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Matando a vontade de fazer reviews

Quem passou pelos anos 80 flertando com ou fazendo zines babou/babava diante de belezinhas como “Flipside” e “Factsheet Five”. Gringos e gigantes, eles faziam o zineiro deste lado do hemisfério sonhar com uma cena semelhante ou ao menos parecida. E se tinha uma coisa que provocava mais baba eram os reviews publicados nestas bíblias alternativas. O “FF” era na verdade basicamente um apanhado de resenhas; uma referência sensacional, além de uma promessa: se você mandasse para lá um envelope selado para resposta, receberia em casa um pacote com algumas das publicações resenhadas por eles. Era também assim que faziam a informação circular. Com a rede mundial de computadores, esse troço de fazer resenha de publicação alternativa perdeu um pouco a força. Aquela conversinha de todo mundo ter acesso “fácil” a tudo. Os tempos mudaram e alguns dos zines mais maneiros de hoje em dia têm a pegada da “arte”. Duas pérolas aqui da terrinha que merecem registro são o “5inco”, do Alberto Pereira, e “Brasil”, de Rafael Sica.

O do Sica é um livrinho feito em serigrafia e encadernado artesanalmente pela Caderno Listrado. Vem com uma serigrafiazinha destacada, assinada pelo autor. “Brasil” tem desenhado na lombada um palito de fósforo aceso que parece até premonição… Bate aí na madeira. “Todo mato que está impresso neste miolo foi desenhado por Rafael Sica, durante a pandemia de 2020, enquanto a boiada passava”, diz um cartãozinho que acompanha o pacote. Para quem está minimamente atento ao que se produz de quadrinhos independentes nesta terra, estamos falando de uma edição obrigatória. O conteúdo cheira a curta-metragem, ou é uma HQ-relâmpago. Dê o nome que quiser. A nota é DEZ.

O “5inco”, feito por Alberto Pereira, é um esquema mais humilde/alternativo, xerocado, incluindo poesia, colagens, desenhos. E por isso parece muito com bastante do que se fazia por aqui 30 anos atrás. Pereira é um dos nomes em alta no ranking da produção de lambes e adesivos. Por falar em adesivos, neste pacote vieram dois e não precisa mais do que isso para que nasça a vontade de colecionar material produzido por este cara. Os versos são leminskiantes e só isso já basta para que se queira ler mais. Entre em contato pelo http://albertopereira.com.br

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Boteco connection #3 — Sapatinho de cristal e cara de pau

A pandemia criou uma nova categoria: o intelectual de calçada. Você pode chamar de uma evolução do intelectual de boteco. A diferença entre os dois é que os do novo grupo se preocupam mais com a saúde. Ou têm mais medo de morrer. O que (para os menos esclarecidos, pelo menos) pode dar no mesmo. Ambos ficam com aquele caô de chamar o garçom pelo nome, ensaiando uma intimidade/gentileza que não passa do terceiro copo ou do primeiro “não” que o trabalhador for obrigado a dizer. O que é que ia mudar mesmo, depois do Covid, hein? Ah, a maneira como as pessoas veem o mundo, a vida, quem está do lado…

Seguimos esperando. E bebendo. Porque cerveja é coisa sagrada, para esquerdopatas e terraplanistas. Disso, você já sabe. É o que obriga os dois a acreditarem na água, mesmo que no fim da rodada cada um dê um peso para aquele “produto”. Mas nestes dias de pré-derrubada do atual prefeito do Rio (com o caminho aberto pela queda do Trump), faz mais sentido a gente falar naquilo que — pra te influenciar — colocam no teu WApp (e não na piada mais velha, sobre o que puseram na água) e não no encanamento. Capivarinha esperta não deveria beber qualquer água ou acreditar em qualquer vídeo. Mas não podemos esperar muito de capivarinhas.

