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Boteco connection #6 — 80 anos e no jogo

O que pode melhorar um dia em que, até o início da tarde, tudo que o cara vendeu foram três garrafas de Spaten 600ml? Por onde andariam os biriteiros do bairro? É, crise é isso aí, compadre. No flow, surge um tiozinho declarando ter passado dos 80 anos. Figura nova na área, do tipo que fala pouco: “Cachaça.” Mantendo a crença na necessidade de confirmação que algumas situações trazem, surge do outro lado do balcão a pergunta: “Cachaça?” E a resposta, mantendo o estilo: “Barata.”

Já não era mais necessário confirmar muita coisa. Uma primeira resposta ruim quase sempre fazia nascer uma segunda pergunta que não raro beirava a antipatia: “Barata?” Aquilo que era adequar-se ao estilo do freguês. Puro marketing de boteco. Sem dar tempo para resposta: “Olha, tem essa aqui,” mostrava o cara do bar. O coroa apertava os olhos, depois de ajeitar o boné verde que não lhe caía bem na cabeça de cabelos ralos e cinzentos. Negociado o preço, ele pediu, além da dose, limão e açúcar. Beleza. Oitenta anos, caramba. As solicitações não parariam por aí. A vítima seguinte era o Tonto, que estava brincando de segurança. Segurança que bebe latinha de Império: está aí uma categoria em que não se pode confiar muito mas que, pelo menos, é de um modo geral simpática.

“Posso me sentar?”, inquiriu o senhor, sem dar pistas sobre até onde iria co’aquilo; mas já falando muito mais do que se passou a esperar dele naquele curtíssimo espaço de tempo. Cachaça barata é um troço que pode sair muito caro. “Melhor não”, respondeu Tonto, claramente temeroso. “Ah, o seu espírito não bateu com o meu”, começou então o Senhor Boné Verde, completando sem dar tempo para que o rapaz de bigode e amante da solitude se recuperasse: “Eu gostava de brigar. Você já matou alguém?” Era só a primeira cachaça, gente, e a coisa já estava neste nível. É bom ter cuidado com o que a gente sente/pede, porque o Universo está de olhos e ouvidos bem abertos. Queria um cliente? Toma um cliente.

Não era um tiozinho agressivo. Saiu da frente para os entregadores de Denker fazerem seu trabalho. Eram as garrafas de Ipa chegando, e, pelo adiantado da hora, não ficariam geladas para o forró que rolaria mais tarde, na praça, ali perto. De longe, não deu para entender muito o que respondeu o Tonto. Mas o tiozinho ocupou a segunda cadeira da mesa. Foi rápido. E foi de lá que ele pediu uma segunda dose. Já havia preocupação e medo no ar.

“Segunda dose? Como assim? O senhor pediu a primeira com desconto. Era pra ser só uma. A segunda vai ter que ser pelo preço normal. Quer mesmo?” O sorriso mais amarelo que se viu naquela calçada, naquela semana, confirmava que haveria uma nova branquinha-com-açúcar-e-limão. Deu pra entender o que ele cuspiu, antes de levantar: “O mau do urubu é achar que o boi tá morto.” Tonto mostrava-se até recuperado dos primeiros dois minutos de inevitável conversa com o forasteiro, mas aquela frase bateu mal e trouxe de novo preocupação para o ambiente.

Parecia tudo encerrado, com o papo de urubu. Cinco minutos? Menos de cinco minutos depois: “Agora, eu vou embora, mas quero mais uma”, pediu, mencionando o desconto dado na primeira dose e sublinhando que “aquilo sim é um valor justo”. “Espreme mais um limão aí. Bota açúcar nesse negócio, garoto”, provocou, talvez se escorando no efeito que o ensinamento sobre o comedor de carniça tinha despertado nas pessoas em volta. Era sensível, o velho; e estava atento aos humores. “Tá com limão, meu caro. E tá com açúcar”, ele ouviu. E ouviu também: “Estamos aqui pensando que hoje à noite na hora de fechar vai ser bom manter um olho no peixe e outro no gato, quer dizer, no urubu.” Histórias em bares às vezes se encerram de maneira abrupta.

