Mister Mattoso tem agora um canal só dele:
@monteiro4852 #18
O tempo cada vez mais corrido. Era difícil, no fim das contas. O sol voltando a brilhar. Era amarelo, se não me engano. O isso-éramos dando lugar ao é-pra-já. Cama foi feita pra pular, esse negócio de dormir é atraso de vida…
Tem uma música d’O Rappa, uma daquelas antigas, que fala em “tapa na cara”. Logo no início, numa “locução” do saudoso Marcelo Yuca: “Tapa na cara pra mostrar quem é que manda…” O tabefe, como aponta a letra, sempre foi (tido como) uma verdadeira instituição nacional. Talvez até mundial, né? É possível que a bofetada tenha perdido espaço — na preferência de agentes da lei — para o “estrangulamento”. Teve o “I can’t breathe”, do falecido George Floyd, lembra? E o BJJ parece ter se tornado tão popular quanto a Capoeira, como produto de exportação. Mas, de volta aos sopapos: eles ainda têm seu lugar no imaginário de grande fatia do “público em geral” e, neste fim de semana, bem no dia de Cosme e Damião, o Alexandre Coutinho, vizinho aqui da área, experimentou uma variante que parecia andar, esta, sim, meio em “desuso”: o “tapa sem mão”. Vem só com o verbo, acompanhado no máximo de uma carão, mas quando bem aplicado faz as testemunhas jurarem que houve um “estalo”. Machuca.
A gente diz “Alexandre Coutinho” porque o Xande, como é conhecido por cachaceiros e maconheiros da área, tem essa mania, de se apresentar usando nome e sobrenome, muitas vezes colocando em seguida a mão no bolso da camisa abotoada para tirar um cartão. Coisa de advogado, dirão alguns. Coisa de homem branco, classe mediano, dirão as feministas. Aliás, foram — separadamente — duas, digamos, feminazis as responsáveis por deixar o Xande de rosto vermelho-amargo, bem no dia de distribuir doces.
Pode-se dizer que o Xande, com aquela camisa para dentro da calça, e de sapatos bem engraxados, é um classe-mediano gentil. Não por conta do figurino. Ele diz “alô” para as senhorinhas; sorri ao aceitar o amendoim dos ambulantes e tira uma onda de do-povo ao negociar o preço para comprar três pacotinhos; sua na pelada e se orgulha de, no vestiário, interagir com outros classe-medianos que considera menos esclarecidos: executivos de corretoras, ex-jogadores de futebol, eleitores do coisa-ruim. “Eu quero falar com essa gente, quero mostrar a eles que fizeram uma opção errada”, diz sempre que passa do quinto chope, como que querendo mostrar ao mundo que não é um tiozinho careta.
Xande tem aquela mania de perguntar aos garçons quais são seus nomes, para “encurtar a distância”. E estende esta prática às outras rápidas relações que às vezes se estabelecem nos balcões de botecos das Laranjeiras. Numa dessas, quando uma moça estava pagando a conta, surgiu no ambiente um comentário sobre o Covid. Ela emendou uma frase. Xande, outra. Ela prosseguiu e o cara considerou que poderia esticar a prosa, querendo saber o nome… Esperava descobrir além disso o sobrenome, o que também pode ser coisa de advogado, e, assim, talvez identificasse a integrante de uma família velha conhecida da região. Nem era paquera, não.
A resposta que veio provocou no ambiente um silêncio de dois segundos: “Pra que quer saber meu nome? Não tem essa de nome, não…” E o engomadinho parecia um tomate, de tão vermelho. O segundo episódio envolveu duas mulheres, sendo que o assunto já não era o vírus. Elas entraram no bar e uma anunciou que a outra estava passando mal e, depois disso, pediu uma água tônica e um chope.