Pois então: tava em algumas bolhas, no WApp, a historinha de uma Patrícia que teria pedido ao menino do boteco que cruzasse uma praça inteira para, como um favor, comprar para ela um maço de cigarros. A primeira resposta dele, depois da cara de descrença diante do pedido, foi o “não”. A cliente seguiu tentando. Explicou que estava usando saltos muito altos e que precisava fazer aquilo porque o calçado tinha sido presente da avó. “Tenho que provar para a minha avó que usei o presente dela”, declarou, sorrindo. A cara do garçom continuou sendo de descrença. Faltam palavras para descrever a cara de quem estava em volta, alguém que provavelmente frequentou alguma aula de teatro.

Conhecida num passado não muito distante como destruidora de superego, a cerveja pós-pandemia poderá ajudar em duas coisas: combustível para juntar os cacos dos muros que forem quebrados. E, o que é mais provável, a quebrar barreiras que durante estes dias difíceis acabaram se solidificando ainda mais. Como sempre, haja goró.

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@monteiro4852 #23

Tchau, tchau.

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Pobres elétrons

Hoje em dia, não se fala em rebobinar. Mas para sugerir uma rápida volta aos anos 80, talvez até valha apelar pra um vocábulo tão das antigas. Era uma época em que, num certo colégio em Marechal Hermes, subúrbio carioca, havia o temido trote. O moleque que entrava lá ficava careca, era obrigado a matar formigas no grito, medir o campo de futebol com um palitinho. O movimento estudantil ainda organizava congressos e havia quem acreditasse numa certa revolução. O clima era de abertura. Os pais mais precavidos/desconfiados avisavam aos filhos que tomassem cuidado com o que diziam no colégio. Mas a perspectiva, de um modo geral, e ainda mais se compararmos com os dias de hoje, era favorável. Ah, o trote. É possível entender melhor o trote lendo “O calvário dos carecas”, do Glauco Mattoso.

No livro, o sado-maso-poeta/escriba mergulhava fundo para entender/explicar aquela “tradição”. Era possível dizer que se tratava de uma tradição. Até os professores davam uma zoada nos alunos. Aquele colégio de Marechal Hermes, por exemplo, oferecia cursos técnicos. Entre eles, o de eletrônica. Foi para muitos uma chance aprender que os chuveiros elétricos têm “resistor” e não “resistência”, como todo (o resto do) mundo acreditava. Os professores deste curso davam aos novatos uma lista de material, logo na primeira aula. Aquelas coisas poderiam ser facilmente achadas nas lojas de componentes eletrônicos que pipocavam no subúrbio e no centro do Rio. Menos uma parada: o tubinho de elétrons livres.

Havia CDFs, claro, eles estão em todas as gerações, e alguns pareciam saber que não seria possível comprar um “tubo de elétrons livres”. Mas a maioria sofria percorrendo lojas para voltar à escola com a lista completa, com tudo que diziam ser necessário para as primeiras experiências. Sim, havia laboratórios e eles funcionavam: o projeto de destruição da educação pública ainda não estava no estágio atual. As relações, a despeito das maldades que os veteranos exercitavam com os calouros, também pareciam ser melhores. Bota aí uma dose de saudosismo, claro. Mas não esqueça que nem se falava em internet. Em muitas lojas, os vendedores diziam que “acabou isso aí, deve chegar depois…”

Já existia polarização. Porque polarização é tipo CDF: parece que sempre existiu. Mas — e aí o saudosismo já não tem tanto peso na conclusão — mas aparentemente existia também mais espaço para discutir e elaborar as coisas. Pode ter a ver com a velocidade com que tudo acontece, hoje em dia. Mas pode ser que a explicação vá além disso. Aqui, não há a pretensão de explicar nada. Só há mesmo um certo lamento. Depois que você aprende um pouco sobre elétrons livres e “entende” a polarização sob a luz da Física, dá até pra dizer que com algum tutano dá para sacar a polarização no mundo de uma maneira mais, digamos, consistente.

Para muita gente, ter tutano hoje em dia é falar em “empreendedorismo”. Há quem apele para a “inteligência emocional” para relativizar a formação de laços entre monstros e monstros-ainda-mais-monstruosos. Já não podemos encontrar tantas lojas de componentes eletrônicos, apesar de até aparelhos como máquinas de lavar, atualmente, serem controlados por placas de circuito integrado. Isso sem falar nos toca-discos, que seguem em alta. Os elétrons que antes eram livres parecem, coitados, estar hoje presos e a serviço de circuitos que cheiram muito mal. Devem ser vendidos por algum site, bem baratinhos, com entrega em no máximo duas semanas, vindo diretamente do outro lado do mundo. O que prova que, mesmo velhas, frases de ordem podem servir para alguma coisa. Liberdade para os elétrons!