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Minguante

Os balcões dão à gente a chance de ouvir muita coisa. Tem muita bobagem. Mas conte também com razoáveis lições de vida. E piadas. De todos os tipos, sendo que a maioria não é razoável, se é que se pode mesmo esperar isso de um chiste. Dava para dispensar as chatices tipo as do pessoal que reclama dos pedintes que “daqui a pouco vão ter máquina de cartão para tirar dinheiro nosso”. Dava também para não ter assim tantas baratas na calçada, porque, ao contrário dos balcões, elas rendem mais gritinhos histéricos do que ensinamentos. Além de quase invariavelmente piorarem o carma da rapaziada que se vale de pesados calçados na condução de esmagamentos atabalhoados e bem pouco cinematográficos.

“É, a gente brigou. É sempre assim, a senhora sabe”, choraminga a moça que, parecendo exausta,  desaba debruçada sobre uma mochila, duas sacolas de mercado e uma quarta bolsa que parece mais pesada do que todas as três primeiras juntas. Quase um acampamento. Ela reclama do marido, numa ladainha que pelo sorriso — debochado? desdenhoso? — a atendente parece reconhecer. E como que para eleger a noite como definitivamente apropriada para a piora dos carmas dos presentes, aquela-que-dá-cervejas-a-quem-pede-desde-que-pague-na-hora coloca uma pilha bem errada: estimula a falação da cliente sofredora. Sob os olhares desaprovadores de todos os outros presentes, que chegam a oito cabeças, porque é um balcão comprido, a reza se estende por uns bons 15 segundos. E, de repente, como acontece nos balcões, o pessoal conseguimos a liberdade, fugindo completamente daquele teaser de novela mexicana.

Nada contra as tramas televisivas daquela nacionalidade. Estão repletas de ensinamentos, assim sem aspas mesmo, e assim como os balcões. Quando acontece de os dois universos se misturarem, aí, olha, aí é um prêmio na loteria. Uma chance de lidar melhor com o desembrulhar do carma. Quer coisa melhor do que perceber o incômodo na voz de um intelectual cachaceiro? Ah, sim, o capítulo que estava em andamento: o beberrão seboso se incomoda com  os movimentos de um outro que, rapidamente, consegue embrenhar-se na prosa de duas moças. Elas, além de darem trela, dão sorrisos, o número do WApp, aceitam cervejas, cobrem de elogios a empadinha já famosa que toparam também como mimo e… E está mexicanizada, a novela do bar. Olhares dos quais escorrem ódios. Falas que desenterram problemáticas antigas. Espetáculos assim não são pra qualquer um. Quem ficou atento ao início mal pode esperar pelas próximas cenas. A noite naquela calçada úmida promete ser quente. O pico deve ficar árido.

Quem está sob a luz da lua, que naquela noite de dança dos agravamentos cármicos é por acaso minguante, tem a chance de perceber a Fiscalização se aproximando. Geral parece saber que é assim, com maiúsculas, que aquele pessoal uniformizado gosta de ser tratado. É quando há uma união, mesmo que rápida, entre o pessoal que acha que está enricando além da conta o dono do bar. Há temor, além de um inexplicável desejo de desafiar a Lei. Referem-se à Lei, assim, com maiúscula, mas com dúvida. E isso aumenta o desejo de pagar para ver. Ainda mais que quem vai pagar mais caro, no fim de tudo, é o proprietário do estabelecimento. Ele preferia que a “brincadeira” ficasse só na questão do carma. Mas nem sempre é assim.

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Boteco connection #5 — O (mau) cheiro da mudança

Pode não ser muito fácil, pelo menos não para a maioria, o sujeito parar e se perguntar o que mudou num determinado espaço de tempo. Ainda mais numa época em que a cada dois minutos tudo pode estar muito, muito diferente. E se a gente vê dificuldade neste questionamento, como esperar que haja chance — pelo menos para um ou outro maluco — de entender transformações que se construíram por, digamos, duas décadas? Fica difícil, no mínimo, por conta da quantidade de detalhes que podem ter se acumulado ao longo de um período assim tão grande. Né?

Porque, sim, é um período muito grande. Ou ainda é. Mesmo que haja esta velocidade toda, hoje em dia, e essa relativização incessante para qualquer assunto/questão. Tá: mesmo 20 anos atrás, tudo podia mudar em dois minutos. Mas talvez pouca coisa mudasse assim tão rápido. Ao contrário do que (pode) acontece(r) hoje. As mudanças são cada vez mais velozes e assustadoras talvez porque sejam fruto/desdobramento umas das outras. O mundo está pegando embalo. Onde isso vai parar? Isso vai parar? Desacelerar é possível/necessário? Mudança é um troço que se retroalimenta?

