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É, camará…

“Nem tudo que reluz é ouro… Nem tudo que balança cai…”, diz um corrido de Capoeira. Isso parece retratar bem nosso momento político, nos fazendo pensar que estamos em meio a um grande, grande jogo, né? Todo mundo achava que estava acontecendo uma coisa, mas, na verdade, é bem outra que se revela co’o andar da carruagem: é o que está implícito nas estrofes que abrem este texto. “Corridos” são os versos cantados por quem está, digamos, no comando da roda. E estes versos são respondidos pelos que integram o grupo e, não raramente, por quem está assistindo ao espetáculo. As respostas formam um coro. Talvez o corrido mais conhecido seja o “Paranaê…” Todo mundo sabe a resposta e isso ajuda muito a animar o jogo. O coro fica bonito.

Dependendo da escola, há às vezes gente batendo palmas; para com isso contribuir com o ritmo. Na Capoeira, a música pode funcionar como uma espécie de crônica: fala sobre o que está acontecendo, ali, no momento. Noutras ocasiões, é a música quem imprime/dita uma cadência, faz certos movimentos se desenvolverem ou, no mínimo, inspira isso. Uma canção superpode tornar mais rápidos e consequentemente mais agressivos os movimentos dos jogadores.

Assim… Se um participante leva uma rasteira, o puxador pode mudar rapidamente o canto e soltar um “Meu facão cortou em baixo, eu falei…” E todo mundo vai/deve responder: “A bananeira caiu!” Está aí um bom exemplo de “crônica”. Ou, por outro lado, se o mestre responsável num determinado instante avalia que o clima está morno demais, tem o “direito” de provocar, cantando algo como “Olha, rala o coco…” E a resposta para isso será: “Catarina!” Com a repetição de “Catarina!…”, de forma constante e mais acelerada do que vinha acontecendo até então no coro, é certo que os movimentos ficarão mais acalorados. No mínimo, mais animados/quentes.

Há outros tipos de música, nos rituais capoeirísticos. A Ladainha, que abre os trabalhos, é uma das mais importantes. Além de contar uma história, de muitas vezes fazer alusões, por exemplo, ao passado da vida dos negros escravos, a Ladainha pode conter provocações. Agachado, de frente para o oponente, um jogador pode puxar uma música que soe como afronta. E isso pode ser o prenúncio de uma movimentação particularmente ardilosa, com o intuito de desconcentrar/desnortear o “oponente”.

Co’essa história do confinamento, não se vê roda de Capoeira pela cidade. As pessoas já estão andando pela orla, enchendo bares, deixando máscaras de lado, mas roda de Capoeira — graças a Deus — ainda não anda rolando, o que talvez comprove que capoeirista é mesmo malandro(a). Malandro(a), no bom sentindo, sim. A “malandragem”, aliás, é um dos temas musicais mais recorrentes, nestas reuniões de praticantes da grande arte/luta que tem como referências mais famosas os mestres baianos Pastinha e Bimba.

Um corrido que nos faz pensar na situação política que a gente vive pode ser um convite para que mergulhemos noutros ensinamentos da Capoeira. Ficar bem atento ao que está acontecendo, no jogo, por exemplo. Isso é uma regra básica, que serve para a vida como um todo. Vai que na hora daquele bocejo despreocupado vem um pé na orelha… Na orelha de quem estava só assistindo ao jogo. Cabe a nós identificar o sujeito que, pela postura, ou por uma orquestração enganosa, sugere que é capaz de fazer e acontecer, mas… Mas em cinco segundos mostra que ginga feito um siri com câimbra. Atenção, camará! Atenção para o jogo em que te puseram. Atenção pra não responder errado na hora do coro, hein!

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Tonto, sim

Bené sabia que Tonto era o nome de um índio em algum programa de televisão. Da época em que era criança. Não estava certa se ainda era uma atração que podia ser vista, hoje em dia; mas lembrava de ter acompanhado uma história que tinha um personagem batizado daquele jeito: Tonto. Achava aquilo engraçado. Ficava se perguntando se tinha achado bonitão, o Tonto. Se era por tal motivo que havia decidido chamar daquela maneira o irmão mais novo. Era isso: foi por causa do Tonto da TV que o pequeno Antônio tinha recebido aquele apelido.

