desuso”: o “tapa sem mão”. Vem só com o verbo, acompanhado no máximo de uma carão, mas quando bem aplicado faz as testemunhas jurarem que houve um “estalo”. Machuca.

A gente diz “Alexandre Coutinho” porque o Xande, como é conhecido por cachaceiros e maconheiros da área, tem essa mania, de se apresentar usando  nome e sobrenome, muitas vezes colocando em seguida a mão no bolso da camisa abotoada para tirar um cartão. Coisa de advogado, dirão alguns. Coisa de homem branco, classe mediano, dirão as feministas. Aliás, foram — separadamente — duas, digamos, feminazis as responsáveis por deixar o Xande de rosto vermelho-amargo, bem no dia de distribuir doces.

Pode-se dizer que o Xande, com aquela camisa para dentro da calça, e de sapatos bem engraxados, é um classe-mediano gentil. Não por conta do figurino. Ele diz “alô” para as senhorinhas; sorri ao aceitar o amendoim dos ambulantes e tira uma onda de do-povo ao negociar o preço para comprar três pacotinhos; sua na pelada e se orgulha de, no vestiário, interagir com outros classe-medianos que considera menos esclarecidos: executivos de corretoras, ex-jogadores de futebol, eleitores do coisa-ruim. “Eu quero falar com essa gente, quero mostrar a eles que fizeram uma opção errada”, diz sempre que passa do quinto chope, como que querendo mostrar ao mundo que não é um tiozinho careta.

Xande tem aquela mania de perguntar aos garçons quais são seus nomes, para “encurtar a distância”. E estende esta prática às outras rápidas relações que às vezes se estabelecem nos balcões de botecos das Laranjeiras. Numa dessas, quando uma moça estava pagando a conta, surgiu no ambiente um comentário sobre o Covid. Ela emendou uma frase. Xande, outra. Ela prosseguiu e o cara considerou que poderia esticar a prosa, querendo saber o nome… Esperava descobrir além disso o sobrenome, o que também pode ser coisa de advogado, e, assim, talvez identificasse a integrante de uma família velha conhecida da região. Nem era paquera, não.

A resposta que veio provocou no ambiente um silêncio de dois segundos: “Pra que quer saber meu nome? Não tem essa de nome, não…” E o engomadinho parecia um tomate, de tão vermelho. O segundo episódio envolveu duas mulheres, sendo que o assunto já não era o vírus. Elas entraram no bar e uma anunciou que a outra estava passando mal e, depois disso, pediu uma água tônica e um chope.

A tônica era para a que não se sentia bem. E foi sobre esta que Xande inquiriu: “Quem é ela?” Não houve resposta. O advogado estava mais lento, por causa da quantidade de chopes que já lhe preenchiam a alma. E aquele hiato pareceu uma eternidade para os outros ocupantes do balcão, sendo que alguns já deviam imaginar que haveria continuação. “Quem é ela?”, insistiu, olhando então mais diretamente para a que esperava pelo chope. Parecia acreditar numa certa força de intimidação. A tônica já tinha chegado, porque pessoas que estão passando mal têm preferência, né? “Quem é ela?” E veio o segundo tapa daquela tarde: “É minha mulher, porra, o que que tem?” A “agressora” usou de tanta força que ficou vermelha, mas, claro, a cor que ela alcançou não era nem de perto tão intensa quanto a que tomou de novo as bochechas de Xande. Pediu, levou.

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Bebemorar

A contemporaneidade levou a sério essa coisa baumaniana, a dos amores líquidos. Suspiremos todos, diante dessa vontade/capacidade classe-mediana de se adequar a certas teorias. Não dava era para imaginar que isso fosse assim, tão longe, né? Primeiro, o troço romântico perdeu a possibilidade de se desdobrar em longo prazo: não é pra durar. Beleza, entre aspas. A inteligentsia acha a solidão muito cool, seja na literatura, nos quadrinhos, no cinema. Descartável pouco é bobagem, vamos escrotizar com os oceanos, inclusive/principalmente o das (nossas) emoções. E, agora, neste dias em que o bom e velho “te pago um chope” tornou-se uma impossibilidade nas vidas de tanta gente, chegou a hora em que demonstrar preocupação e carinho se faz com uma frase do tipo “passa um álcool em gel, hein, quando chegar em casa…” Um novo papel para o álcool, um golaço pentecostal.

Os amores não estão líquidos. Estão liquidificados. O bagulho é pós-Bauman, além-Zygmunt; sentimentos batidos com abacate mais leite desnatado mais mel e mais aveia. Assim, fica verde. O vermelho perdeu a vez. Talvez em breve proíbam qualquer coisa com beterraba. “Comida subversiva!” O pessoal que se sente vítima da “cristofobia” denunciada pela presidência já deve acreditar que se trata de alimento de quem come criancinha. No século passado, você lembra, mastigar e engolir bebês, pré-adolescentes etc era sinônimo de comunismo. Ainda não se sabe como se diz isso, agora, no aperfeiçoamento pentecostal. Se alguém aí tiver acesso à cartilha deles, ou, melhor, se fizer parte de algum grupo de WApp em que haja um pastor, pode contar para a gente.

Tem a pandemia e a fome insaciável por dinheiro. Os amores se liquidificaram, se pá, porque o que importa é liquidez. Há quem se recuse a acreditar ou topar uma vacina, ainda mais se ela vier da China. E há quem nunca vai entender a devastação que pode causar um olho-grande. De uns dias para cá, o que alguns reaças mais esclarecidos pareciam ter escolhido como preocupação máxima era o direito deles de fazer piadas. Você aí que achou que fosse o amor, líquido ou sólido como outrora, pode tirar da cara a expressão de surpresa. Já não cabe mais fingir susto. Querer rir faz muito sentido: se você é bem alimentado, OK a gargalhada ser mesmo uma preocupação. Tanto faz se for em cima de uma minoria, de um bicho ou uma bicha ameaçadx de extinção. Rir era o melhor remédio. Rir agora é mais importante do que amar. Rir é o novo privilégio, o novo black. Amor é coisa de um passado “sólido” e remoto.

Agora, que só se permite ficar na calçada bebendo até as 22h, parece haver mais deixa(s) para um acordo mais amoroso entre diferentes defensores da “liberdade”. Que na verdade não passam de defensores do chope e da consequente gargalhada. Mas já é alguma coisa. Será que o Bauman conseguiria explicar isso ou é carioquice-terceiro-mundista demais para a Filosofia? Um viva para o líquido e a liquidez que unem a arrogância academicista e a truculência verde-e-amarela. Alguma coisa a gente tem que bebemorar.