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Esperança

Dedo Mindinho, Seu Vizinho, Maior De Todos, Fura-Bolos, Mata-Piolhos. Continue cantando: “Cadê o docinho que tava aqui?” Agora, sério: se forem procurar um “culpado” diferente, em vez de deixar o Gato ir atrás do Rato, como sempre foi feito… a coisa pode ficar ruim para o Seu Vizinho! Pode apostar. Porque é um dedo aparentemente sem moral nenhuma. SV, coitado, parece que dá no máximo a sorte de ser confundido com SUV, que é aquele carro do playba que tem muito para gastar em seguro e gasolina. A ladainha pode piorar se estivermos falando do pessoal do andar de baixo: neste caso, os dedos do pé.

Será mesmo? Abaixo o coitadismo (esta palavra tão da moda). Dá para dizer que, assim como o classe-mediano motorizado vive de ilusões, o Seu Vizinho Do Pé circula bem menos coberto por esparadrapos do que o Mindinho. A comprovação estava no testemunho de um mané que, outro dia, num boteco, de Havaianas, exibia o menorzinho todo coberto por uma fôrma/armadura branca. “Foi o Magnetismo: o Mindinho sempre atrai a quina do armário ou a porta. Acontece demais”, repetia, com cara de quem ao caminhar experimentava ainda alguma dor.

“Fura Bolo” já foi até nome de picolé, lembra? Da (boa e velha) Gelato. Mas o SV, discreto, consegue significativo destaque, quase holofotes, nos encontros do pessoal grati-luz-descolado. Quando a terapeuta invariavelmente começa com aquela história de “levar ‘vida’ a partes do corpo que estão esquecidas”, ele, o Seu Vizinho Do Pé, leva tanta massagem e estímulos/carinhos quanto um irmão mais famoso (o Mindinho) e muito mais do que outro mano superpop (o Dedão). Sim, é com massagem e mimo que (quase-)místicos dão vida a partes do corpo que sofrem por conta do esquecimento. O cérebro pode mesmo ser um vacilão, né? A família de dedos comprova.

Pode haver quem aponte que o Seu Vizinho Do Pé na verdade dá mole por ser um dedo que mergulhou na timidez. Aquela história de o Sol brilhar para todos, manja? Vai saber… Outro ponto é que, se, por um lado, ele, o  SVDP, não tem tamanho de caçula, lugar/posto que pode garantir muitos privilégios vindos dos pais, também não fica sob o jugo de todos os outros irmãos. A gente sabe que irmão mais velho pode ser o cão, né? Esses dias mesmo alguém tava falando que numa família do Méier os três mais velhos obrigavam a mais jovenzinha a comer minhoca. Isso antes de a TV exibir “Jackass”.

Tudo bem que na hora de um footworship a chupação/adoração fique mais para outrem. Se há um dedo poeta, um “sofredor” capaz de emergir do sofrimento e revelar-se um habilidoso intelectual ganhador de prêmios, é sem dúvida o SV. Do pé ou da mão. Porque fora das historinhas já convencionais e infantis, como a famosa musiquinha cantada no início desta prosa, sobra a disposição/paciência, verdadeiramente uma necessidade de observar o mundo e com isso construir uma fábula diferente. (Que alguém entenda.)

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Meio miau

Existe o “caminho do meio”. E existe o “meio de uma crônica”. Você sente/percebe que está no meio de uma crônica quando, no carro em que te ofereceram uma bela carona, o motorista teve o cuidado de borrifar com álcool os pontos das portas em que os passageiros põem com frequência as mãos. Mais ainda: quando ele, o condutor, está todo esticadinho — o banco com o encosto num ângulo que deve ser de 90 graus e… O que chama mais a atenção: sai das caixas de som uma música que te leva para outra época. Uma melodia que sugere um filme de humor-verdade e, também, te convida a congelar, ali mesmo, antes da próxima curva, essa vidinha besta e veloz em que a gente uma vez por ano apaga velinhas.