Até que a palavra Tonto tomasse conta da cabeça — ou saísse dos sonhos — de Bené, todo mundo chamava o menino de Tonho. Mas ela, aos 13 anos, já achava que tinha idade para decidir coisas importantes na vida, considerava “muito sem graça aquela história de Tonho”. Pensava que o menino merecia coisa melhor. E Tonto era bem melhor. Era uma escolha da qual ela se orgulhava. Muito. Não que tenha sido fácil. Considerou que seria, sim, um risco para o pequeno. Outras crianças talvez aproveitassem o apelido para na escola fazer chacota dele, por exemplo. Mas ela esperava que com aquela nova alcunha pudesse dar ao irmão também sabedoria para enfrentar as coisas difíceis que a vida por acaso colocasse no caminhozinho dele. Ela falava assim: “caminhozinho”.

Bené estava certa de que a humanidade a via com melhores olhos desde que tinha deixado para trás o Benedita escolhido por sua mãe. Ou seu pai. Ou sua avó. Ou seu avó. Vivia se perguntando quem tinha escolhido o nome que carregava. Nunca tivera coragem de perguntar sobre aquilo. Tinha medo da reação da mãe. E do pai. E da avó. E do avô. O avô era quem ela mais temia. Brincava com os nomes, para fazer parecer que era só mesmo brincadeira. Mas era uma estratégia. Bené era boa de apelidos e de estratégias. Era a sua Capoeira.

Esta semana que passou agora, Bené, já adulta, foi à feira com o irmão. Ele também já adulto, acostumado com o “Tonto” com que a irmã o tinha presenteado. Enquanto caminhavam, entre cachos de bananas, abacates e caquis, Bené apontou para uma graviola. Tonto entendeu logo o que ela quis dizer e os dois pararam para comprar. Ele tirou do bolso uma nota de 20 e deu ao feirante, achando que estava diante de um rosto algo familiar. E era mesmo. O vendedor sorriu um sorriso meio estranho, no qual Tonto identificou algum traço de deboche. Comprovou isso quando ouviu o sujeito dizendo: “Ah, o Tonto… fio de dona Zefa…”

O jeito como o mercador pronunciou “Tonto” causou um leve desconforto nos irmãos. Depois de dizer isso, o feirante separou três notas e deu ao rapaz. Era o troco. Três notas de dois. Fez isso e virou, como fosse atender outra pessoa que se aproximava da barraca. Foi um movimento muito rápido. Ele na verdade não ia atender ninguém. Tonto — mandingueiro, aprendiz de Bené — percebeu a manha. Levantou a cabeça, como que esticando o queixo para a frente, e coçou levemente o pescoço. O homem da feira voltou o olhar para o freguês, dessa vez sem qualquer traço de zombaria, e viu o movimento de ir e vir dos dedos do irmão de Bené, coçando o pescoço. Separou então uma nota de dez, que era o que faltava para completar o troco, e deu ao rapaz. Bené sorriu, certa de que tinha ensinado coisas importantes ao irmão.

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Comportamento Crônica Literatice

Bocas e suas orientações políticas

Outro dia, numa pesquisa de Twitter, uma jornalista usou a linha do tempo para tocar uma pauta: “Quantas pessoas de esquerda estão com empregada em casa na pandemia?” Era provavelmente uma pesquisa para achar personagens para uma matéria. Mas um detalhe — o “de esquerda” — chamou a atenção de gente que noutra esquina da rede mundial de computadores discutia os “50 tons de esquerda”. Era um grupo de lero às vezes bem-humorado, batizado a partir do nome daquele filme de 2015. Uma galera também muito “atenta”, do tipo que está em casa agora durante o isolamento, porque pode. Gente capaz de pescar a pesquisa da repórter para rechear suas argumentações, contra e a favor de qualquer coisa.

Para você ter uma ideia do que rolava: ali, naquela aglomeração internética, e portanto atualmente permitida, era possível ler coisas como “se é de esquerda, não tem como ser machista”. Questão que, como resposta, TODAS dadas por mulheres, além de uma ameaça de tapa na cara gerou a única unanimidade daquela tarde: a conclusão de que estavam diante de um “esquerdomacho”. A ameaça de esbofeteamento, caso venha mesmo a acontecer, só após o período de isolamento. A conferir.