A tônica era para a que não se sentia bem. E foi sobre esta que Xande inquiriu: “Quem é ela?” Não houve resposta. O advogado estava mais lento, por causa da quantidade de chopes que já lhe preenchiam a alma. E aquele hiato pareceu uma eternidade para os outros ocupantes do balcão, sendo que alguns já deviam imaginar que haveria continuação. “Quem é ela?”, insistiu, olhando então mais diretamente para a que esperava pelo chope. Parecia acreditar numa certa força de intimidação. A tônica já tinha chegado, porque pessoas que estão passando mal têm preferência, né? “Quem é ela?” E veio o segundo tapa daquela tarde: “É minha mulher, porra, o que que tem?” A “agressora” usou de tanta força que ficou vermelha, mas, claro, a cor que ela alcançou não era nem de perto tão intensa quanto a que tomou de novo as bochechas de Xande. Pediu, levou.
@monteiro4852 #17
“Em boca fechada… não entra mosca.”
A contemporaneidade levou a sério essa coisa baumaniana, a dos amores líquidos. Suspiremos todos, diante dessa vontade/capacidade classe-mediana de se adequar a certas teorias. Não dava era para imaginar que isso fosse assim, tão longe, né? Primeiro, o troço romântico perdeu a possibilidade de se desdobrar em longo prazo: não é pra durar. Beleza, entre aspas. A inteligentsia acha a solidão muito cool, seja na literatura, nos quadrinhos, no cinema. Descartável pouco é bobagem, vamos escrotizar com os oceanos, inclusive/principalmente o das (nossas) emoções. E, agora, neste dias em que o bom e velho “te pago um chope” tornou-se uma impossibilidade nas vidas de tanta gente, chegou a hora em que demonstrar preocupação e carinho se faz com uma frase do tipo “passa um álcool em gel, hein, quando chegar em casa…” Um novo papel para o álcool, um golaço pentecostal.
Os amores não estão líquidos. Estão liquidificados. O bagulho é pós-Bauman, além-Zygmunt; sentimentos batidos com abacate mais leite desnatado mais mel e mais aveia. Assim, fica verde. O vermelho perdeu a vez. Talvez em breve proíbam qualquer coisa com beterraba. “Comida subversiva!” O pessoal que se sente vítima da “cristofobia” denunciada pela presidência já deve acreditar que se trata de alimento de quem come criancinha. No século passado, você lembra, mastigar e engolir bebês, pré-adolescentes etc era sinônimo de comunismo. Ainda não se sabe como se diz isso, agora, no aperfeiçoamento pentecostal. Se alguém aí tiver acesso à cartilha deles, ou, melhor, se fizer parte de algum grupo de WApp em que haja um pastor, pode contar para a gente.
Tem a pandemia e a fome insaciável por dinheiro. Os amores se liquidificaram, se pá, porque o que importa é liquidez. Há quem se recuse a acreditar ou topar uma vacina, ainda mais se ela vier da China. E há quem nunca vai entender a devastação que pode causar um olho-grande. De uns dias para cá, o que alguns reaças mais esclarecidos pareciam ter escolhido como preocupação máxima era o direito deles de fazer piadas. Você aí que achou que fosse o amor, líquido ou sólido como outrora, pode tirar da cara a expressão de surpresa. Já não cabe mais fingir susto. Querer rir faz muito sentido: se você é bem alimentado, OK a gargalhada ser mesmo uma preocupação. Tanto faz se for em cima de uma minoria, de um bicho ou uma bicha ameaçadx de extinção. Rir era o melhor remédio. Rir agora é mais importante do que amar. Rir é o novo privilégio, o novo black. Amor é coisa de um passado “sólido” e remoto.
Agora, que só se permite ficar na calçada bebendo até as 22h, parece haver mais deixa(s) para um acordo mais amoroso entre diferentes defensores da “liberdade”. Que na verdade não passam de defensores do chope e da consequente gargalhada. Mas já é alguma coisa. Será que o Bauman conseguiria explicar isso ou é carioquice-terceiro-mundista demais para a Filosofia? Um viva para o líquido e a liquidez que unem a arrogância academicista e a truculência verde-e-amarela. Alguma coisa a gente tem que bebemorar.