A iluminação não passa necessariamente por saber pra quem vai o primeiro pedaço de bolo. Porque nem sempre tem guloseima e os esfomeados que desde a adolescência conhecemos precisam(os) engolir é esta (sensação de) “falta”. E que ninguém reclame, porque tampouco pros festivos cachaceiros que mais recentemente se agregaram deverá haver qualquer mimo. Na reta final de uma curta e cinematográfica viagem de carro, antes de descer do veículo fica o lamento pelo afastamento da tão sonhada companhia.

Lá vai ela. Após, restará a cada-vez-mais-velha-conhecida solitude, e é como se um segundo parágrafo se fechasse. Mas estamos falando apenas de um segundo parágrafo, não de um segundo capítulo. E é a hora de você rir de novo por ter que em meio à pandemia cortar um dobrado para explicar aos amigos que não, não vai ter comemoração porque aumenta a preguiça de fazer isso, numa época como esta.

Alguns passos depois, a confirmação. Pode ser um dia de muitas surpresas, este. E isso vai construir não apenas uma crônica mas, quem sabe, revelará palpites para apostar numa loteria, ensinamentos que te afastarão definitivamente do clube dos velhos babões e insensíveis que acham que podem tudo porque… porque podem pagar, porque vêm de circuitos em que sempre, desde sempre, tudo foi permitido. Desde é claro que você tenha aquele sangue ali. Quando uma crônica se mostra já em andamento, ela está te dando a chance de no mínimo melhorar as coisas. Agradeça por isso.

No aprendizado, nem sempre há conforto. Há dúvida, às vezes. Há testes que talvez ainda precisem ser feitos. E há novas dúvidas, escoradas por velhos medos e lembranças doces como a que vai ficar de uma carona acidental e acertadamente aceita. Você percebe que está no meio de uma crônica quando sente que, dali a dez anos, vai lembrar daquele momento e estará tomando por sentimentos doces e muito familiares. Inexplicáveis, doces e familiares. Você sente o miolo da história ao tentar fazer uma lista de desejos que inclui uma chance de gravar aquilo, de perpetuar alguma coisa mesmo que não saiba bem do que está falando.

“Você está triste?” “Como assim, precisa escrever?” Dependendo de onde vem a pergunta, dependendo do flow para a elaboração de boas respostas… Bem, a coisa pode sempre empacar, né? Na moral: é pandemia, pô! Tudo que você precisa é de uma taça fininha cheia de vinho e uma caneta com tinta bem preta para escrever “saudade”. Aí, é seguir em frente e esperar por uma nova folha. Que poderá não estar em branco.

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Ardência

“Duas por cinco, ainda?” O classe-mediano compra flores, na feira; mas não dispensa a pechincha. Já não se sente culpado por negociar trocados e conseguir vantagens em cima duma galera que está bem mais ferrada do que ele. O classe-mediano anda tentando evitar palavrões, então, “ferrada” é uma palavra atualmente bastante usada. A camiseta branca surrada, amarelada em certas partes, principalmente ali pelo sovaco, parece dar a ele a desenvoltura e o direito de além de tudo escolher com muito cuidado as melhores peças, as que vai levar para a casa. Porque estamos falando de alguém que quer um axé maneiro para a semana, que está só começando; ué. Mas aí pinta aquele constrangimento/incômodo quando, na hora em que estava prestes a se decidir por Aquela Rosa Vermelha Já Mais Aberta, tem que dizer “não” a um cara que do nada — Bum! — apareceu para pedir dinheiro. Quer dizer, “não é dinheiro, não”, declarou o pedinte.

O grandalhão da barraca de flores, bem sem saco, dispara um “aí, se liga…” e faz com as mãos um sinal que a gente facilmente entende como algo que quer dizer “sai daqui”. Parece que no cotidiano o feirante também está evitando algumas palavras. O pedinte, até ali, tinha dado a deixa de que, por sua vez, o que ele parece estar  evitando é pedir dinheiro. Talvez porque esteja difícil pra todo mundo e, na rua, deve ser possível sentir isso muito bem. Deve ser quase impossível as pessoas ouvirem o que ele diz. Aquele que pode escolher flores faz isso com tanto cuidado que parece até um lance de xadrez ou um daqueles momentos em que, conversando com o gerente do banco, precisa decidir o que fazer com aquele dinheirinho que ficou na poupança. Uma indecisão/demora cheia de “poesia”, quase um anúncio de sabonete.