Por falar em necessidade, está rolando neste momento o 1.876.987° curso online que oferece a quem teme a fome a chance de entender o “mercado” e se reajustar/reorganizar para voltar a ganhar dinheiro logo agora, antes do fim da pandemia. Vai ser rápido. E pode fazer o pobre ainda resistente aceitar que os balcões de boteco mudaram. E que se, duas décadas atrás, ninguém sequer imaginava que existiria uma coisa chamada “grab’n’go”, isso hoje é uma realidade. Que pode mudar em dois minutos, claro. Mas é realidade…

Uma “prova” da capacidade que as coisas têm de mudar é este texto. Você até pode desdenhar: “Ah, é só uma provinha…” Mas, no início, mesmo sem que se soubesse para onde iria a prosa, não existia ainda nenhuma poeira que parecesse ser capaz de encaixá-lo na série Boteco Connection. Mas nada é garantido, os cursos online estão aí para reafirmar isso (e que tudo depende de planilhas, metas e organização). Pode ser que tudo mude ainda mais. Se vai ser possível entender, aí, são outros quinhentos. Ninguém disse que ia ser fácil.

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Segundo tempo

Teve sorte: conseguiu parar o carro bem em frente à casa do maluco. Deu uma ajeitada no banco, mexeu nos espelhos e só depois disso tudo mandou uma mensagem, para dizer que já estava lá. Tinha tempo. Enquanto escrevia, e graças aos ajustes que havia feito no assento, percebeu que em volta dava para contar três outros veículos brancos estacionados por perto. Era difícil manter a concentração para digitar frases; preferia mensagens de voz. Por um momento, sorriu, pensando que o amigo talvez tivesse dificuldade para encontrá-lo, quando descesse com o pen-drive. Estava ali para resgatar arquivos importantes, mas não havia mal nenhum em dar umas risadas vendo o Porco indeciso sobre que direção tomar.

Eles se tratavam assim. Um era o Porco. O outro, Animal. Morricone, Banhão, Cezinha, Rocky e Arrombado completavam o time. Ninguém era bom de futebol. Com o Arrombado, era um problema, porque era um apelido/termo que usavam também como tratamento de um modo geral e ainda para demonstrar “carinho”. Era comum ouvir coisas do tipo “E aí, arrombado?” ou “Eu te amo, arrombado”.  Eram manés carinhosos. Tinha de tudo: os que não acreditavam mais em Direita e Esquerda e os que sentiam saudade da época em que se ensaiava uma revolução qualquer. Com os apelidos, sentiam-se num universo tarantinesco. Percebiam-se adolescentes. Havia inclusive quem se sentisse mais “macho”, caso do Rocky, e por conta disso os amigos precisavam tomar conta dele quando o encontro era em algum boteco e bebiam demais.

“Para encontrar diversão, você precisa estar disposto a encontrar diversão.” Foi disso que o Arrombado lembrou quando o Porco apareceu, de repente, quase lhe dando um susto, sem-querer-querendo. E aí, por cinco segundos, o abençoado-que-usa-o-veículo-da-firma sentiu-se um sujeito de sorte. Não tivera a chance de testemunhar o amigo perdido entre os vários carros brandos da área, mas a gargalhada havia chegado, anyway, com aquele quase-susto. Naquele parêntese, ali, sentiu-se um homem de sorte, por conseguir rir. As pessoas de um modo geral não andavam rindo muito. O Arrombado gostava de sentir-se alguém “fora da curva”.

“E aí, viu o filme?” “Vi, cara, e porra achei muito maneiro.” “A ideia era essa. A mina curtiu?” “Porra, supercurtiu.” “A ideia era essa.” “Quando é que a gente vai beber uma cerveja?” “Porra, tá foda esse negócio de conseguir parar pra beber uma cerveja.” “O amigo até tem conseguido de vez em quando sair cedo do trampo, né? Maneiro, isso.” Houve um momento de silêncio. Sempre havia. Parece até que esperavam por isso. E também como sempre acontecia um dos dois falou: “Porra, cara, eu te amo. É sempre um prazer ver o amigo.” Combinaram cerveja, acertaram churrasco, sacanearam o Morricone, reclamaram da mulher do Rocky. Repetiram a declaração de amor e se despediram, satisfeitos pra caramba com aquela meia-dúzia de bobagens que haviam dito um pro outro.