Quanta variedade, nestas discussões de grupos de mensagens! É. Parecia feira. Dá pra imaginar pessoas de jaleco, sacudindo moedas nos bolsos como se fossem chocalhos e oferecendo seus produtos, quase esfregando na cara da dona que passa com o carrinho aquele caqui da promoção. “Experimenta, experimenta aqui!” Ofertas que às vezes soavam como ameaças. Houve quem aparecesse para dizer que não acreditava mais em Esquerda. O “consolo” é que não acreditava também em Direita, o que para ambos os lados pareceu ainda pior.

Estavam ligados pelo desconforto. Sim, parecia que no debate eram todos esquerdopatas, mas falar dos tons quase colocava alguém do/de outro lado. Mesmo num grupo em que os membros se identificavam pelas ideias em comum, havia diferenças. E aí… havia lados diferentes. Pra não dizer opostos. O que pra muitos significava “Direita”. A conferir, também — aí, provavelmente, só nas próximas eleições. Quando e se surgir o papo de “voto útil”, isso poderá ajudar muito.

“Eu nunca tive dúvidas de que você era a Esquerda da Direita. Ou a Direita da Esquerda”, dizia um playboy, tentando ser simpático. Sim, havia playbas na conversa. E eles se comportavam até bem. Talvez estivessem medrosos, o que fazia deles pelo menos temporariamente “playbas razoáveis”. E, às vezes, dava para ser simpático. Talvez porque estivessem todos neste “momento água”, vendo no Youtube (e indicando) vídeos sobre resiliência. Com certeza, cansados de estar em casa por tanto tempo. Vale repetir: sim, eram do tipo de gente que anda podendo ficar entre quatro paredes, lidando com a culpa, em muitos casos, e, noutros, rezando para o achatamento da Curva.

Eram bons de explicações, os envolvidos. E faziam questão de pormenorizar as coisas, às vezes distanciando-se da discussão que parecia ser mais importante num determinado momento. Apelaram muito para o futebol, apontando que, “historicamente”, entre os que amam o jogo de bola, “os times trabalham pela destruição do adversário, muitas vezes, mais do que para o sucesso da própria agremiação.” Foi um dos poucos momentos de consenso, naquelas horas quentes.

Podia parecer um pouco estranho a exemplificação não ir para o mundo das cervejas, depois de passar pelo futebol. Talvez porque não haja muita familiaridade co’o rótulo Esquerda-Loura-Gelada. Por outro lado, ali naquelas intermináveis mensagens sobre “50 tons de esquerda”, foi quase consenso que “esquerda nutella” anda sendo um troço difícil de sustentar porque o pote de 650 gramas dessa parada está saindo por 40 moedas num supermercado da Zona Sul do Rio. “E não pode ser um pote menor?”, perguntou um conciliador esperançoso, porque entre esquerdopatas há conciliadores, sim. Depois, teve que engolir, sem cacau com avelã, que “precisa ser da grande, sim, porque a gente não quer socializar pobreza, a gente quer dividir riqueza”.

É importante manter o bom humor nas discussões. Ou, então, o cara pira. Seja de que lado estiver. A grande lição foi que, se é do tipo que anda recebendo diarista em casa, o negócio é manter a boca fechada. Seja qual for a orientação política da boca.

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Segunda-feira desmascarada

Chegamos a uma época em que cenas que eram corriqueiras são capazes de nos deixar assustados. Ou pensativos. Pensativos sobre se estamos mesmo assustados ou não, no mínimo. Como um restaurante cheio, agora no início de junho.

“Não era pra todos estarem em casa? Ou nós estamos mais uma vez com a cartilha errada? Quem distribuiu as cartilhas, Isadora?”

A menina, com seus 13 anos, era o que ainda se chamava de “mocinha”. Ela olha para o avô, que não tem cara de avô mas é avô, e não entende se ele está fazendo uma piada ou não.

Com o tempo, a menina vai entender que às vezes os mais velhos não se decidem sobre fazer ou não uma piada e falam mesmo assim, como se não conseguissem prender dentro deles o sofrimento que as zoações são às vezes capazes de aliviar. Era o que estava acontecendo, ali, naquele início de junho. Culpa de maio.