O da camisa amarelada, então, fura o dedo numa das rosas que até então não tinham causado nenhum desprazer. Furos nas pontas dos dedos, você sabem, provocam uma sensação bem ruim. Quem não quiser testar isso escolhendo rosas em feiras pode optar por um daqueles testes (de colesterol?) em que furam o dedo da gente, apertam pra que o sangue saia na quantidade devida e, depois, espalham o líquido vermelho numa plaquinha transparente, aparentemente de vidro, para que seja inserida numa máquina. O classe-mediano, algo angustiado porque o atual prefeito da cidade em que mora conseguiu uma vaga no segundo turno das eleições, já fez este tipo de exame. O feirante de poucas palavras, também.

Passou pela cabeça do pechincheiro: “Deve ter a pele dos dedos bem grossa, nunca deve ter passado por um exame assim.” Antes de seguir para o pensamento seguinte, sobre a resistência das mãos do rapaz ao manusear flores com espinhos, mexeu nos bolsos e, tirando de lá muitas notas de $5 e de $2, separou o suficiente para pagar pelas flores e… E além disso pegou uma, a de menor valor, para dar ao rapaz.  Sob o olhar do feirante, dobrou uma nota, como que para que ficasse firme no trajeto entre a mão dele e a do destinatário dos dedos que nunca foram furados. E esticou aquilo na direção do homem que tinha ficado ali, meio de lado. “Mas não é dinheiro, não…”, lembrou o pedinte.

“Mas cara dinheiro é o que eu tenho, agora…”, desculpou-se com “calma” o mais bem-alimentado dos três ali. E sentiu-se aliviado com esta frase/explicação, como se ela deixasse muita, muita coisa clara. Foi ajudado pelo olhar cúmplice do vendedor, que balançava pros lados a cabeça como se não entendesse a recusa do mais ferrado dos três ali: “Pô, aí, que vacilo…” Percebeu-se suado, o comprador/pechicheiro/classe-mediano, talvez em consequência do excesso de pensamentos que tomavam conta dele, e lamentou que em tempos de pandemia não fosse possível tirar/secar as gotinhas que se haviam formado em baixo do nariz, por baixo da máscara. Era o único dos três que usava máscara. Tinha tomado o cuidado de não limpar o sangue do dedo na roupa. Bastava uma camiseta amarelada, não queria uma bermuda manchada. E, em vez de fazer isso, espalhou o líquido pela mão — que ficou um pouco grudenta. Mas uma borrifada de álcool resolveria tudo. Antecipou a ardência que sentiria no dedo furado. O classe-mediano voou para casa porque estava atrasado para a meditação. Fazia isso todos os dias. Flor era só uma vez por semana. Mas meditação era diariamente. Precisava meditar. Precisava meditar.

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@monteiro4852 #24

É preciso ter envolvimento com aquilo que se faz. Outra coisa que precisa ter é saco. Mas aí é com tudo, não apenas com aquilo que se faz.

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Boteco connection #3 — Sapatinho de cristal e cara de pau

A pandemia criou uma nova categoria: o intelectual de calçada. Você pode chamar de uma evolução do intelectual de boteco. A diferença entre os dois é que os do novo grupo se preocupam mais com a saúde. Ou têm mais medo de morrer. O que (para os menos esclarecidos, pelo menos) pode dar no mesmo. Ambos ficam com aquele caô de chamar o garçom pelo nome, ensaiando uma intimidade/gentileza que não passa do terceiro copo ou do primeiro “não” que o trabalhador for obrigado a dizer. O que é que ia mudar mesmo, depois do Covid, hein? Ah, a maneira como as pessoas veem o mundo, a vida, quem está do lado…