Quando o Arrombado ligou o carro para embicar na direção do Méier, percebeu um barulho estranho. Trabalhava com aquilo, com barulhos estranhos, e ficou feliz por ter aquela habilidade/sensibilidade. Desligou de novo o motor. Desta vez, não arrumou o banco para digitar a mensagem, que seria para a patroa. Estava treinando mensagens de texto. Queria avisá-la do problema na carroça da empresa, porque aquilo significava que, no finde, talvez não fossem viajar. Meio que para compensar, avisou que levaria um galetinho e cervejas bem geladas compradas na Marlene. Não queria confusão com a patroa. Não tinha tempo para isso.

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Bronzeado, o sonho

Aquela coisa do Verão. Quem vai ver? Todos verão? Mais do que aquilo que se mostra, faz diferença a “cor” em que as pessoas em volta acreditam, o brilho que veem/percebem. Tanto quanto umas boas horas sob o sol, vale escolher a maneira “certa” de se posicionar. Mais do que investir num tomara-que-caia, escolher a blusa certa com alcinhas bem finas. Assim no diminutivo mesmo. Sempre lembrando de rezar por uma estação que não seja de muquiranas enchendo a paciência de quem quer descarregar pisando sem chinelos na areia. Ah, a areia… nunca fica bronzeada, resiste aos raios. Raios, raios, raios triplos, nas imortais palavras do Dick Vigarista; porque vilão bom é o que perde sempre.

Quando não há necessidade de esclarecer nada, quando o desfecho está ali plantado e basta esperar o negócio crescer. Paciência, paciência. Mesmo se chover. A julgar pelos sorrisos de quem passa, a construção de uma consciência de calor. Quando a gente pode acreditar na Justiça e sabe que não precisa pressa. Pode haver precisão na pressa? E, ao mirar numa necessidade, o que se acerta são todas as arestas que fazem o perrengue ser perrengue e de repente — Bum! — fica tudo certo, tudo bem, tudo certo, tudo bem, tudo certo. O Verão pode não ser certo, mas o bronzeamento é.

Aquele cheiro de manifestação, aquela entrega livre de conflitos. Uma determinação descontraída e sorridente. Dois paus e a cobra livre, sugerindo ali a criação duma nova perspectiva do que são os direitos dos animais. Animais de esquerda. Animais de centro. Animais de direita. Pássaros com bicos que destroem gaiolas. Ratos e gatos trocando ideias, certos de que a cachorrada é indispensável e estará no time, em muito pouco tempo. Quem nunca sentiu vontade de latir, de uivar, diante de um fogaréu?

A pessoa e o próprio umbigo se entendendo como se fossem uma pessoa e o próprio umbigo. Aproveitando as doações que vieram com o melhor Axé, sem medo de dividir aquele segredo com quem quer que seja — porque não precisa mais ser segredo. Dinheiro pra pagar chope pra quem está sem. Todas as paçocas que a criança está vendendo, porque aquela é a última rodada dela neste tipo de empreitada, não a última da noite, mas a última-última-mesmo. Que pele, que pele, gente.

A música lá longe, a noite toda. A espuma na taça. O desejo vestido de monge. Uma série inteira precedendo o desmonte, alguém que não se esconde. O medo de parar. O horror diante do empate. A vitória que é pra ser geral. A gentileza ímpar, sorridente mas despretensiosa, convidando para mais um gole. O fogo. A faca. O porre. Bronzeada, a pele fica mais sensível. E nobre.

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Boteco connection

Dali, de trás do balcão, pelo que podia ver, nada tinha mudado muito. Havia o dinheiro mais curto. Quer dizer, quase não havia dinheiro. Quando aparecia, era o de plástico. Mas tirando isso estavam lá os bêbados, as bêbadas em menor número, crianças pedindo salgadinho, vendedores tentando emplacar uma mercadoria nova que não era assim tão nova e por isso era quase certo que não conseguiriam nada. Os incansáveis adestradores de amendoins, que jamais faltavam e impressionavam todo mundo com sua capacidade de encaixar aquele papelzinho com uma família de “bichinhos” no meio da mesa-selva de garrafas vazias e copos pela metade. O pessoal de esquerda e de direita se misturando, de novo, nos hábitos, quase como se não houvesse mesmo nenhuma diferença entre eles, como se esta distinção tivesse deixado de existir. Talvez fosse possível dizer que estavam todos mais tolerantes. Talvez. Tolerantes entre aspas, claro. Cansados, com certeza. Cerveja já não deixava ninguém relax.