“Isadora, eu sei que às vezes te confundo…”

Ela riu, abraçando o velho não mais na altura da cintura, como costumava ser, mas já bem mais no alto, e isso o deixava feliz porque ele tinha a sensação de ter feito um bom trabalho de amor: a neta o abraçava sem pensar muito, deixava essa vontade vir à tona, não tinha muito aquela coisa de adolescente, de ficar envergonhada na interação com os mais velhos.

Dentro do restaurante, dava pra ver isso, claramente, as mesas estavam quase todas ocupadas. As pessoas próximas umas das outras, todo mundo sem máscara. E outra daquelas dúvidas toma o pensamento do velho malandro, ou “ex-malandro”, como o malandro gostava de dizer.

“Se pá, as pessoas não estão com máscaras porque está na hora da comida, né? Mas… Será que elas podiam estar assim já tão juntinhas?”

E aí o susto foi outro: teve aquele medo de estar pensando como um velho, de estar apegado a preocupações pesadas demais, de andar curtindo pouco a vida, uma vida que, ele sabia, estava já pra terminar, mesmo que só falasse “ex-malandro” como piada, mas sabendo que o jogo não estava mais no início… Mas não era para pensar nisso, naquele momento. A angústia por ver na rua um monte de gente sem máscaras de proteção já era tortura suficiente. E era ainda segunda-feira. Melhor empurrar alguns sofrimentos para depois. Pelo menos alguns.

“Isadora, menina, vamos comprar uma água de coco pra gente tomar em casa?” Ela sorriu e fez que sim, celebrando a proposta com um outro abraço. Era ainda uma criança.

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Floral

Não anotou, deu mole, perdeu o verso

Num espere que volte, que meia hora já é muito

Perdeu, perdeu, playboy,

Fosse mais esperto

.

Coração que é bom, é coração bom

Coração bom, é coração batendo

Mas é tanto tum, no coração

Que quase não entendo

.

Conflito, é a última coisa que vai ter

Competição, angústia…

Outra aposta, podia não custar nada

Mas custa

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Comportamento Crônica Literatice

Ppfff…

Houve quem apostasse — e estava coberta de razão, esta gente — que um dos maiores desafios do isolamento seria aprender(mos) a conviver com nosso umbigo. Lavar a própria privada também se apresentava como uma luta a ser vencida, mas luvas de borracha e milagrosos detergentes vendidos pelas modelos na TV estavam/estão aí para facilitar tudo. Quase três meses depois… Lidar com as próprias presepadas? Belezinha! A analista está respondendo pelo vídeo, no WApp. Mas… Passado este estágio da evolução, alcançado o entendimento dos protocolos de atuação política no Insta-só-alegria-gram, e mesmo com os bares ainda fechados, a gente começa a se perguntar: agora que somos (quase) capazes de nos aguentar, pelo menos um pouco, será que vai sobrar alguma coisa, uma dose de energia para suportarmos outrem?

A propósito: “outrem” soa melhor do que “outrxs”, não soa? Mas isso é uma outra história. As pessoas, mesmo isoladas, não escreveram mais do que vinham costumando escrever. Fizeram mais lives, mais vídeos, mais discursos, sim, isso elas fizeram. Mas… escrever? Ppfff… Aliás, de volta aos umbigos dos outros, à necessidade iminente  de encarar as manias dos convivas de outrora, ppfff… Poderemos ver o surgimento de uma espécie de Era do Pff… Vai ter quem prefira dizer “Ppfff… Times” ou ainda “Ppfff… Age”. O “Ppfff”, que é diferente do “e-daí-?” presidencial, pode vir a servir pra muita coisa. “Ppfff…” é aquele som que você faz quando simula um início de risada. Um verdadeiro coquetel de planejamento e espontaneidade, sem precisar de gelo.

Na prática, pode ser usado no momento em que pretende dar uma zoada, mas uma zoada de leve, em quem está por exemplo colocando nas alturas o próprio time de futebol. Sim, discussões importantíssimas sobre futebol devem ser das primeiras coisas a voltar à tona. Então, agora, quando as ruas estiverem sendo de novo ocupadas por prosas saudáveis e amigáveis, muito amigáveis mas às vezes capazes de acender o pavio do ódio… podemos soltar um “Ppfff…” e teremos achado a saída para não brigar.