Seguimos esperando. E bebendo. Porque cerveja é coisa sagrada, para esquerdopatas e terraplanistas. Disso, você já sabe. É o que obriga os dois a acreditarem na água, mesmo que no fim da rodada cada um dê um peso para aquele “produto”. Mas nestes dias de pré-derrubada do atual prefeito do Rio (com o caminho aberto pela queda do Trump), faz mais sentido a gente falar naquilo que — pra te influenciar — colocam no teu WApp (e não na piada mais velha, sobre o que puseram na água) e não no encanamento. Capivarinha esperta não deveria beber qualquer água ou acreditar em qualquer vídeo. Mas não podemos esperar muito de capivarinhas.

Pois então: tava em algumas bolhas, no WApp, a historinha de uma Patrícia que teria pedido ao menino do boteco que cruzasse uma praça inteira para, como um favor, comprar para ela um maço de cigarros. A primeira resposta dele, depois da cara de descrença diante do pedido, foi o “não”. A cliente seguiu tentando. Explicou que estava usando saltos muito altos e que precisava fazer aquilo porque o calçado tinha sido presente da avó. “Tenho que provar para a minha avó que usei o presente dela”, declarou, sorrindo. A cara do garçom continuou sendo de descrença. Faltam palavras para descrever a cara de quem estava em volta, alguém que provavelmente frequentou alguma aula de teatro.

Conhecida num passado não muito distante como destruidora de superego, a cerveja pós-pandemia poderá ajudar em duas coisas: combustível para juntar os cacos dos muros que forem quebrados. E, o que é mais provável, a quebrar barreiras que durante estes dias difíceis acabaram se solidificando ainda mais. Como sempre, haja goró.

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Pobres elétrons

Hoje em dia, não se fala em rebobinar. Mas para sugerir uma rápida volta aos anos 80, talvez até valha apelar pra um vocábulo tão das antigas. Era uma época em que, num certo colégio em Marechal Hermes, subúrbio carioca, havia o temido trote. O moleque que entrava lá ficava careca, era obrigado a matar formigas no grito, medir o campo de futebol com um palitinho. O movimento estudantil ainda organizava congressos e havia quem acreditasse numa certa revolução. O clima era de abertura. Os pais mais precavidos/desconfiados avisavam aos filhos que tomassem cuidado com o que diziam no colégio. Mas a perspectiva, de um modo geral, e ainda mais se compararmos com os dias de hoje, era favorável. Ah, o trote. É possível entender melhor o trote lendo “O calvário dos carecas”, do Glauco Mattoso.

No livro, o sado-maso-poeta/escriba mergulhava fundo para entender/explicar aquela “tradição”. Era possível dizer que se tratava de uma tradição. Até os professores davam uma zoada nos alunos. Aquele colégio de Marechal Hermes, por exemplo, oferecia cursos técnicos. Entre eles, o de eletrônica. Foi para muitos uma chance aprender que os chuveiros elétricos têm “resistor” e não “resistência”, como todo (o resto do) mundo acreditava. Os professores deste curso davam aos novatos uma lista de material, logo na primeira aula. Aquelas coisas poderiam ser facilmente achadas nas lojas de componentes eletrônicos que pipocavam no subúrbio e no centro do Rio. Menos uma parada: o tubinho de elétrons livres.

Havia CDFs, claro, eles estão em todas as gerações, e alguns pareciam saber que não seria possível comprar um “tubo de elétrons livres”. Mas a maioria sofria percorrendo lojas para voltar à escola com a lista completa, com tudo que diziam ser necessário para as primeiras experiências. Sim, havia laboratórios e eles funcionavam: o projeto de destruição da educação pública ainda não estava no estágio atual. As relações, a despeito das maldades que os veteranos exercitavam com os calouros, também pareciam ser melhores. Bota aí uma dose de saudosismo, claro. Mas não esqueça que nem se falava em internet. Em muitas lojas, os vendedores diziam que “acabou isso aí, deve chegar depois…”