O Rogério, de vez em quando, apelava para o palavrão mas tinha a vantagem de conseguir com que tudo — ou pelo menos muita coisa — saísse da sua boca de maneira suave: “Chove pra caralho, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.” Rogério se foi quando ainda podia ser chamado de “jovem”, carregando uma acidez que não era bem mau humor, era uma coisa que, sabe, os amigos perdoavam mas não era por isso que não era mau humor… Era um troço que ninguém sabia explicar direito. Nem mesmo os amigos. Talvez por isso achassem melhor perdoar. Claro que era melhor. Mesmo que Rogério não fosse santo. Aliás, não o chamavam muito pelo nome completo. Preferiam Roger. Muitas vezes, depois de tirar o acento agudo e aquelas duas últimas letras, davam uma risada que… que era a comprovação de que não havia mau humor ali naquelas rodas.
Alguns parceiros de Roger, quando se encontravam num boteco, gostaram de falar também do Marcos. Que era outro que tinha partido e a quem raramente se referiam pelo nome. Preferiam falar Meleka. E era assim com “k” porque se tratava de uma espécie de precursor da cultura da tag. Como Roger resumia bem: “O filho-da-puta era um rabiscador de mesa, na escola.” Era mesmo, porque tinha um problema com sua letra: achava horrível, o resultado; sentia vergonha. Não houve caderno de caligrafia que desse jeito. E quando Meleka se cansou de ouvir os camaradas dizerem que ele tinha “letra de médico”, começou a escrever usando “letra de imprensa”. Ou “letra tipo bastão”, como aprendera na aula de Técnicas Comerciais, numa escola pública da Penha. As mesinhas que ocupava na escola eram invariavelmente preenchidas por letras tipo bastão. Escrevia letras de músicas dos grupos punks que curtia. E às vezes fazia desenhos. O melhor de todos foi um garçom correndo com uma bandeja.
Um dos sobreviventes, quando passava de quatro cachaças, sempre, sempre puxava uma discussão sobre um possível encontro entre Roger e Meleka, no Além. E era sempre o Além que esticava as argumentações, as manifestações de descrença e desgosto, as defesas apaixonadas e cheias e culpa. Pulavam daí para a política e começavam a falar mal do prefeito da cidade. Era quando todos voltavam a rir, não sem uma dose de preocupação, mas sentindo o cheiro da adolescência, de quando acreditavam na “revolução” e panfletavam e escreviam nas paredes frases que consideravam transformadoras e capazes de mobilizar as pessoas. Meleka escrevia estas mensagens com letras tipo bastão. E saía tudo tão arrumadinho, às vezes, que ele tinha medo que pudesse ser preso por conta daquilo. Todo mundo ria, lembrando dessa história. Era certo que em algum momento falassem da Elza, por quem um dia todos tinham se apaixonado. Na certa, alguém ia perguntar, arrancando uma gargalhada-geral: “E a Elca, hein…?”
@monteiro4852 #16
“Estamos apenas no início”, ele disse. Elas deram uma risada.
Uma “atividade” parecia estar sendo especialmente prejudicada pelo isolamento social. A do Puxa-Saco. Ou do “Puxa-Sacos”, como parecem preferir os mais estudados. Atualmente, é mais fácil falar do Bava-Ovo, pra todo mundo entender. Mas os mais estudados, sempre eles, talvez prefiram Baba-Ovos. A questão não é o S, mas a puxação, ou babação em si. Virtualmente, isto é, pela web, a segunda “profissão” mais antiga do mundo parecia ameaçada de perder força.
O Puxa-Saco tem todo aquele jogo de corpo, né? Começando com o olhar pidão, detalhe que integra um semblante extremamente doador, com aquela dualidade que só os subservientes e interesseiros parecem ser capazes de colocar em prática. Como fazer isso online? Com as palminhas batendo, no WApp? Perde muito da graça. Um “hahahaha” ou um “rsrsrsrs” jamais terão a gosminha de uma gargalhada forçada após uma piada que nem era assim tão boa.
Uma vantagem que a gente talvez possa apontar é que, teclando, parece que se cria um contrato de babação, uma declaração de puxa-saquismo, a formalização daquela velha sem-vergonhice. É comum a gente voltar a uma mensagem para ter certeza de que o entendimento foi correto. É comum a gente ler um contrato, ou parte dele, para ter certeza de que é aquilo mesmo. Nada mais “normal” então do que dedicar alguns minutos à releitura de uma babação-de-ovo no Foicebook ou no WApp. Para em seguida perguntar-se: é isso mesmo, é pro mundo inteiro ver e entender que é babação descarada?