O “Ppfff…”, na sua essência, já carrega um quê de válvula de escape. Você que além de limpar o banheiro arriscou-se a cozinhar feijão na panela de pressão teve a chance de observar o maravilhoso barulhinho que sai de lá. É quase um exercício de meditação conduzida: “Ppfffffffff…”

Os médicos não precisam se preocupar. Não é o caso de recomendarem o uso moderado do “Ppfff…”. Estamos falando de uma proposta anti-porradaria bastante segura. Estaremos todos usando máscaras… Elas não vão cair de uma hora pra outra. Aquele sujeito que cospe em todo mundo, vai poder fazer seu “Ppfff…”, como todos — vai ficar com o paninho que lhe cobre a cara um pouco molhado, vai ter que trocar, de vez em quando. Mas o “Ppfff…” é pra ser geral e irrestrito. Não faz sentido ter “Ppfff…” pra uns e não ter “Ppfff…” pra outros.

A gente vive num mundo de simplificações. O “Ppfff…” pode ser uma maravilhosa ferramenta para quem não aguenta mais essa história de bom-dia, boa-tarde, boa-noite. Vai bastar um “Ppfff…” e tudo estará resolvido. Imagina só: você passa por alguém, tudo que precisa dizer é “Ppfff…” e, pelas novas regras de convivência, em nome da tolerância umbilical, tudo vai funcionar bem. Sem cara feia, só “Ppfff…”.

Em discurso de candidato, sabe? Já quase dá para imaginar alguém, no palanque, de terno e gravata, claro: “Porque aqui, meus irmãos, não tem privilegiamento, é tudo na mais abençoada transparetude. Tudo em nome de todos e do progresso, pra que você não chegue no fim do mês e em vez de contribuir fique no… Ppfff…”

O “Ppfff…” não é concordância nem discordância. É paz/retórica da melhor qualidade resumida em pouquíssimas letras, cheia de sonoridade, de descompromisso. É expressão de firmeza e gentileza, sem que isso seja confundido com desafio e confronto. É sutileza, sem que deixe de haver um flerte com o deboche saudável, sem que seja um não à argumentação, pra carioca nenhum botar defeito. Já dá pra imaginar o Verão Do Ppfff…

O “Ppfff…”, inclusive, tem potencial para superar o “like”, o “joinha”. O negócio pode evoluir, interneticamente falando. Imagina se nas redes sociais criam o Botão do Ppfff…, vejam só. E aquele famoso adesivo, o Shit Happens? Vamos ter o Ppfff… Happens. Registra aí, antes que Ppfff…

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Dona Martha

Ela esculhamba com os clientes, pelo telefone. Outro dia, logo cedinho, parecia estar com a corda toda e falou com alguém de maneira bem áspera que era preciso parar de acreditar “nessa Astrologia de fundo de quintal”, porque “esse negócio de dizer que Escorpião é o inferno astral de Sagitário é uma tremenda bobagem; não existe isso de inferno astral, de um signo puxar o outro para trás”. Também era particularmente esclarecedor prestar atenção quando ela falava da carta da Morte: “É um sinal de renascimento, de mudança. Você precisa jogar fora as coisas velhas. Principalmente as da sua cabeça…”

Era possível ouvir muitas das conversas de dona Martha e concluir que ela dedicava muito tempo à Astrologia e ao Tarô. Assim com maiúsculas. Ai de quem escrevesse estas palavras com caixas baixas. Dava para imaginar isso, o perigo que seria, diante de dona Martha, não dar a devida importância à Astrologia e ao Tarô. Com dona Martha, todo cuidado era pouco. Se continuasse atento, talvez fosse possível para Nico aprender muito sobre aquelas ciências. Se tomasse notas, talvez pudesse no futuro inclusive oferecer estes serviços. Seria uma coisa meio fundo de quintal, claro, e ao pensar neste detalhe ele desistia do projeto. Nico era muito bom de projetos, outros surgiriam.

Ela não morava no mesmo prédio dele, mas provavelmente em algum edifício coladinho ao do rapaz. Isso dificultava a identificação da personagem. Quer dizer, já andava muito difícil identificar as pessoas co’essa história de todo mundo usar máscara. Conhecer alguém, neste período, o período das máscaras, era um lance bem improvável. O rapaz sabia disso e se dava por satisfeito quando, todas as manhãs, ali pelas 10h, a vizinha começava uma sequência de conversas pelo telefone.