Já existia polarização. Porque polarização é tipo CDF: parece que sempre existiu. Mas — e aí o saudosismo já não tem tanto peso na conclusão — mas aparentemente existia também mais espaço para discutir e elaborar as coisas. Pode ter a ver com a velocidade com que tudo acontece, hoje em dia. Mas pode ser que a explicação vá além disso. Aqui, não há a pretensão de explicar nada. Só há mesmo um certo lamento. Depois que você aprende um pouco sobre elétrons livres e “entende” a polarização sob a luz da Física, dá até pra dizer que com algum tutano dá para sacar a polarização no mundo de uma maneira mais, digamos, consistente.

Para muita gente, ter tutano hoje em dia é falar em “empreendedorismo”. Há quem apele para a “inteligência emocional” para relativizar a formação de laços entre monstros e monstros-ainda-mais-monstruosos. Já não podemos encontrar tantas lojas de componentes eletrônicos, apesar de até aparelhos como máquinas de lavar, atualmente, serem controlados por placas de circuito integrado. Isso sem falar nos toca-discos, que seguem em alta. Os elétrons que antes eram livres parecem, coitados, estar hoje presos e a serviço de circuitos que cheiram muito mal. Devem ser vendidos por algum site, bem baratinhos, com entrega em no máximo duas semanas, vindo diretamente do outro lado do mundo. O que prova que, mesmo velhas, frases de ordem podem servir para alguma coisa. Liberdade para os elétrons!

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Boteco connection

Dali, de trás do balcão, pelo que podia ver, nada tinha mudado muito. Havia o dinheiro mais curto. Quer dizer, quase não havia dinheiro. Quando aparecia, era o de plástico. Mas tirando isso estavam lá os bêbados, as bêbadas em menor número, crianças pedindo salgadinho, vendedores tentando emplacar uma mercadoria nova que não era assim tão nova e por isso era quase certo que não conseguiriam nada. Os incansáveis adestradores de amendoins, que jamais faltavam e impressionavam todo mundo com sua capacidade de encaixar aquele papelzinho com uma família de “bichinhos” no meio da mesa-selva de garrafas vazias e copos pela metade. O pessoal de esquerda e de direita se misturando, de novo, nos hábitos, quase como se não houvesse mesmo nenhuma diferença entre eles, como se esta distinção tivesse deixado de existir. Talvez fosse possível dizer que estavam todos mais tolerantes. Talvez. Tolerantes entre aspas, claro. Cansados, com certeza. Cerveja já não deixava ninguém relax.

O cara do bar ficava um pouco angustiado com aquela história de usar máscara e fechar mais cedo. Sentia que estava deixando crescer uma espécie de dívida com a Madrugada. Tinha a Madrugada, que ele sempre havia considerado uma amiga, carinhosa e silenciosa, mas agora a distância entre os dois crescia e o deixava angustiado. A distância era tipo capim: tomava espaço, preenchia gretas. Se havia “alguém” com quem não queria faltar com o respeito, era com a Dona Madrugada. Escolhia muito bem, ele, o que e quem merecia “respeito”. Mas vinha parecendo impossível negociar qualquer coisa, então, o que sobrava era a resignação. E a percepção de que aquela grande amiga estava como que indo embora. Seria capaz de ir e nunca mais voltar, a Madrugada? Temia que não fosse um afastamento temporário, como todo mundo apostava. Tentava não pensar nisso. Ver de longe a grande amiga era doloroso demais.

Houve quem dissesse que ele andava cuidando das cervejas com mais carinho. Zoaram a ponto de jurar que estavam mais geladas. Coisa que ofendia o dono do boteco. Porque ele sempre — sempre — fez questão de não dar mole de ser encaixado no perfil do porcalhão e de avarento. Fazia isso não economizando em boas geladeiras e organizando a pia do estabelecimento, oferecendo copos descartáveis para quem insistia em beber na calçada, usando papel branco — em vez do pardo e do rosado, que até eram mais baratos — para embrulhar as empadinhas que a dona Silvia entregava e que eram um sucesso. As noites de terças, quintas e sábados eram noites de empadinhas.

