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O cidadão 125 cilindradas

Estava num post, pra todo mundo ver: a história de um entregador que, feito o serviço, estendeu para o cliente uma nota de dez pratas dizendo “Olha, por favor, fica com isso aqui e me dá o mesmo valor em gorjeta lá pelo aplicativo, porque, quando mais gorjeta eu tiver, mais me chamam pra outras entregas”.  Não estava escrito lá se a proposta havia sido ou não aceita. Entregadores tomaram mesmo conta dos nossos corações e mentes.

“Coxinha” é uma palavra que parece ter ficado no passado. Mas é tão fofa que vamos resgatá-la. Aqui, agora, ó… O coxinha-padrão, que enxerga nos rapazes de moto ou de bicicleta do Itaú exemplos de força de vontade, de boa índole e de empreendedorismo, deve aplaudir a proposta do rapaz… Afinal, ele está tentando garantir o seu. O que deixa um classe-mediano-coxinha mais feliz do que um “pobre esforçado”? Eles têm convicção de que “é por aí mesmo”. Se for um pobre que freqüenta a igreja, então, aí não há felicidade maior.

O esquerdopata… O esquerdopata fala algo sobre isso? Ou o mortadela (outro resgate semântico) está até agora pensando o que é mais OK: “Pedir comida pelo telefone ou pelo aplicativo”? O esquerdista-raiz gasta seu tempo não comendo, mas mergulhado na digestão dos possíveis desdobramentos de uma “greve ‘séria’ de entregadores”. Antes, sonhava com a organização do proletariado, agora, pós-pandemia, não lhe sai da cabeça uma paralisação/conscientização do motocariado.

Enquanto uns fazem greve, outros fazem pedidos. E há ainda os que se viram. Como é que os arautos pregadores da resiliência ainda não recorreram ao exemplo dos motoboys para suas palestras online? O pessoal do Tarot, também muito na ativa, nos dias de hoje, já podia pensar em adicionar uma carta ao deck: O Entregador. E os compositores? Teve aniversário do Chico Buarque, estes dias, né? Daqui a pouco, surge um hit com algo do tipo “Você não pede nada pra mim, mas sua filha…”

Uma avalanche de possibilidades, né, minha filha? Muito mais desdobramentos do que imaginava o rapaz que fez a proposta de trocar dinheiro vivo por gorjeta virtual. Seguindo assim, a gente daqui a pouco vê surgir um Partido dos Entregadores. E aí já dá pra antecipar um futuro em que a grande discussão será se a culpa por tudo isso que está aí é ou não desse desgraçado desse PE.

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É, camará…

“Nem tudo que reluz é ouro… Nem tudo que balança cai…”, diz um corrido de Capoeira. Isso parece retratar bem nosso momento político, nos fazendo pensar que estamos em meio a um grande, grande jogo, né? Todo mundo achava que estava acontecendo uma coisa, mas, na verdade, é bem outra que se revela co’o andar da carruagem: é o que está implícito nas estrofes que abrem este texto. “Corridos” são os versos cantados por quem está, digamos, no comando da roda. E estes versos são respondidos pelos que integram o grupo e, não raramente, por quem está assistindo ao espetáculo. As respostas formam um coro. Talvez o corrido mais conhecido seja o “Paranaê…” Todo mundo sabe a resposta e isso ajuda muito a animar o jogo. O coro fica bonito.

Dependendo da escola, há às vezes gente batendo palmas; para com isso contribuir com o ritmo. Na Capoeira, a música pode funcionar como uma espécie de crônica: fala sobre o que está acontecendo, ali, no momento. Noutras ocasiões, é a música quem imprime/dita uma cadência, faz certos movimentos se desenvolverem ou, no mínimo, inspira isso. Uma canção superpode tornar mais rápidos e consequentemente mais agressivos os movimentos dos jogadores.

Assim… Se um participante leva uma rasteira, o puxador pode mudar rapidamente o canto e soltar um “Meu facão cortou em baixo, eu falei…” E todo mundo vai/deve responder: “A bananeira caiu!” Está aí um bom exemplo de “crônica”. Ou, por outro lado, se o mestre responsável num determinado instante avalia que o clima está morno demais, tem o “direito” de provocar, cantando algo como “Olha, rala o coco…” E a resposta para isso será: “Catarina!” Com a repetição de “Catarina!…”, de forma constante e mais acelerada do que vinha acontecendo até então no coro, é certo que os movimentos ficarão mais acalorados. No mínimo, mais animados/quentes.

