Era alto e gordo, o Comandante. Carregava esse apelido mas era engenheiro, não milico. Do time dos escrotos, sem dúvida, tratado como “doutor” pelos homens que trabalhavam com ele. Tinha sido “presenteado” co’a chance de ser padrinho do Tito, filho do seu empregado mais antigo. “Presenteado” era como dizia a mãe dele, que enxergava naquilo uma chance de aprendizado para o filho. Com o vocabulário fofo dela e um considerável apanhado de orações, rogava por um cabra mais gente fina. Ao longo de 20 anos, o gesto mais carinhoso dele na direção de Tito tinha sido deixar para o garoto o troco que ficou de 300 gramas de salaminho que mandou comprar na padaria do outro lado da avenida. Foi também uma das poucas vezes em que a “plateia” que sempre o cercava deixou de seguir a regra de rir das “graças” que pintavam: naquela ocasião, apostou que o garoto poderia não voltar da missão porque atravessar a avenida era coisa perigosa para uma criança daquela idade.
Aos sábados, aquele escroto vestia uma fantasia de discotecário. Ou quase. Ficava numa parte da sala da casa, onde acumulava discos antigos, a maioria de rock progressivo, e se enlameava naquele repertório. Ninguém o incomodava. Porque não ousariam fazer isso, de um modo geral, e também porque a seleção musical era mesmo bem chata e repetitiva. No Dia do Juízo Final dos Discotecários, se for julgado também nesta categoria, terá garantido um dos lugares na lista de Piores de Todos os Tempos. Voltava sempre às mesmas músicas, aos sábados, entre 14h e 17h. Pode-se dizer que tinha um set bem amarradinho. Gostava de se sentar numa poltrona que ficava perto da janela, e, durante aqueles 18 intermináveis minutos de duração média de cada faixa, fazia de conta que estava pensando. Tinha a mania de vestir-se de preto, nestas ocasiões. O que fez com que uma amiga da mãe — porque ele morava com a mãe — achasse que se tratava de uma assombração. Aconteceu porque ele estava agachado no canto, perto da prateleira onde ficavam os LPs, e ali havia pouca iluminação. Uma pessoa desavisada, embalada por aquela música danada de ruim, poderia ter a impressão de que se tratava de um ser de outro mundo, em vez de um vacilão daqui da Terra mesmo.
Os discos ficavam organizados numa prateleirinha e também num armário. Na prateleirinha, os compactos. No armário, os grandões: de 10 e 12 polegadas. Todos os formatos ficavam abrigados em plásticos novos, que protegiam as capas em que invariavelmente o Comandante escrevia seu nome com esferográfica azul. Era neste detalhe que ele entregava que além de mau DJ era também um colecionador porcalhão. Arrumava os bolachões numa ordem que não era alfabética, mas, sim, de preferência. Da esquerda para a direita, de cima para baixo. O disco que mais ouvia era o primeiro da prateleira de cima. Se algum louco fosse surrupiar uma bolacha dali e pegasse a primeira de cima, estaria levando o disco mais ouvido pelo pior DJ do mundo. Entrar na casa para subtrair dali qualquer coisa seria tarefa não muito simples mas, sim, possível para alguém que conhecesse a rotina de (falta de segurança) daquela condomínio de casas.
O mané quase teve um troço quando pegou o preferidão dos sábados e, ao tirar da capa, deu de cara com uma bolacha marcada por um X que deve ter sido “esculpido” com um bom estilete, canivete ou faca. Chamava a atenção a simetria com que os dois lados do LP tinham sido marcados. Parecia casar direitinho, um X com o outro do lado oposto. O autor da obra deve ter ficado orgulhoso. Mas a reação do Comandante, surpreendentemente, não passou dos olhos arregalados. Manteve o que pode-se chamar de “calma”, na sequência. Decidiu pegar o segundo disco da fileira e, neste, encontrou riscada de cada lado a figura de um quadrado. Sentou-se na cadeira e lembrou do Tito, que segundo o pai, havia viajado para o Nordeste. “De Niterói para o Nordeste é um pulo grande”, havia pensado, quando ouviu do empregado a informação. Ainda sentado, experimentando aquela sensação completamente nova, não sabia que ainda encontraria nos três discos seguintes figuras geométricas diferentes.