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@monteiro4852 #22

Vai cair pro Centro, algum dia dessa semana, bróder?

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Boteco connection #2 — Cortando a asa do pavão

A louca dos gatos. O louco dos cães. Dois personagens que, entra pandemia, sai pandemia, continuam aí firmes e fortes. Às vezes, sem máscara, desafiam as “leis”, como se sua relação com os bichos garantisse tudo. Além de afeto-anti-estresse, eles parecem ter superpoderes que lhes permitem descartar(/desdenhar d)o paninho na cara. Já tem até loja de animais de estimação prometendo, além do pet, uma dose extra de imunidade/saúde/anticorpos para seus clientes. Se não tem, anota aí, vai ter. Afinal, se tem uma coisa que a doença não colocou abaixo é essa história de que “marketing é tudo”. Pra algumas pessoas, não vai ser atraente, porque ficam mais “atraentes” de máscara mesmo.

Outro dia, uma LDL, tipo numa “crise”, foi ao bar levando na gaiolinha o felino de estimação. Disse que fazia aquilo por conta da dedetização que estava em andamento na casa em que moram ela e a gatinha. Explicou também que “a pessoa é alérgica a gatos e mesmo assim tem gatos”, o que pareceu colocar abaixo (ou ao menos em xeque) o cheiro de razão que havia primeira justificativa. Mas loucura é loucura, a gente não está aqui (e muito menos nos bares) para apontar a cura para ninguém. A gente só espera que os bichos, na hora do passeio, estejam devidamente preparados: com máscaras e, no caso dos cachorros, com coleira e se pá focinheira.

Porque marketing não resolve tudo. Ponto para o cidadão de bom senso, se é que ainda existe algum solto por aí. Aliás, marketing bom (ou ao menos divertido) muitas vezes é marketing desmontado. Os montadores de estratégias não deviam ter medo disso. Assim como muita gente não tem medo de sair sem máscara.

Aconteceu outro dia, num balcão aqui das Laranjeiras: o gerente de vendas de uma grande marca acompanhava o seu “vendedor” para enfrentar uma comerciante com fama de raivosa. Falando assim é quase como que falar de um cão ou um gato, né? Mas vivemos uma época em que muita gente tem mesmo mais “paciência” com bicho do que com gente. Aqui nesta página, não deixamos de acreditar na coleção de motivos de ninguém. Chegaram na lojinha e disseram, quer dizer, disse o gerente: “Senhora, esta cerveja não pode custar menos do que aquela…” Ao que a dona olhou por cima dos óculos e num momento de rara calma respondeu que “Pode, sim, porque aquela outra é mais popular, todo mundo quer, e aquele pessoal lá quando diz que vai entregar, entrega mesmo. Os pedidos que faço a vocês vêm sempre faltanto alguma coisa…”

O gerente e seu quase-cão saíram algo enfurecidos/cabisbaixos. A senhora foi quase aplaudida pela simplicidade e firmeza com que enfrentou a situação. Ela não precisa de bichos de estimação. É ela mesmo quem diz isso. Precisa apenas de marqueteiros que não se metam onde não devem. E que cumpram o que prometem. Ponto para as vendedoras deste naipe, enquanto ainda estão soltas por aí.

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@monteiro4852 #21

Vai ter quem ache isso coisa de comunista. Será alguém com quem não dá para conversar sobre comunismo. Nem sobre futebol. Também não vai dar pra tomar uma cerveja com esta pessoa, nem tampouco comer um pastel de siri em sua companhia.

