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Boteco connection #6 — 80 anos e no jogo

O que pode melhorar um dia em que, até o início da tarde, tudo que o cara vendeu foram três garrafas de Spaten 600ml? Por onde andariam os biriteiros do bairro? É, crise é isso aí, compadre. No flow, surge um tiozinho declarando ter passado dos 80 anos. Figura nova na área, do tipo que fala pouco: “Cachaça.” Mantendo a crença na necessidade de confirmação que algumas situações trazem, surge do outro lado do balcão a pergunta: “Cachaça?” E a resposta, mantendo o estilo: “Barata.”

Já não era mais necessário confirmar muita coisa. Uma primeira resposta ruim quase sempre fazia nascer uma segunda pergunta que não raro beirava a antipatia: “Barata?” Aquilo que era adequar-se ao estilo do freguês. Puro marketing de boteco. Sem dar tempo para resposta: “Olha, tem essa aqui,” mostrava o cara do bar. O coroa apertava os olhos, depois de ajeitar o boné verde que não lhe caía bem na cabeça de cabelos ralos e cinzentos. Negociado o preço, ele pediu, além da dose, limão e açúcar. Beleza. Oitenta anos, caramba. As solicitações não parariam por aí. A vítima seguinte era o Tonto, que estava brincando de segurança. Segurança que bebe latinha de Império: está aí uma categoria em que não se pode confiar muito mas que, pelo menos, é de um modo geral simpática.

“Posso me sentar?”, inquiriu o senhor, sem dar pistas sobre até onde iria co’aquilo; mas já falando muito mais do que se passou a esperar dele naquele curtíssimo espaço de tempo. Cachaça barata é um troço que pode sair muito caro. “Melhor não”, respondeu Tonto, claramente temeroso. “Ah, o seu espírito não bateu com o meu”, começou então o Senhor Boné Verde, completando sem dar tempo para que o rapaz de bigode e amante da solitude se recuperasse: “Eu gostava de brigar. Você já matou alguém?” Era só a primeira cachaça, gente, e a coisa já estava neste nível. É bom ter cuidado com o que a gente sente/pede, porque o Universo está de olhos e ouvidos bem abertos. Queria um cliente? Toma um cliente.

Não era um tiozinho agressivo. Saiu da frente para os entregadores de Denker fazerem seu trabalho. Eram as garrafas de Ipa chegando, e, pelo adiantado da hora, não ficariam geladas para o forró que rolaria mais tarde, na praça, ali perto. De longe, não deu para entender muito o que respondeu o Tonto. Mas o tiozinho ocupou a segunda cadeira da mesa. Foi rápido. E foi de lá que ele pediu uma segunda dose. Já havia preocupação e medo no ar.

“Segunda dose? Como assim? O senhor pediu a primeira com desconto. Era pra ser só uma. A segunda vai ter que ser pelo preço normal. Quer mesmo?” O sorriso mais amarelo que se viu naquela calçada, naquela semana, confirmava que haveria uma nova branquinha-com-açúcar-e-limão. Deu pra entender o que ele cuspiu, antes de levantar: “O mau do urubu é achar que o boi tá morto.” Tonto mostrava-se até recuperado dos primeiros dois minutos de inevitável conversa com o forasteiro, mas aquela frase bateu mal e trouxe de novo preocupação para o ambiente.

Parecia tudo encerrado, com o papo de urubu. Cinco minutos? Menos de cinco minutos depois: “Agora, eu vou embora, mas quero mais uma”, pediu, mencionando o desconto dado na primeira dose e sublinhando que “aquilo sim é um valor justo”. “Espreme mais um limão aí. Bota açúcar nesse negócio, garoto”, provocou, talvez se escorando no efeito que o ensinamento sobre o comedor de carniça tinha despertado nas pessoas em volta. Era sensível, o velho; e estava atento aos humores. “Tá com limão, meu caro. E tá com açúcar”, ele ouviu. E ouviu também: “Estamos aqui pensando que hoje à noite na hora de fechar vai ser bom manter um olho no peixe e outro no gato, quer dizer, no urubu.” Histórias em bares às vezes se encerram de maneira abrupta.

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Tonto, sim

Bené sabia que Tonto era o nome de um índio em algum programa de televisão. Da época em que era criança. Não estava certa se ainda era uma atração que podia ser vista, hoje em dia; mas lembrava de ter acompanhado uma história que tinha um personagem batizado daquele jeito: Tonto. Achava aquilo engraçado. Ficava se perguntando se tinha achado bonitão, o Tonto. Se era por tal motivo que havia decidido chamar daquela maneira o irmão mais novo. Era isso: foi por causa do Tonto da TV que o pequeno Antônio tinha recebido aquele apelido.

Até que a palavra Tonto tomasse conta da cabeça — ou saísse dos sonhos — de Bené, todo mundo chamava o menino de Tonho. Mas ela, aos 13 anos, já achava que tinha idade para decidir coisas importantes na vida, considerava “muito sem graça aquela história de Tonho”. Pensava que o menino merecia coisa melhor. E Tonto era bem melhor. Era uma escolha da qual ela se orgulhava. Muito. Não que tenha sido fácil. Considerou que seria, sim, um risco para o pequeno. Outras crianças talvez aproveitassem o apelido para na escola fazer chacota dele, por exemplo. Mas ela esperava que com aquela nova alcunha pudesse dar ao irmão também sabedoria para enfrentar as coisas difíceis que a vida por acaso colocasse no caminhozinho dele. Ela falava assim: “caminhozinho”.

Bené estava certa de que a humanidade a via com melhores olhos desde que tinha deixado para trás o Benedita escolhido por sua mãe. Ou seu pai. Ou sua avó. Ou seu avó. Vivia se perguntando quem tinha escolhido o nome que carregava. Nunca tivera coragem de perguntar sobre aquilo. Tinha medo da reação da mãe. E do pai. E da avó. E do avô. O avô era quem ela mais temia. Brincava com os nomes, para fazer parecer que era só mesmo brincadeira. Mas era uma estratégia. Bené era boa de apelidos e de estratégias. Era a sua Capoeira.

Esta semana que passou agora, Bené, já adulta, foi à feira com o irmão. Ele também já adulto, acostumado com o “Tonto” com que a irmã o tinha presenteado. Enquanto caminhavam, entre cachos de bananas, abacates e caquis, Bené apontou para uma graviola. Tonto entendeu logo o que ela quis dizer e os dois pararam para comprar. Ele tirou do bolso uma nota de 20 e deu ao feirante, achando que estava diante de um rosto algo familiar. E era mesmo. O vendedor sorriu um sorriso meio estranho, no qual Tonto identificou algum traço de deboche. Comprovou isso quando ouviu o sujeito dizendo: “Ah, o Tonto… fio de dona Zefa…”

O jeito como o mercador pronunciou “Tonto” causou um leve desconforto nos irmãos. Depois de dizer isso, o feirante separou três notas e deu ao rapaz. Era o troco. Três notas de dois. Fez isso e virou, como fosse atender outra pessoa que se aproximava da barraca. Foi um movimento muito rápido. Ele na verdade não ia atender ninguém. Tonto — mandingueiro, aprendiz de Bené — percebeu a manha. Levantou a cabeça, como que esticando o queixo para a frente, e coçou levemente o pescoço. O homem da feira voltou o olhar para o freguês, dessa vez sem qualquer traço de zombaria, e viu o movimento de ir e vir dos dedos do irmão de Bené, coçando o pescoço. Separou então uma nota de dez, que era o que faltava para completar o troco, e deu ao rapaz. Bené sorriu, certa de que tinha ensinado coisas importantes ao irmão.