Dona Silvia tinha provocado uma tempestade porque “permitiu” que um fio de cabelo ocupasse um espaço bem indevido numa das empadinhas de camarão. “Porra, justo na de camarão.” Costumava comer, de vez em quando, uma ou outra empadinha. De camarão. Sempre de camarão. Só vendia coisas que era capaz de comer. E cervejas que era capaz de beber. E, numa dessas, encontrou o fio. Quase vomitou. E amaldiçoou dona Silvia, por conta daquele vacilo. Jurou que não compraria mais os produtos dela. Por “sorte”, tinha sido ele o contemplado com o fio de cabelo na iguaria. “Imagina se acontece com o seu Zeca, aquele… Ia todo mundo achar que sou porco… Não posso dar esse mole.”

Dona Silvia dependia dos salgadinhos para pagar as contas. E o bar do amigo da Madrugada era o melhor cliente. Na verdade, o único com regularidade. Ela fez cara de desesperada, disse que não sabia como aquilo tinha acontecido, explicou que usava touca justamente para evitar este tipo de chateação… Depois de ouvir as explicações, Tito, o amigo da Madrugada se chamava Tito, ficou se perguntando se o que tinha encontrado era mesmo cabelo ou se não poderia ter sido um fio dental que ficara preso nos dentes, da noite anterior. Tito usava fio dental. E isso era outro motivo de orgulho dele. Acabou aceitando o pedido de perdão de dona Silvia. O que fez com que ela se perguntasse: “Será que anos atrás, quando os dois se separaram, faltou empenho da parte dela?” Foi tomada pela sensação de que havia perdido seu grande amor por descuido.  E por falta de insistência.

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Decolagens

Vários assuntos que não emplacaram muito. Tretas-wanna-bes que se desdobram em pensamentos selvagens, paulo-coelhamente falando, e se revelam verdadeiros tiros n’água, conforme os parágrafos se passam. Pode ser o caso de colocar em prática, ou pelo menos ensaiar, um coisa que o Lúcio Medeiros, da Casa de Ferreiro achou boa ideia: um texto-proposta-de-pauta. Na verdade, o que o LM achou bom foi um grupo de WApp que nas brigas gere conteúdo pra um zine. Mas é quase a mesma coisa.

1. Pode ser que exista mesmo uma “estética da maldade”. Simplificando muito, você vasculha vilões de desenhos animados antigos, esbarra nos Irmãos Bacalhau, assistentes do Tião Gavião no bom e velho “Os apuros de Penélope”, e aqueles narigões ali… de alguma maneira criam uma expressão que lembra o Gru do (bem mais recente) “Meu malvado favorito”. Isso sem falar no Sr. Burns, de “Os Simpsons”. Ah, e quando bigodinhos se encaixam direitinho perto dos focinhos dos fascistas, parecemos estar diante de outra comprovação. Para combater isso, a Força parece às vezes ser a saída. “A Força?”, pergunta/desdenha um amigo. “Aquela coisa Jedi…”, parece ser uma resposta rápida e bem adequada, pra ninguém ficar achando que é briga de turma desta vizinhança contra aquela outra. A fé numa coisa criada/chupada pelo George Lucas pode não dar em nada. Mas fé é fé, Força é Força, e aqui nesta bolha está todo mundo muito mais pra dar uma moral pro Darth Vader do que pro Bispo Macedo. Amigos existem pra te zoar e a zoação, quando é um despertador que vai te tirar MESMO da cama, aí, sim, tá valendo. A batalha decisiva está acontecendo neste instante.

2. Pra relaxar, não vai dar pra ouvir o álbum novo do Thurston Moore, no formato vinil, agora; por causa do preço. Também não vai ser o caso de ler logo o livro novo da ex-dele, a Kim Gordon, recém-lançado na gringa. Será aquilo mesmo que está lá na Amazon, $ 259,68? Ah, tá, deve ser por causa da capa dura. Mal sabem eles que estamos todos duros aqui neste lado da Linha do Equador. Voltando à maldade e suas carinhas às vezes narigudas, cabe a gente ficar imaginando como s(er)ão os cornos do mandachuva de lá da Amazon. Não vamos gastar Google com isso, camos apenas imaginar.