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Cruzamentos

É engraçado ler o que pensam algumas pessoas sobre as estradas, essa história de que elas afastam e ao mesmo tempo aproximam. Quase dá vontade de rir, mas é um riso nervoso, vale dizer, já que tanto é possível considerar o caminho como tudo e ao mesmo tempo como nada. Tá bom, tá bom, vamos controlar o raul-seixismo, hoje. Mas, sim… Tem que passar por aí para concluir que, no fim das contas, não, nenhuma destas duas extremidades conta. Segure a onda. Sem cara de desprezo, ok? O que conta, então? Ah, acho que vamos demorar um pouco mais para saber. Se é que vamos chegar sequer perto. Um amigo acaba de dizer, agora, agora mesmo, que ontem para variar estava nesta avaliação do “todo”, numa daquelas tardes em que a gente joga xadrez com a gente mesmo, e somos nós contra a Morte, e acabou conseguindo fazer um zinão. O detalhe é que isso acabou se desenrolando num mergulho de 15 anos, porque ele foi até o início do século para garimpar as imagens com que trabalhou para apertar o botão da descarga de poesias. O botão de descarga de poesias é um recurso criado por esse amigo para libertar uma série de coisas escritas que ficam travadas em folhas de rascunho que quase que invariavelmente se perdem na casa que ele tem fora da cidade. E quando pinta esse papo de “fora da cidade” fica fácil voltar a pensar nas pessoas que falam sobre as estradas, as ligações, os passados, os presentes, os futuros que nunca foram tão incertos. Ah, tá, você não é boba nem nada, não chegou a falar dos futuros, conseguiu cuidar/escapar disso, deve ser o caso de agradecer ao ventinho da estrada, aquele que entra pela janela do carro, quando a gente alcança uma velocidade boa. Não que seja preciso um bagulho de quatro rodas e motor para aproveitar um ventinho: o amigo de fora da cidade consegue isso de bicicleta e às vezes sem sair do próprio quintal, quando ele leva para lá uma mesa portátil, canetas, pincéis e tintas vagabundas e, naquele caô de passados recheados de lembranças, acaba fazendo um zine. Tudo não passa de desculpa para revisitar o Centro e lamentar o fim de um monte de papelarias. As estradas, os ventos, os zines, os passados… são todos detalhes e costuras entre pessoas que nunca se conheceram direito, beberam menos do que desejaram, se abraçaram beeem menos do que mereciam, cozinharam demoradamente questões que nunca ficaram macias a ponto de serem digeridas adequadamente. E se até hoje não estão prontas para serem engolidas, estas questões, haja dente, haja maxilar, haja paciência, haja pandemia, haja exercício de alongamento, porque isso uma hora vai ter que acontecer. Haja estômago. E quando chegar esta hora, a dos acontecimentos que estão ali sendo chocados, vai ser um danado de um presente. E pode ser que ninguém esteja devidamente preparado para isso. E tudo bem se não estiver, porque isso é assim mesmo: a gente nunca está cem por centro para aguentar os duzentos por centro que desde sempre ameaçam desabar sobre a nossa cabeça. Em dias nublados, isso pode chegar a trezentos por cento. Então, é melhor não reclamar e seguir na direção da Luz. É o mínimo que pode fazer um candidato a Louco. As estradas estão aí pra isso.

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@monteiro4852 #20

Ontem, era Santa Cruz Sem Internet Da Serra e por isso AM não conseguiu mandar o desenho. Hoje, quando o negócio chegou, quase foi o caso de pensar duas vezes. O que será que a falta de conexão provocou no nosso grande amigo? Percorrer as linhas que ele escreveu no dia do incêndio da catedral faz a gente se perguntar por que rolou essa viagem no tempo. AM é um cara que provoca interrogações e, quase que invariavelmente, dá respostas que na verdade são outras… outras… outras interrogações. Se um colaborador não for ranzinza, um zine mesmo que na www perde a sua essência ranzinza. E parece que ninguém tá aqui pra facilitar nada. Pra se divertir, talvez. Pra facilitar, sei lá, quase dá pra apostar que não. AM sendo AM.