Os protocolos internéticos, aquelas coisas de atenção aos momentos em que se usa caixa alta, as carinhas, os “risos”… tudo isso criou uma “gordura” para a linguagem que pode ser bem aproveitada pelos bajuladores de plantão. Estamos vivendo uma época de divisão de águas. Agora, veremos sobreviverem e se sobressaírem os babadores realmente sérios e comprometidos com a “coisa social”. O Pusa-Saco entra finalmente no século XXI, diferenciando-se do Pela-Saco, que — vale explicar — parece ser a evolução quase natural do Puxa-Saco que se deixa tomar pelo ódio.
A contemporaneidade/inteligentsia ainda não achou resposta para a questão de gênero. Falar em Puxa-Saco traz uma perspectiva muito masculina. Na busca/luta por igualdade, precisamos dar a todEs a chance de serem escrotEs. Talvez Lambe-Botas, hein? Mas aí fica muito old-school, né? Tem a pegada fetichista/BDSM, mas é muito old-school. Para sobreviver, o puxa-saquismo precisa continuar evoluindo, como tem acontecido, agora; não voltar atrás…
@monteiro4852 #15
“Rumo ao milhão”, disse hoje o Alberto. De vez em quando, todo mundo deve pensar: “Será que puseram alguma coisa na água?”
Futum
Pra muita gente, hoje é dia de voltar ao passado. Porque acham corriqueiro e ao mesmo sério e pertinente agora falar do episódio que muitos passaram a chamar de O Dia Que Mudou A História. A maioria faz isso ainda sem saber se deve escrever assim, com maiúsculas, ou não; sem ter lá muita certeza sobre aquilo de que estão sentenciando. É a perspectiva botequiana tomando de novo conta da História, emprestando seriedade ao mesmo tempo em que banaliza; mesmo em dias/noites de botecos vazios. O que você estava fazendo, 19 anos atrás? É a pergunta que mais se ouve, hoje? Ou geral está mais preocupado com o preço do arroz?
O Passado é compadre da Justiça? Segure a gargalhada aí, porque a pergunta é séria. Poucos anos atrás, era comum a gente ouvir alguém dizer que os dias que estávamos vivendo eram os melhores que havíamos conseguido alcançar. Agora, já não dá para dizer/garantir isso. Quase dá para ter certeza do contrário. Águas passadas não movem mesmo moinhos. E o arroz será sempre uma das partes do binômio que no fim das contas comanda toda a organização da humanidade por estas: o arroz-com-feijão. Ah, sim: Feijão, pode esperar, a tua hora vai chegar/voltar. Afinal, se tem uma coisa que o Passado nos ensina é que, se podem ferrar a massa com dois ingredientes, não usarão apenas um.
Cada um de nós tem o próprio 11 de Setembro. Ou terá. Aquele dia em que é atingido(a) no peito com uma frase mortal, desconstrutora/desmoronante, fatal para uma enxurrada de sonhos que podiam sair dali mas se perderam. Viraram poeira. “Você não sabe o que é amor.” “Seu filho morreu.” “É que eu quero ficar com outra pessoa.” “Foi embora.” “Vá embora.” “Some da minha frente.” “Eu não sou isso aí que você está falando, não…” Aviões derrubando torres. Perceber pessoas se esforçando para entender O Dia Que Mudou A História, quase duas décadas depois de um acontecimento que ainda merece manchete, pode ser um ótimo estopim para quem pretende entender (pelo menos um pouco) o próprio percurso. Ou a interrupção do percurso, o que não deixa de ser percurso-em-si.
Para quem ainda está em isolamento, por conta da pandemia, este pode ser um exercício ainda mais marcante/assustador. Quem ainda vive de construir listas, coisa que parece não sair da moda, pode brincar com a coincidência entre os números: no décimo nono aniversário do ataque às torres gêmeas, estamos às voltas com o Covid-19. No mesmo dia, pipoca uma notícia de que as vendas de vinis ultrapassaram as de CDs na primeira metade do ano. Passado é assim: às vezes, traz um perfuminho. Mas noutras resgata mesmo é um futum bem desagradável. Tá sentindo, né?