”Ano do meu nascimento e da sepultura do meu avô. Minha tia falou isso uma vez e eu não esqueci mais.”
Categoria: Freudcast
Parou ali, no Café Gaúcho, na volta de Niterói, aquela cidade escura, e quando percebeu já estava bebendo um. Conseguiu resistir aos sanduíches, aos rissoles, às empadas. A ilha do cafezinho, que mesmo em tempo de pandemia fica bem movimentada, durante o dia, já estava fechada. Era quase noite. Ou já era noite. Tanto faz, como tanto fez. Se desse alguma merda no estômago, como vinha acontecendo, a culpa seria só do goró. Nada de rissoles. Sempre é mais fácil, assim, quando a gente tem certeza do que ou quem deve condenar.
A questão não era complicada. Era aquela escrotice de quase sempre. Dinheiro, trabalho, compromissos, responsas. Outra condenação certa. Para compensar, havia a mensagem do Lúcio, que merece ser chamado de Mister Prata. Oferecendo ajuda, falando dos perrengues que ele mesmo andava encarando, das cervejas que eram cada vez mais raras. A mensagem do Mister Prata tinha sido a companhia ideal para a travessia de barca. Um percurso que, à noite, de Niterói, aquela cidade escura, para o Rio, aquela cidade que é o que mesmo, hein?, bem, de Niterói pro Rio, a mensagem do cara tinha sido a companhia ideal porque vinha recheada de ideias para um zine. Pra um livro. Pra uma conversa.
Foi uma quase-conversa. E serviu para um entendimento importante: não é só no táxi que é difícil digitar ou jogar xadrez, no celular. Na barca, quando a gente faz o percurso entre a cidade escura e a cidade sobre a qual não se deve falar nada, porque é a cidade da gente, deu pra perceber que mesmo com pouca trepidação é muito difícil se entender coa’quele tecladinho. Assim como é muito fácil errar a jogada no xadrez e fazer besteira numa partida que parecia possível vencer.
Não deu pra resistir por muito tempo. Uma empadinha faria, no máximo, o papel de disputar com a bebida o posto de vilã. E a gente não espera isso de uma empada. Quem quer ser vilã ou vilão? As empadinhas estão sintonizadas com o que rola nas redes sociais, querem só parecer boazinhas pra todo mundo. Conseguem. Para um estômago que já estava mesmo embrulhado, tudo bem, né? Uma segunda tulipa. Uma terceira, junto com o pensamento de que uma bala de hortelã seria necessária para evitar problemas. Problema é aquilo que vem depois de um bafo inesperado/inadequado de cerveja. Quer dizer, quando é só um bafo, tudo bem. O problema é isso na cara de outrem.
Pelo que diz o vídeo de agora, no YouTube, as pessoas na Grécia também têm problemas com bafo de cerveja. Como serão as balas de hortelã de lá? Ou o que será que usam para evitar problemas, naquela parte do planeta? Medo de andar errado, uma preocupação extrema, quase paralisia. Não dá pra caminhar e vr vídeo. Porra, mas três chopes, só, e isso ficou assim desse jeito? Foram mesmo só três chopes? A pergunta se repetia mais do que os anúncios no YT, antes de cada música. Na esquina escura-mas-clara, porque era uma esquina do Rio, ou clara-mas-escura, porque era da cidade que de uma maneira ou de outra sempre acolhe. Mesmo que seja uma acolhida para na sequência conduzir a um quarto em que os spankings de revistas alemãs antigas parecerão fichinha diante do placar marcado no lombo do cordeiro. Sete a um. Dez a zero. Um a zero que seja, porque o que vale é ganhar.
Tem sempre alguém dando palpite na orelha da gente. Quase nunca é uma pessoa equilibrada. A gente suporta porque palpite, geralmente, vem baixinho, disfarçado de conselho. Sempre é necessário ter cuidado com os conselhos que pipocam por aí. Alguém que não tem coragem de agir deveria concentrar-se na própria covardia, apenas, em vez de encher o saco do resto da humanidade. Quatro chopes. Cinco chopes. Foram seis. Seis chopes.
Unboxing? Desencaixotar, desembalar? Até a psicanalista pop-da-moda falou disso. Quer dizer, ela fez isso, comemorando a placa youtúbica que havia recebido pela marca de cem mil seguidores clicantes. O seguidor clicante é melhor do que o seguidor comum. Número não é mais apenas número. Número tem que clicar. Número bom é número que clica — depois claro de uns bons 30 segundos hipnotizado por um anúncio. Décadas atrás, quando se falava em desencaixotar alguma coisa, a gente que curtia um pouco de cinema lembrava de Helena. Era uma época em que você se escondia “tranquilamente” dentro de uma sala de projeção, sem ficar pensando se estavam todos vacinados, de máscara, livres de tosse, com o frasquinho de álcool cheio etc. Helena era a personagem de “Encaixotando Helena” (“Boxing Helena”, de 1993).