O cara do bar ficava um pouco angustiado com aquela história de usar máscara e fechar mais cedo. Sentia que estava deixando crescer uma espécie de dívida com a Madrugada. Tinha a Madrugada, que ele sempre havia considerado uma amiga, carinhosa e silenciosa, mas agora a distância entre os dois crescia e o deixava angustiado. A distância era tipo capim: tomava espaço, preenchia gretas. Se havia “alguém” com quem não queria faltar com o respeito, era com a Dona Madrugada. Escolhia muito bem, ele, o que e quem merecia “respeito”. Mas vinha parecendo impossível negociar qualquer coisa, então, o que sobrava era a resignação. E a percepção de que aquela grande amiga estava como que indo embora. Seria capaz de ir e nunca mais voltar, a Madrugada? Temia que não fosse um afastamento temporário, como todo mundo apostava. Tentava não pensar nisso. Ver de longe a grande amiga era doloroso demais.

Houve quem dissesse que ele andava cuidando das cervejas com mais carinho. Zoaram a ponto de jurar que estavam mais geladas. Coisa que ofendia o dono do boteco. Porque ele sempre — sempre — fez questão de não dar mole de ser encaixado no perfil do porcalhão e de avarento. Fazia isso não economizando em boas geladeiras e organizando a pia do estabelecimento, oferecendo copos descartáveis para quem insistia em beber na calçada, usando papel branco — em vez do pardo e do rosado, que até eram mais baratos — para embrulhar as empadinhas que a dona Silvia entregava e que eram um sucesso. As noites de terças, quintas e sábados eram noites de empadinhas.

Dona Silvia tinha provocado uma tempestade porque “permitiu” que um fio de cabelo ocupasse um espaço bem indevido numa das empadinhas de camarão. “Porra, justo na de camarão.” Costumava comer, de vez em quando, uma ou outra empadinha. De camarão. Sempre de camarão. Só vendia coisas que era capaz de comer. E cervejas que era capaz de beber. E, numa dessas, encontrou o fio. Quase vomitou. E amaldiçoou dona Silvia, por conta daquele vacilo. Jurou que não compraria mais os produtos dela. Por “sorte”, tinha sido ele o contemplado com o fio de cabelo na iguaria. “Imagina se acontece com o seu Zeca, aquele… Ia todo mundo achar que sou porco… Não posso dar esse mole.”

Dona Silvia dependia dos salgadinhos para pagar as contas. E o bar do amigo da Madrugada era o melhor cliente. Na verdade, o único com regularidade. Ela fez cara de desesperada, disse que não sabia como aquilo tinha acontecido, explicou que usava touca justamente para evitar este tipo de chateação… Depois de ouvir as explicações, Tito, o amigo da Madrugada se chamava Tito, ficou se perguntando se o que tinha encontrado era mesmo cabelo ou se não poderia ter sido um fio dental que ficara preso nos dentes, da noite anterior. Tito usava fio dental. E isso era outro motivo de orgulho dele. Acabou aceitando o pedido de perdão de dona Silvia. O que fez com que ela se perguntasse: “Será que anos atrás, quando os dois se separaram, faltou empenho da parte dela?” Foi tomada pela sensação de que havia perdido seu grande amor por descuido.  E por falta de insistência.

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@monteiro4852 #19

Poucas palavras? Bastam poucas palavras, às vezes. Tipo quando alguém fala “Vamos beber uma!”

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Seja pvc

Mais uma daquelas cenas em que as pessoas se encontram, demonstram pra começar algum entusiasmo e vão invariavelmente murchando abrigadas/protegidas dentro de suas máscaras e amarras pandêmicas. A estas, uma boa dose de Bruce Lee! O cara que já se foi mas em vídeos nos explica que a água deve/pode tornar-se a garrafa. E este espaço todo que anda ficando entre as pessoas, este void/vazio que parece ser impossível de preencher, hoje em dia, como a gente vai resolver isso, depois da vacina? Como, Bruce? De onde você estiver, mande uma resposta ou um sinal. Será esta a grande transformação pela qual vai passar a classe média, a tomada de consciência a respeito do vazio que mais do que nunca HÁ entre as pessoas?