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Boteco connection

Dali, de trás do balcão, pelo que podia ver, nada tinha mudado muito. Havia o dinheiro mais curto. Quer dizer, quase não havia dinheiro. Quando aparecia, era o de plástico. Mas tirando isso estavam lá os bêbados, as bêbadas em menor número, crianças pedindo salgadinho, vendedores tentando emplacar uma mercadoria nova que não era assim tão nova e por isso era quase certo que não conseguiriam nada. Os incansáveis adestradores de amendoins, que jamais faltavam e impressionavam todo mundo com sua capacidade de encaixar aquele papelzinho com uma família de “bichinhos” no meio da mesa-selva de garrafas vazias e copos pela metade. O pessoal de esquerda e de direita se misturando, de novo, nos hábitos, quase como se não houvesse mesmo nenhuma diferença entre eles, como se esta distinção tivesse deixado de existir. Talvez fosse possível dizer que estavam todos mais tolerantes. Talvez. Tolerantes entre aspas, claro. Cansados, com certeza. Cerveja já não deixava ninguém relax.

O cara do bar ficava um pouco angustiado com aquela história de usar máscara e fechar mais cedo. Sentia que estava deixando crescer uma espécie de dívida com a Madrugada. Tinha a Madrugada, que ele sempre havia considerado uma amiga, carinhosa e silenciosa, mas agora a distância entre os dois crescia e o deixava angustiado. A distância era tipo capim: tomava espaço, preenchia gretas. Se havia “alguém” com quem não queria faltar com o respeito, era com a Dona Madrugada. Escolhia muito bem, ele, o que e quem merecia “respeito”. Mas vinha parecendo impossível negociar qualquer coisa, então, o que sobrava era a resignação. E a percepção de que aquela grande amiga estava como que indo embora. Seria capaz de ir e nunca mais voltar, a Madrugada? Temia que não fosse um afastamento temporário, como todo mundo apostava. Tentava não pensar nisso. Ver de longe a grande amiga era doloroso demais.

Houve quem dissesse que ele andava cuidando das cervejas com mais carinho. Zoaram a ponto de jurar que estavam mais geladas. Coisa que ofendia o dono do boteco. Porque ele sempre — sempre — fez questão de não dar mole de ser encaixado no perfil do porcalhão e de avarento. Fazia isso não economizando em boas geladeiras e organizando a pia do estabelecimento, oferecendo copos descartáveis para quem insistia em beber na calçada, usando papel branco — em vez do pardo e do rosado, que até eram mais baratos — para embrulhar as empadinhas que a dona Silvia entregava e que eram um sucesso. As noites de terças, quintas e sábados eram noites de empadinhas.

Dona Silvia tinha provocado uma tempestade porque “permitiu” que um fio de cabelo ocupasse um espaço bem indevido numa das empadinhas de camarão. “Porra, justo na de camarão.” Costumava comer, de vez em quando, uma ou outra empadinha. De camarão. Sempre de camarão. Só vendia coisas que era capaz de comer. E cervejas que era capaz de beber. E, numa dessas, encontrou o fio. Quase vomitou. E amaldiçoou dona Silvia, por conta daquele vacilo. Jurou que não compraria mais os produtos dela. Por “sorte”, tinha sido ele o contemplado com o fio de cabelo na iguaria. “Imagina se acontece com o seu Zeca, aquele… Ia todo mundo achar que sou porco… Não posso dar esse mole.”

Dona Silvia dependia dos salgadinhos para pagar as contas. E o bar do amigo da Madrugada era o melhor cliente. Na verdade, o único com regularidade. Ela fez cara de desesperada, disse que não sabia como aquilo tinha acontecido, explicou que usava touca justamente para evitar este tipo de chateação… Depois de ouvir as explicações, Tito, o amigo da Madrugada se chamava Tito, ficou se perguntando se o que tinha encontrado era mesmo cabelo ou se não poderia ter sido um fio dental que ficara preso nos dentes, da noite anterior. Tito usava fio dental. E isso era outro motivo de orgulho dele. Acabou aceitando o pedido de perdão de dona Silvia. O que fez com que ela se perguntasse: “Será que anos atrás, quando os dois se separaram, faltou empenho da parte dela?” Foi tomada pela sensação de que havia perdido seu grande amor por descuido.  E por falta de insistência.