Tem sido um pouco mais possível sair de nossas caixas, ultimamente. Dos armários e das caixas, vale dizer, porque parece haver alguma diferença. Vamos considerar como “caixas” as nossas casas, nós que temos casas e reclamamos do frio com a sensação de que estamos prestes a viver um sonho comum na infância de muita gente: morar num país em que há neve. Morar num país em que não haja picaretagem política deve ter sido um sonho de bem menos gente porque parece ainda muito longe de se tornar realidade.
De volta às caixas, quer dizer, ao exterior das caixas: ainda é um pouco preocupante. Passou a época em que você precisava ir a uma sala de cinema com o intuito de sentir medo. Basta ficar na rua. A máscara própria parece um sonho tão distante quanto o da casa própria. Ou o do amor próprio (*). Ponderações classe-medianas, é disso que estamos falando; tá bom, tá bom. Pode atirar a primeira máscara. “O sonho da máscara própria”: está aí uma boa frase, hein!? Veja onde um desencaixotamento pode levar o sujeito. Se já frequentamos shows em que calcinhas eram jogadas no palco, quem sabe chegará o dia em que máscaras terão o mesmo destino…
Por falar em sujeito, além da psicanalista pop-da-moda, outros psis saíram de suas salas confortáveis para ocupar nossas telas. Não se satisfazem/realizam mais com a transferência à moda antiga. Agora, tem que ser no esquema transferência de dados mesmo, porque é outra maneira de fazer um dinheirinho. Claro que não é exclusividade deles. E daqui a pouco pode ser que a gente, mais escabreado ou pouco disposto a encarar um sábado infeliz, evite certas vizinhanças virtuais. Vizinhanças virtuais, sim: onde há calçadas virtuais… Lugares escolhidos por classe-medianos que já não conseguem promover churrascos e feijoadas de aniversário. Pontos em que se derramam em seus discursos sobre originalidade para pedirem aos conhecidos que ajudem a realizar o sonho do canal monetizado próprio. * — Valeu pela inspiração-referência, Agrade Camiz.
Cartaz
Paulinho chegava sempre com uma fome que parecia mórbida. Pedia a quem estivesse por perto que lhe pagasse um pedaço de empadão de frango. Às vezes, conseguia. Teve um dia em que chegou no balcão, não viu ninguém nas mesas e arriscou com a tiazinha que trabalhava no lugar: “Esse empadão aí tá sobrando, né?” Ela era boa e rápida nas respostas: “Aqui, nada sobra…” Com a barba mais por-fazer do que geralmente mostrava, entregando muitos fiapos brancos, o avoado insistiu. Na verdade, ele não era avoado, mas estava alheio a tudo, inclusive às caras de poucos amigos que a tiazinha tinha na manga: “Mas se sobrar você pode me dar?” O fechamento da conversa veio sem nenhuma vírgula diferente: “Aqui, nada sobra…”
Às vezes, e geralmente isso acontecia à noite, Paulinho andava com um cartaz. Com aquilo, pedia ajuda. Ou achava que estava pedindo. Provavelmente, não era nada escrito/feito por ele. Muitas vezes, a mensagem parecia uma zoação. Como quando trazia a frase “Eu quero casar”. Os observadores mais constantes sabiam que, em momentos de crise, o “maluco” repetia aquela frase. Houve uma noite em que a praça estava recheada de policiais, por algum motivo, e deu para perceber o olhar de que-porra-é-essa-? que alguns dos fardados faziam quando viam Paulinho passar pela calçada, entrando e saindo dos bares, em alta velocidade, gritando isso: “Eu quero casar? Eu quero casar!” A frase do cartaz vinha de algum lugar da alma daquele sujeito.
Talvez fosse lá da alma também que viesse a força para um agudo assustador. Mesmo para policiais em bando. Dava pra ver pelas caras, de espanto, descrença… Aproveitando que se tratava claramente de um “maluco”, os homens da lei ficavam só observando. Paulinho era grandalhão e segurá-lo, para que parasse de gritar ou revisse aquela história de anunciar num cartaz o desejo de casório, não seria fácil. Para quem era do time sem farda mas ficava também só observando, podia surgir alguma pergunta do tipo “De onde vem essa história de o cara andar por aí gritando que quer casar?”. A vizinhança quase não recebia forasteiros, então, de um modo geral, ninguém se assustava com a eventual gritaria. Aguentar a música dos playbas, madrugada adentro, com seus carros abertos, meio que garantindo que ninguém na área ia dormir direito, era mais chato do que testemunhar a peregrinação repetitiva e neurótica do Paulinho.