Claro que não, né, porque esperar que o classe-mediano-mediano experimente um insight qualquer, mesmo dos pequenininhos, e perceba seu lugar no mundo, antes ou depois da pandemia, tanto faz, é esperar demais. Está aí, o novo grande ensinamento pandêmico é este, a grande queda da ficha é: “O idiota classe-mediano não vai aprender nada mesmo, porque ele não veio ao mundo para aprender. Ele bebe uma cachaça e fala besteira com o peito estufado. E só.” Quer dizer, aprende, sim, uma ou outra música de torcida, um ou outro passinho de dança, e o estrangulamento básico — porque não basta alimentar-se bem, é preciso praticar um esporte maneiro para conseguir encarar este mundão de meu Deus.

É justamente do vazio que falava o cozinheiro desempregado, ali na mesa ao lado. Ele acredita que “os restaurantes vão precisar se reinventar”. E depois de declarar de peito também projetado pra frente suas crenças básicas, aos quase-aglomerados tasqueiros em derredor, ele pode ter deixado muita gente em dúvida sobre quantos vídeos no YT precisou ver para chegar a esta conclusão. A pergunta seguinte também é básica para os dias de hoje: quando ele vai começar o seu próprio canal naquela rede? É mais fácil ser showman do que fazer batatas fritas decentes? Há quem acredite que sim. O que será que Bruce, lá de onde ele está, tem a dizer sobre essa dicotomia?

Por falar em batata frita, o segredo para muitos candidatos à fama parece ser este: transformar-se numa espécie de salgadinho. E na Grande Lanchonete Universal do Reino do Entretenimento seguir se movimentando para que as pessoas babem de vontade de morder algo todas as vezes que te percebem na tela. Simples assim. Vale dizer que por trás de uma batata-frita-style muitas vezes há técnicas surpreendentes. No próprio YT, você vai encontrar receitas que dizem que o segredo é fritar duas vezes. Há muitos segredos por trás de uma batata. Imaginem o que nos escondem os pastéis, hein!?

Está aí uma instituição que perigou sumir do mapa, ou pelo menos das feiras, nestes tempos de Covid. Foi estranho ver rolos e mais rolos de plástico finíssimo envolvendo as barracas que servem caldos de cana, pastéis e hoje em dia também quibes e bolinhos de bacalhau. Agora, é estranho testemunhar que aquela barreira já foi dispensada. De repente, é isso, hein… Lições da pandemia… É com filme de pvc que vamos “amenizar” o danado do vazio. O que Bruce Lee diria sobre isso?

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Pediu, levou

Tem uma música d’O Rappa, uma daquelas antigas, que fala em “tapa na cara”. Logo no início, numa “locução” do saudoso Marcelo Yuca: “Tapa na cara pra mostrar quem é que manda…” O tabefe, como aponta a letra, sempre foi (tido como) uma verdadeira instituição nacional. Talvez até mundial, né? É possível que a bofetada tenha perdido espaço — na preferência de agentes da lei — para o “estrangulamento”. Teve o “I can’t breathe”, do falecido George Floyd, lembra? E o BJJ parece ter se tornado tão popular quanto a Capoeira, como produto de exportação. Mas, de volta aos sopapos: eles ainda têm seu lugar no imaginário de grande fatia do “público em geral” e, neste fim de semana, bem no dia de Cosme e Damião, o Alexandre Coutinho, vizinho aqui da área, experimentou uma variante que parecia andar, esta, sim, meio em “desuso”: o “tapa sem mão”. Vem só com o verbo, acompanhado no máximo de uma carão, mas quando bem aplicado faz as testemunhas jurarem que houve um “estalo”. Machuca.

A gente diz “Alexandre Coutinho” porque o Xande, como é conhecido por cachaceiros e maconheiros da área, tem essa mania, de se apresentar usando  nome e sobrenome, muitas vezes colocando em seguida a mão no bolso da camisa abotoada para tirar um cartão. Coisa de advogado, dirão alguns. Coisa de homem branco, classe mediano, dirão as feministas. Aliás, foram — separadamente — duas, digamos, feminazis as responsáveis por deixar o Xande de rosto vermelho-amargo, bem no dia de distribuir doces.