Ela falava alto, durante os atendimentos, as sessões telefônicas com os/as clientes. E isso fazia com que o vizinho se perguntasse como não tinha começado a ouvir tudo aquilo antes. Talvez porque a doença, e o consequente isolamento das pessoas em seus cubículos, tivessem dado finalmente uma chance para a humanidade treinar a audição.

Houve vezes em que Nico se perguntou se havia mais alguém, além dele, concentrado nas conversas telefônicas de todas as manhãs. “Concentrado” era o jeito de dizer. Por causa da proximidade, não dava para fugir do que falava aquela senhora. “Senhora” também era o jeito de dizer, porque isso era só uma suposição, por causa do tom da voz que invadia o conjugado. As Verdades, assim também com maiúscula, invadiam os ouvidos de Nico. Martha com certeza não era uma adolescente, ainda mais tendo aquela coragem de identificar e condenar a Astrologia de fundo de quintal. E usando tantos plurais, como ela fazia… só podia ser uma senhora. “Deve ter sido professora”, ele desenhava.

Nico não ousava pensar nela em outros termos. Tinha certeza de que o nome dela se escrevia com “h”, depois do “t”. E era “dona”, sim, e não se falava mais naquilo. Pela regularidade com que as conversas vinham acontecendo, e sem que antes pudessem ser percebidas, talvez fosse uma vizinha nova. Mal podia esperar para que a pandemia passasse para descobrir de onde saíam todas aquelas frases tão certeiras. Tanta firmeza não se via em qualquer conversa… Estava com vontade de pedir a ela que fizesse o seu mapa astral. Ou que lhe desse a oportunidade de consultar o Tarô.

A dúvida era se deveria fazer isso pessoalmente ou tratar de agendar uma consulta por telefone. Era preciso ter o cuidado de não ser identificado pela vizinhança. Já bastava nas reuniões de condomínio ser “o maconheiro”, “o maluco” e “o artista”. Contava com dona Martha para esclarecer pontos importantes da vida. Por que as coisas andavam travadas no trabalho? Por que a carreira de artista não decolava? Por que Paula tinha ido embora? Por quê? Por quê?

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A máscara nossa de cada dia

Havia antes o desejo de que caíssem as máscaras. Agora, há a necessidade de que elas sejam usadas. E isso está sendo bom, porque além de proteger ela pode revelar. Claro. Novos tempos. As máscaras dizem muito sobre o sujeito. O cara ali nas Laranjeiras com aquele lenço (tomara que tenha um filtro de café por dentro da dobra) com a estampa da caveira-símbolo dos Misfits, por exemplo… E o outro, com uma amarelinha toda arrematada com detalhes azuis, no que parece ser uma alusão clara à camisa da seleção? Sim, tem máscara pra roqueiro, coxinha, hipster, esquerdopata; pra todos os gostos. Tem máscara pra proteger, pra se liberar, pra todos os propósitos.

Não é de hoje que a máscara tem espaço nas nossas fantasias. Quatro, cinco décadas atrás, no subúrbio carioca, mães mais preocupadas avisavam que não era bom ir na direção duma muvuca encapuzada. Se você visse alguém de Clóvis (ou Bate-Bola), então, nem precisava ser uma aglomeração; era bom passar longe. No carnaval, diziam, as máscaras protegiam e emprestavam salvo-conduto a criminosos, ou no mínimo baderneiros: gente que queria aproveitar o período de folia para fazer o mal, para pôr em prática algum plano de vingança.  Antes da internet, quem sempre tinha razão era a mãe.

Nos cultos afro-brasileiros, que no mínimo pela batucada trazem alguma relação com o Reinado de Momo, a máscara também merece um “capítulo” especial. Diz  que, se o macumbeiro está de máscara, será abandonado por seus protetores. Isso, os Exus — N.R.: Laroyê! — não garantem a segurança de quem esconde o rosto. Parece que há uma maneira de driblar isso, mas para quem quer a companhia destas forças protetoras a “regra” básica é não cobrir a cara.

Noutros casos, o apetrecho parece dar mais poder ao usuário. Ou à usuária. Veja a Mulher-Gato. Que chicote, o daquela moça, hein!? Então, de máscara (e, claro, de macacãozinho de couro ou vinil bem colado ao corpo, botas e tal), ela pode te pedir o que for que você, mermão, vai fazer. Ai de você se não fizer… Slapt!