De vez em quando, surgia uma resposta. Ou era um médico qualquer explicando o comportamento do candidato a noivo ou um morador mais antigo repetindo uma história não muito divulgada: “Paulinho era normal. Até queria casar, como todo mundo, mas era normal. Não ficava gritando isso por aí, não. Empadão, ele comia como todo mundo… Mas ele trabalhava pro pessoal do Bicho e, parece, pegou um dinheiro que não era pra pegar… Levou uma surra que deixou ele assim, meio abobado…” Havia uma outra versão, de que o Paulinho fingia que tinha ficado doido porque, sem conseguir repor o dinheiro, ficar maluco foi a saída para continuar vivo.
Uns “humoristas” tinham criado para o showman da área uma conta num aplicativo de encontros. Entre eles, um advogado que se divertia bebendo por ali e misturando português e inglês. Sempre que via o Paulinho, gritava, num agudo que devia ser comum aos de pouco juízo: “C’mon, Paulinho! Come here!” Numa noite de frio, esse aí deu ao Paulinho uma jaqueta branca. Estava usando a peça, tirou e deu ao solitário do cartaz: “Com uma jaqueta assim, você vai arrumar hoje mesmo um casamento…” Paulinho agradeceu. E na sequência perguntou se podia ganhar também um pedaço de empadão.
Minguante
Os balcões dão à gente a chance de ouvir muita coisa. Tem muita bobagem. Mas conte também com razoáveis lições de vida. E piadas. De todos os tipos, sendo que a maioria não é razoável, se é que se pode mesmo esperar isso de um chiste. Dava para dispensar as chatices tipo as do pessoal que reclama dos pedintes que “daqui a pouco vão ter máquina de cartão para tirar dinheiro nosso”. Dava também para não ter assim tantas baratas na calçada, porque, ao contrário dos balcões, elas rendem mais gritinhos histéricos do que ensinamentos. Além de quase invariavelmente piorarem o carma da rapaziada que se vale de pesados calçados na condução de esmagamentos atabalhoados e bem pouco cinematográficos.
“É, a gente brigou. É sempre assim, a senhora sabe”, choraminga a moça que, parecendo exausta, desaba debruçada sobre uma mochila, duas sacolas de mercado e uma quarta bolsa que parece mais pesada do que todas as três primeiras juntas. Quase um acampamento. Ela reclama do marido, numa ladainha que pelo sorriso — debochado? desdenhoso? — a atendente parece reconhecer. E como que para eleger a noite como definitivamente apropriada para a piora dos carmas dos presentes, aquela-que-dá-cervejas-a-quem-pede-desde-que-pague-na-hora coloca uma pilha bem errada: estimula a falação da cliente sofredora. Sob os olhares desaprovadores de todos os outros presentes, que chegam a oito cabeças, porque é um balcão comprido, a reza se estende por uns bons 15 segundos. E, de repente, como acontece nos balcões, o pessoal conseguimos a liberdade, fugindo completamente daquele teaser de novela mexicana.
Nada contra as tramas televisivas daquela nacionalidade. Estão repletas de ensinamentos, assim sem aspas mesmo, e assim como os balcões. Quando acontece de os dois universos se misturarem, aí, olha, aí é um prêmio na loteria. Uma chance de lidar melhor com o desembrulhar do carma. Quer coisa melhor do que perceber o incômodo na voz de um intelectual cachaceiro? Ah, sim, o capítulo que estava em andamento: o beberrão seboso se incomoda com os movimentos de um outro que, rapidamente, consegue embrenhar-se na prosa de duas moças. Elas, além de darem trela, dão sorrisos, o número do WApp, aceitam cervejas, cobrem de elogios a empadinha já famosa que toparam também como mimo e… E está mexicanizada, a novela do bar. Olhares dos quais escorrem ódios. Falas que desenterram problemáticas antigas. Espetáculos assim não são pra qualquer um. Quem ficou atento ao início mal pode esperar pelas próximas cenas. A noite naquela calçada úmida promete ser quente. O pico deve ficar árido.
Quem está sob a luz da lua, que naquela noite de dança dos agravamentos cármicos é por acaso minguante, tem a chance de perceber a Fiscalização se aproximando. Geral parece saber que é assim, com maiúsculas, que aquele pessoal uniformizado gosta de ser tratado. É quando há uma união, mesmo que rápida, entre o pessoal que acha que está enricando além da conta o dono do bar. Há temor, além de um inexplicável desejo de desafiar a Lei. Referem-se à Lei, assim, com maiúscula, mas com dúvida. E isso aumenta o desejo de pagar para ver. Ainda mais que quem vai pagar mais caro, no fim de tudo, é o proprietário do estabelecimento. Ele preferia que a “brincadeira” ficasse só na questão do carma. Mas nem sempre é assim.
Vai ter que trabalhar isso aí. Ficar só no medo não adianta nada.