Pode-se dizer que o Xande, com aquela camisa para dentro da calça, e de sapatos bem engraxados, é um classe-mediano gentil. Não por conta do figurino. Ele diz “alô” para as senhorinhas; sorri ao aceitar o amendoim dos ambulantes e tira uma onda de do-povo ao negociar o preço para comprar três pacotinhos; sua na pelada e se orgulha de, no vestiário, interagir com outros classe-medianos que considera menos esclarecidos: executivos de corretoras, ex-jogadores de futebol, eleitores do coisa-ruim. “Eu quero falar com essa gente, quero mostrar a eles que fizeram uma opção errada”, diz sempre que passa do quinto chope, como que querendo mostrar ao mundo que não é um tiozinho careta.

Xande tem aquela mania de perguntar aos garçons quais são seus nomes, para “encurtar a distância”. E estende esta prática às outras rápidas relações que às vezes se estabelecem nos balcões de botecos das Laranjeiras. Numa dessas, quando uma moça estava pagando a conta, surgiu no ambiente um comentário sobre o Covid. Ela emendou uma frase. Xande, outra. Ela prosseguiu e o cara considerou que poderia esticar a prosa, querendo saber o nome… Esperava descobrir além disso o sobrenome, o que também pode ser coisa de advogado, e, assim, talvez identificasse a integrante de uma família velha conhecida da região. Nem era paquera, não.

A resposta que veio provocou no ambiente um silêncio de dois segundos: “Pra que quer saber meu nome? Não tem essa de nome, não…” E o engomadinho parecia um tomate, de tão vermelho. O segundo episódio envolveu duas mulheres, sendo que o assunto já não era o vírus. Elas entraram no bar e uma anunciou que a outra estava passando mal e, depois disso, pediu uma água tônica e um chope.

A tônica era para a que não se sentia bem. E foi sobre esta que Xande inquiriu: “Quem é ela?” Não houve resposta. O advogado estava mais lento, por causa da quantidade de chopes que já lhe preenchiam a alma. E aquele hiato pareceu uma eternidade para os outros ocupantes do balcão, sendo que alguns já deviam imaginar que haveria continuação. “Quem é ela?”, insistiu, olhando então mais diretamente para a que esperava pelo chope. Parecia acreditar numa certa força de intimidação. A tônica já tinha chegado, porque pessoas que estão passando mal têm preferência, né? “Quem é ela?” E veio o segundo tapa daquela tarde: “É minha mulher, porra, o que que tem?” A “agressora” usou de tanta força que ficou vermelha, mas, claro, a cor que ela alcançou não era nem de perto tão intensa quanto a que tomou de novo as bochechas de Xande. Pediu, levou.

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Promoção

Desde que viu um anúncio de “orgânico torrado e moído especialmente para cariocas”, ficou com aquilo na cabeça. Talvez porque tivesse coincidentemente comentado com um camarada, dias antes, que estava incomodado com essa história de viver uma época em que andava bebendo mais café do que cerveja. Se pá, porque a “anunciante” era uma garota-propaganda e tanto. Aliás, tinha dela uma imagem diferente, e, vasculhando o HD, achou um clique de tempos bem-bem-pré-pandêmicos em que a moça aparecia sorrindo como poucas são capazes de sorrir, ali na adega da praça, com uma caldereta na mão. Na época deste clique, não enxergava nela uma “vendedora”. Mas, então, anos depois, percebendo que o registro não se apagara com o tempo, tinha entendido o “poder de venda” que se concentrava ali naquela personagem. Levou um tempão, mas tinha sacado que aquilo era um anúncio. E duplo: de chope e de consultório de ortodontia.