Máscara virou ícone de um momento que, muita gente aposta, será de “transformação” na humanidade. Tempos atrás, podíamos achar exótico quando um japonês usava isso, por causa do pólen que, em alguns deles, provocava alergia. Era assim que conseguiam percorrer com tranquilidade vizinhanças repletas de árvores floridas.  Parecia coisa de país rico, como quase tudo que aparecia em revistas de moda.

Por falar em moda: algum tempo atrás, você parava e folheava numa banca de Ipanema uma revista inglesa sobre estilo pra ver o que copiar e, ali, podia encontrar o registro de gente “comum” usando máscara como se fosse acessório. Coisa de inglês. Hoje, quando estamos todos às voltas com a pandemia, ir ao mercado, OK, mas só se for com a devida proteção.  Pra desgosto dos “descolados”, não é só mais uma questão de sintonia com a tiração de onda dos primos ricos. Tem também a história de as máscaras darem aos homens uma chance de aproximação com o universo feminino. Por causa do que elas, ou pelo menos muitas delas, sempre protagonizaram com suas calcinhas: aquele ritual de lavar a peça durante o banho, pra deixar depois pendurada como um estandarte em algum lugar do banheiro. Homens, ou pelo menos muitos deles, não tinham essa mania com a cueca. Era colocar na máquina de lavar e pronto. Agora, com as máscaras, a gente chega da rua e, pra ser civilizado/essencialmente-não-minion, pega aquela coisinha delicada, passa um sabãozinho, com cuidado, pro troço não desmontar todo nem ficar desmilinguido, e lava com calma. Muita calma, porque é uma peça importante…

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Arquivo Perigoso Pro Relacionamento

Quando a gente saía de casa para trabalhar, em vez de se trancar em casa, foi muito importante tomar conhecimento e levar em conta o significado da sigla NSFW. Not Safe For Work. Quer dizer: não abra o troço ou, se fizer isso, vá com cuidado porque pode ser barulhento e/ou pornográfico e, mesmo se não for nenhuma das duas coisas, talvez não pegue bem num ambiente profissional, ainda mais se você ganha a vida num pico em que é preciso colocar a camisa pra dentro da calça. Enquanto seguimos aguardando via WApp a volta dos arquivos pornográficos, devemos agora ficar ligadíssimos a qualquer coisa que venha com NSFQ.

No início desta história de quarentena, houve quem apostasse que daqui a uns dez ou onze meses teríamos uma explosão de nascimentos de bebês. Dá pra imaginar o novo rótulo, nas revistas de comportamento: depois dos Baby Boomers, de décadas atrás, os Quarantine Boomers. Imagine hospitais lotados de grávidas, com os médicos que restassem pós-pandemia suando o jaleco nos partos pros quais seriam convocados. Mas… Uma semana depois do início da reclusão, já dá pra perceber que não será bem assim. De repente, vai ser bom é pros advogados…

Seja como for, é possível que NSFQ — Not Safe For Quarantine — seja a sigla-salvação pras nossas peles (pra não dizer “relacionamentos” ou “vidas”). Se no trabalho o caldo podia engrossar/entornar por conta de um arquivo aberto na hora errada… imagina isso em casa, onde talvez não haja disponíveis tantos terminais de computador, já que uns equipamentos com certeza serão tomados pela(s) criança(s).

Visualize uma niteroiense virginiana ainda com menos de 30 anos indo de Hattori Hanzo em punho na direção do otário, digo, marido que deixou escapar um gemido do Mac. Ou o banguense que chama a esposa de “patroa”, já cabreiro porque “ela se arruma demais” para participar das vídeo-conferências, passar sem querer querendo no instante em que a coitada está rindo de uma piada que envolve chifre. Sim, chifre. Em Bangu, ao contrário do Planalto, tal adereço não é coisa bem vista/aceita.

Além da vulnerabilidade provocada pelos arquivos, em casa, gente, não tem o pessoal do help-desk. Muito cuidado com o lugar em que você passa o mouse. Você não achou esse mouse no lixo! Se for clicar, mais cuidado ainda porque daqui a uns meses pode ter algo estranho na sua máquina ou um bom dinheiro faltando na sua conta. Qualquer uma das duas possibilidades será descoberta pela pessoa com quem você morava. Morava, no passado mesmo, porque a casa periga cair logo depois deste episódio. Ainda dá para lembrar que, uma semana atrás, houve quem apostasse neste período como algo positivo. Enxergaram uma chance para os seres humanos redescobrirem os belos laços que (n)os unem. Hoje, quando ficamos desesperados e com vontade de correr pra longe de quem espirra, os arquivos de computador aparecem em segundo lugar no ranking de paranoias em potencial. São capazes de entrar na sua casa sem você perceber. E, quando se der conta, pode ser já tarde demais: a M está feita.