Carinha de anjo. “Anjo de cu é rola.”
Era fácil encontrar um traço de saudade, em qualquer crônica que se embrenhasse por botecos. Goró é a droga “permitida”, então, pra muita gente, é sobre ele/ela que se deve/pode escrever. E sobre a relação entre isso e os desdobramentos que podem surgir nas vidas de quem está em volta. Quando o assunto é uma desgraça, porque todo mundo sabe que o álcool provoca muita tragédia, aí a gente não chama de crônica e esquece das vezes em que celebramos a “permissão” que reina por aí. Para quem pode, é bom esquecer.
Antigamente, tinha aquela possibilidade de piada, que era o cara dizer “sou maior e vacinado”, o que parecia deixar clara uma certa “permissão” para pequenas (e às vezes grandes) ousadias. Agora, com a escassez de doses contra o Covid-19, não faz muito sentido recorrer a essa alegoria. E marcar ponto nos botecos envolve um certo risco. Tem isso, também. Risco de vida, pode-se dizer, porque estamos falando da possibilidade de contágio. Não é todo mundo que pode correr tal risco…
Mas os balcões e seus atendentes-terapeutas seguem resistindo. Neste momento, aqui em frente ao escriba, há um desenrolo desses que fazem o calouro querer prestar atenção em todos os detalhes. Vale dizer “calouro” porque, para quem já conhece ao menos de vista o personagem que está ali em ação, sabe que a conversinha picareta se repete sempre e não leva a lugar nenhum. Vender cerveja requer doses gigantescas de paciência.
Mas uma série de promessas/esporros e desculpas, repetidas diversas vezes, seguidas por intervalos com suor, caras-vermelhas e confissões quase choronas merece registro. Enquanto se puder fazer isso dando a outrem uma provinha do gosto que há nesta brincadeira, que se faça. Vamos aproveitar as permissões que temos. Mas com responsabilidade. E antes que seja tarde.
Uma piada não precisa ser repetida inconsciente e insistentemente para correr o risco de gerar risos amarelos. E amarelo não é problema. Nem vermelho. O problema hoje em dia é verde-e-amarelo, isso, sim.
Magnéticas
Tinha 13 anos e quando percebeu que acreditava que seguir as pessoas certas pod(er)ia “dar dinheiro, um dia”, no Grande Jogo. Estava com a razão. Aos 31, tinha um carro que era o mais caro da vizinhança. E era uma vizinhança fresca, vale dizer, não a região miserável onde havia passado a infância e a adolescência de cara para o computador, aquele único grande luxo a que tivera certo acesso. Estava satisfeito por conseguir seguir as pessoas certas. Sentia aquilo como um dom. Dom dom mesmo, não dom de domingo.
Começaram a inventar um monte de coisa. Cada coisa… Precisavam criar, inventar. Era o jeito. Jeito de quê? De fazer o cascalho circular. Assim, rolou de os engravatados — porque estávamos numa nação de pessoas apaixonadas por gravatas e engravatados — criarem/flexibilizarem regras que transformariam milhões de seguidores em milhões de pingadores-contribuintes. Começar a seguir alguém na hora certa podia fazer de um adolescente de Rox Mix um playba com bala n’agulha.
Havia quem acreditasse que aquilo era uma nova onda de Young Urban Professionals, que outrora haviam sido enquadrados como Yuppies. Ums cusparada para o alto. O pombo que nasceu para acabar com a alegria do bancário na hora do almoço. Tem “Yupicide” escrito num encarte qualquer de uma banda californiana de punk rock. E aí o moleque percebeu que tinha um “talento” para ir atrás de, sei lá, rappers que um dia se transformariam em sucessos-fenômenos de massa. E modelos. E jogadores de futebol. Imagina ser o “dono” de cadeiras na primeira fila de estádios virtuais. Estava nos filmes de antigamente: lugares em estádios são bens preciosos.
Chegaram ao cúmulo de vender posições. Quanto cascalho rolando. Vender posições? É, vender posições. Se você é o centésimo mané, digo, investidor-cidadão a clicar naquele botão, pode ser que, dali a algum tempo, quando outras 37 milhões de pessoas tiverem feito o mesmo, aquela posição no ranking valha algum cascalho. Porque vira ranking. É como pagar mais para ter um bom lugar no estádio em que aquela celebridade vai aparecer. Quase isso mesmo.
Andava pensando em alianças. Carregava na cabeça a frase que havia lido, fazendo alusão às posses de um jogador de futebol. “O cara carrega um apartamento nos dedos.” “Que dinheirinho bom, hein, hein?” Joias. Queria ter joias. Tinha seguidores. Seguia e era seguido. Na “humildade”. Estava no caminho certo. Joinhas.
Viagem no tempo. Viagem no vento. Sem milhagem, não aguento.