As redes já há séculos não são sociais, mas comerciais. Tira esse risinho daí, que isso é sério. Se é que o ódio foi superado, na computância internética, foi para dar lugar às (estratégias de) vendas. Mas não é qualquer uma que vende tão bem. E é disso que estamos falando. Ainda mais que lá pelas tantas a gente descobre que o café não é dela. Na verdade, é coisa da irmã que andou se aventurado pelo interior de São Paulo e agora traz isso na bagagem. Se você é um comprador cuidadoso, não pode ser acusado de stalker. Em algum momento, um cliente mais desconfiado pode chegar a pensar naquilo que bem-bem-antigamente chamavam de “rivalidade” entre os dois picos, RJ e SP. Mas não há de ser uma preocupação que crie raízes: mesmo se tiverem batizado o produto, tenham feito sabe lá o que com o café, para torná-lo especial para os playbas gourmets do litoral, depois de torrado e moído deve ficar tudo certo. Deve ser café com gosto de café mesmo.

A mobilização foi tanta, a partir daquela mensagem publicada no Instagram, que logo depois de ler pela primeira vez o texto, já ficou pensando em quantos amigos frescos, destes que não bebem Pilão e ainda falam mal pra caramba dele, estariam interessados no produto. Talvez pudesse ser um segundo atravessador. A pandemia anda obrigado a gente a pensar em maneiras de levantar um trocado a mais. Mas na verdade não queria ganhar nada com isso, nada que não fosse a gratidão das irmãs. Era só no que pensava. E pensava muito porque, com essa história de investir menos em álcool e mais em cafeína, o cérebro dispara. Neurônios parecem fazer ligações nunca antes experimentadas. E com uma pitada de algoritmo em vez de açúcar, garantindo que o post-anúncio apareceu em cinco das 17 conectadas mais recentes, a mensagem havia se fixado de maneira surpreendente/assustadora. Platão pode explicar.

Há uma formalidade, no café. Ele vem de um universo diferente daquele de onde sai a cerveja. E isso talvez revele, ou ao menos ajude a entender, por que andamos nos dedicando mais a um do que a outro. Cerveja é coisa de boteco. E boteco, por mais que haja um afrouxamento nas regras de isolamento, ainda é proibitivo. O café é um lance mais caseiro. Cerveja é da mesma escola do cachorro-quente-podrão: na rua, ganha um sabor especial. Porque sugere uma interação entre os consumidores. Você até pode ser um bebedor solitário. Mas, ao escolher este avatar, meio que aceita exibir um status e — querendo ou não — pode ser apontado ou virar alvo de um comentário feito por alguém que está num grupo e em busca de assunto. “Olha aquele maluco sozinho quase caindo, ali; puts, como é que dá pra segurar garrafa, copo descartável, cigarro, celular e a porcaria do álcool em gel?”

Quando as artesanais estavam na moda, havia a possibilidade de juntar as duas coisas: café e cerveja. Tinha até bebidas de cor clara mas reunindo os dois sabores. Bom, na verdade, aí não eram dois sabores. Você achava que estava bebendo um café estranho e só sabia que se tratava de uma cerveja porque esta informação vinha escrita na garrafa ou na latinha.

Café gelado, até o fim do século passado, não era uma coisa fácil de ser vista por aqui. As Starbucks e o bagulho da globalização instituíram novos hábitos, nestas terras. Talvez o Covid, que está sendo responsável pelo fechamento de muitas lojas, provoque uma volta ao paladar antigo — se o vírus for suficientemente forte, como apontam os adivinhos de plantão, para varrer daqui as redes gringas que colocam gelo no café com leite e fazem todo mundo acreditar que isso é gostoso. Será que nossa garota-propaganda conseguiria vender um pingado gelado? Será que ela é tão boa assim?

Falar sobre café, cerveja e uma pessoa (mesmo uma garota-propaganda, com o distanciamento garantido pela eventual fama) é uma maneira de mergulhar nas sensações que tanto as bebidas quanto a pessoa em questão são capazes de provocar. Olha só a equação, que apesar de um tanto esdrúxula não deixa de ajudar a entender a relação: gostar de café sem açúcar é uma coisa, e tem gente que tira onda de descolado(a) fazendo esta opção; gostar de uma pessoa sem sal é outra bem diferente, mistura o inaceitável e o inexplicável. Pensar em cerveja “quente” é outra coisa, só inglês ou alemão é capaz de entender. Quando a gente fala em amargor, o da cerveja provoca menos estranheza. Pelo menos no entendimento do bebedor-médio, aquele que preenche os balcões das padarias e botecos mais populares, que não se rendeu ao pingado gelado. E que dependendo da garota-propaganda gasta até o último trocado ou divide no cartão de crédito, mas não deixa de adquirir o produto.