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Quase madrugada de carnaval

Mal passou uma semana e já começaram a falar em produtividade. Em desengavetar “projetos fantásticos”. Mas, gente, a “mensagem” do Universo não era justamente um “convite” para repensarmos todos essa história de produzir-vender-comprar-produzir-vender-comprar? Ah, sim, depende sempre do tradutor usado para entender as palavras que vêm do Além. O pessoal que trabalha ali no mercado da São Salvador, por exemplo, deve estar ligado na versão festiva, oferecida gratuitamente pela direção da empresa. Teríamos assim uma explicação para o clima carnavalesco que tomava conta da filial, por volta das 13h desta terça-feira-chove-não-chove.

Compras feitas, incluindo uma caixinha de Bis Black, qualquer um pode dar o expediente como já encerrado. E partir para o Whats App, o grande território das verdades que duram cinco minutos. Há coisas fofas acontecendo lá. O amigo de um amigo diz que testemunhou o momento em que quatro intelectuais pré-deprimidos combinavam fazer um fanzine. Segundo relatos, um deles declarou que “ainda é terça-feira,  mas já deu pra bater a meta da semana”. Quer dizer, é mesmo hora de você rever seus conceitos sobre produtividade e meta ou procurar novos amigos porque, assim, o vírus que vai ficar no organismo depois disso tudo será só o da vagabundagem. E vagabundos deprimidos não dão certo.

Ainda no mundo virtual, percebe-se uma redução drástica na quantidade de fotos e vídeos de mulher pelada. O pessoal que produzia isso, semanas atrás, ou está todo no hospital ou embarcou no trem da revisão dos conceitos.

Pode ser uma época boa para se apaixonar. Virtualmente. Porque na rua — tirando os sem-teto-e-sem-álcool-gel — só tem mesmo o pessoal do Zona Sul. Animadíssimos, eles. Devem saber de alguma coisa que o restante da população ignora. Quando vai chegar o arroz, por exemplo. Os amores, ao que tudo indica, serão mais prováveis e possíveis com um bom plano de dados da sua operadora favorita porque, claro (ou vivo, ou tim), está difícil marcar alguma coisa na rua ou em algum boteco. Até dona Marlene deu um tempo no trabalho, pra comer a farofinha de linguiça com que sonhava há meses.

Ainda falando de relações: são dias para japonês nenhum botar defeito. Japonês: aquele povo que cria bonecas infláveis de dar inveja em qualquer Ridley Scott ou candidato a replicante. O purista que se horrorizada com aparelhinhos/interfaces ligados ao computador, para obter sensações diversas no corpo… Bom, é hora de tudo mundo ir se acostumando com a ideia. Agora, parece ser a grande chance da humanidade para se lambuzar num gel que não seja com álcool…

O bloco do pessoal do supermercado e as referências cinematográficas não param por aí. Quer experimentar hoje mesmo um momento Mad Max? Fácil, fácil: pegue aquela lata de atum que comprou semana passada, esquente o arroz de anteontem e pronto. Vai se sentir bem o Mel Gibson na hora em que ele pega comida de cachorro e, em vez de dar ali pro seu melhor amigo, faz daquilo a própria refeição. Talvez o grande inimigo das paixões e da produtividade seja a dilatação dos prazos. Hoje, já se fala em colégios fechados por 90 dias. Como será possível sobreviver ou comer alguém cuidando durante tanto tempo de crianças? “Ah, esta é uma outra mensagem do universo: reformular os relacionamentos, rever o mapa dos afetos…”, dirão os, vá lá, mais místico-otimistas. Tudo é especulação. Ou motivo pra zoar, como parecem acreditar os caras do Zona Sul.

(Esta é do início da pandemia, ficou aqui guardada em algum lugar e agora… Bom, agora que a gente continua sem saber o que vai acontecer, é o caso de publicar em algum lugar…)