3. Nestes dias de pandemia, a máscara, que pelo que se vê nas ruas foi uma moda que ainda não colou muito, escapou fácil de possíveis acusações de enfeiamento. Ela não piora mané nenhum. Pelo contrário: esconde o narigão dos vilões, cria uma barreira para bafos desagradáveis e… aí, pra quem já é adulto, oferece a possibilidade de revelar (e logo depois, esconder, de novo) um sorriso. Funciona quase como uma piscada de olho. Experimente. Sorria, por baixo da máscara, e se você fizer isso bem feitinho os olhos entregarão já um pouco do que está acontecendo. Mas (longe de aglomerações, por favor, tá?) experimente manter o sorriso, afastar muito rapidamente a máscara e depois colocá-la de volta. Funciona muito bem.

4. Assim como tem seca-pimenteira, podia ter seca-vírus, né? Seria muito mais útil e bem-vindo, nos dias de hoje. Nos dias de hoje, na verdade, pela onda que está se formando, seria “bem-vinde”. Imagina aquela pessoa que você encontra na esquina e, mesmo sem tirar da cara a proteção de pano, te deixa zerado, ou zerade, no bom sentido, o sentido sem-Covid. Inveja em tempos internéticos: como lidar com isso? Telefonemas em tempos internéticos: como lidar com isso?

5. Uma frase como “Aviões decolam contra o vento” é mesmo capaz de ajudar alguém a encarar uma quinta-feira que tem tudo para ser desastrosa?

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Seja pvc

Mais uma daquelas cenas em que as pessoas se encontram, demonstram pra começar algum entusiasmo e vão invariavelmente murchando abrigadas/protegidas dentro de suas máscaras e amarras pandêmicas. A estas, uma boa dose de Bruce Lee! O cara que já se foi mas em vídeos nos explica que a água deve/pode tornar-se a garrafa. E este espaço todo que anda ficando entre as pessoas, este void/vazio que parece ser impossível de preencher, hoje em dia, como a gente vai resolver isso, depois da vacina? Como, Bruce? De onde você estiver, mande uma resposta ou um sinal. Será esta a grande transformação pela qual vai passar a classe média, a tomada de consciência a respeito do vazio que mais do que nunca HÁ entre as pessoas?

Claro que não, né, porque esperar que o classe-mediano-mediano experimente um insight qualquer, mesmo dos pequenininhos, e perceba seu lugar no mundo, antes ou depois da pandemia, tanto faz, é esperar demais. Está aí, o novo grande ensinamento pandêmico é este, a grande queda da ficha é: “O idiota classe-mediano não vai aprender nada mesmo, porque ele não veio ao mundo para aprender. Ele bebe uma cachaça e fala besteira com o peito estufado. E só.” Quer dizer, aprende, sim, uma ou outra música de torcida, um ou outro passinho de dança, e o estrangulamento básico — porque não basta alimentar-se bem, é preciso praticar um esporte maneiro para conseguir encarar este mundão de meu Deus.

É justamente do vazio que falava o cozinheiro desempregado, ali na mesa ao lado. Ele acredita que “os restaurantes vão precisar se reinventar”. E depois de declarar de peito também projetado pra frente suas crenças básicas, aos quase-aglomerados tasqueiros em derredor, ele pode ter deixado muita gente em dúvida sobre quantos vídeos no YT precisou ver para chegar a esta conclusão. A pergunta seguinte também é básica para os dias de hoje: quando ele vai começar o seu próprio canal naquela rede? É mais fácil ser showman do que fazer batatas fritas decentes? Há quem acredite que sim. O que será que Bruce, lá de onde ele está, tem a dizer sobre essa dicotomia?

Por falar em batata frita, o segredo para muitos candidatos à fama parece ser este: transformar-se numa espécie de salgadinho. E na Grande Lanchonete Universal do Reino do Entretenimento seguir se movimentando para que as pessoas babem de vontade de morder algo todas as vezes que te percebem na tela. Simples assim. Vale dizer que por trás de uma batata-frita-style muitas vezes há técnicas surpreendentes. No próprio YT, você vai encontrar receitas que dizem que o segredo é fritar duas vezes. Há muitos segredos por trás de uma batata. Imaginem o que nos escondem os pastéis, hein!?

Está aí uma instituição que perigou sumir do mapa, ou pelo menos das feiras, nestes tempos de Covid. Foi estranho ver rolos e mais rolos de plástico finíssimo envolvendo as barracas que servem caldos de cana, pastéis e hoje em dia também quibes e bolinhos de bacalhau. Agora, é estranho testemunhar que aquela barreira já foi dispensada. De repente, é isso, hein… Lições da pandemia… É com filme de pvc que vamos “amenizar” o danado do vazio. O que Bruce Lee diria sobre isso?

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E a Elca, hein…?

O Rogério, de vez em quando, apelava para o palavrão mas tinha a vantagem de conseguir com que tudo — ou pelo menos muita coisa — saísse da sua boca de maneira suave: “Chove pra caralho, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.” Rogério se foi quando ainda podia ser chamado de “jovem”, carregando uma acidez que não era bem mau humor, era uma coisa que, sabe, os amigos perdoavam mas não era por isso que não era mau humor… Era um troço que ninguém sabia explicar direito. Nem mesmo os amigos. Talvez por isso achassem melhor perdoar. Claro que era melhor. Mesmo que Rogério não fosse santo. Aliás, não o chamavam muito pelo nome completo. Preferiam Roger. Muitas vezes, depois de tirar o acento agudo e aquelas duas últimas letras, davam uma risada que… que era a comprovação de que não havia mau humor ali naquelas rodas.

Alguns parceiros de Roger, quando se encontravam num boteco, gostaram de falar também do Marcos. Que era outro que tinha partido e a quem raramente se referiam pelo nome. Preferiam falar Meleka. E era assim com “k” porque se tratava de uma espécie de precursor da cultura da tag. Como Roger resumia bem: “O filho-da-puta era um rabiscador de mesa, na escola.” Era mesmo, porque tinha um problema com sua letra: achava horrível, o resultado; sentia vergonha. Não houve caderno de caligrafia que desse jeito. E quando Meleka se cansou de ouvir os camaradas dizerem que ele tinha “letra de médico”, começou a escrever usando “letra de imprensa”. Ou “letra tipo bastão”, como aprendera na aula de Técnicas Comerciais, numa escola pública da Penha. As mesinhas que ocupava na escola eram invariavelmente preenchidas por letras tipo bastão. Escrevia letras de músicas dos grupos punks que curtia. E às vezes fazia desenhos. O melhor de todos foi um garçom correndo com uma bandeja.

Um dos sobreviventes, quando passava de quatro cachaças, sempre, sempre puxava uma discussão sobre um possível encontro entre Roger e Meleka, no Além. E era sempre o Além que esticava as argumentações, as manifestações de descrença e desgosto, as defesas apaixonadas e cheias e culpa. Pulavam daí para a política e começavam a falar mal do prefeito da cidade. Era quando todos voltavam a rir, não sem uma dose de preocupação, mas sentindo o cheiro da adolescência, de quando acreditavam na “revolução” e panfletavam e escreviam nas paredes frases que consideravam transformadoras e capazes de mobilizar as pessoas. Meleka escrevia estas mensagens com letras tipo bastão. E saía tudo tão arrumadinho, às vezes, que ele tinha medo que pudesse ser preso por conta daquilo. Todo mundo ria, lembrando dessa história. Era certo que em algum momento falassem da Elza, por quem um dia todos tinham se apaixonado. Na certa, alguém ia perguntar, arrancando uma gargalhada-geral: “E a Elca, hein…?”