Há outros tipos de música, nos rituais capoeirísticos. A Ladainha, que abre os trabalhos, é uma das mais importantes. Além de contar uma história, de muitas vezes fazer alusões, por exemplo, ao passado da vida dos negros escravos, a Ladainha pode conter provocações. Agachado, de frente para o oponente, um jogador pode puxar uma música que soe como afronta. E isso pode ser o prenúncio de uma movimentação particularmente ardilosa, com o intuito de desconcentrar/desnortear o “oponente”.

Co’essa história do confinamento, não se vê roda de Capoeira pela cidade. As pessoas já estão andando pela orla, enchendo bares, deixando máscaras de lado, mas roda de Capoeira — graças a Deus — ainda não anda rolando, o que talvez comprove que capoeirista é mesmo malandro(a). Malandro(a), no bom sentindo, sim. A “malandragem”, aliás, é um dos temas musicais mais recorrentes, nestas reuniões de praticantes da grande arte/luta que tem como referências mais famosas os mestres baianos Pastinha e Bimba.

Um corrido que nos faz pensar na situação política que a gente vive pode ser um convite para que mergulhemos noutros ensinamentos da Capoeira. Ficar bem atento ao que está acontecendo, no jogo, por exemplo. Isso é uma regra básica, que serve para a vida como um todo. Vai que na hora daquele bocejo despreocupado vem um pé na orelha… Na orelha de quem estava só assistindo ao jogo. Cabe a nós identificar o sujeito que, pela postura, ou por uma orquestração enganosa, sugere que é capaz de fazer e acontecer, mas… Mas em cinco segundos mostra que ginga feito um siri com câimbra. Atenção, camará! Atenção para o jogo em que te puseram. Atenção pra não responder errado na hora do coro, hein!

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Boa semana!

Tão especial quanto o amigo que te manda Slayer… é o outro que envia Replicantes. Uma semana punk rock, no bom sentido, pra geral. Com muito amor:

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Sabe a Bruna?

Janela perto da rua, em época assim de isolamento, é uma beleza. Você pode ficar fechado e sentindo a vibe da calçada. Tem o cara que varre alguma área bem cedinho. Tem o porteiro do prédio em frente e suas teorias sobre… ah, só bobagem. Tem a dona do cachorro, com voz de quem tem mais de 80, verdadeira especialista em reclamar de alguém que se chama Bruna. É fácil você de ouvinte transformar-se em “cúmplice”. Três manhãs seguidas ouvindo a mesma ladainha e dá até para se perguntar: será que ela está falando mesmo pelo celular ou está querendo ser ouvida, sabe que está sendo ouvida? Quatro manhãs ouvindo que Bruna “é mó muquirana, não sabe reconhecer o que fazem por ela” e já dá pra concordar que se trata de uma grande vacilona.

Às vezes, abrir a janela se apresenta como uma alternativa. Mas fica só nisso, numa possibilidade. Isolamento é isolamento. Alguém tem que respeitar. E vai que o cálculo é mal feito e a inimiga, quer dizer, conhecida da Bruna ainda está ali, esperando o cachorro fazer número dois, porque o bicho pode ser daqueles que demoram, e você dá de cara com ela. O que esperar de uma breve troca de olhares? Será uma conexão carregada de cumplicidade? Ou de desconfiança? A dona vai perceber que você está ali há dias acompanhando aquele desenrolo? Com quem será que ela tanto fala sobre a Bruna? E, hm, como será a Bruna, fisicamente, hein?

Assim, perto de onde passam os carros, fica possível também rever uns episódios do passado das nossas vidas. Nunca há silêncio. Nem à noite. É sempre uma avalabche de informações. Pode-se perceber as construções daquilo que, nas próximas pandemias, daqui a uns 30, 40 anos, será o passado da molecada de hoje: o carro que passa oferecendo “ovos fresquinho”, o outro que promete recolher qualquer tralha de metal que esteja ocupando desnecessariamente espaço em casa: ar-condicionado, máquina de lavar, sucata de alumínio… O vendedor de pamonha deve ter sido contaminado pelo vírus. Que se recupere logo. Será que esse pessoal passa na rua da Bruna?

Os barulhos das campainhas ganham outra dimensão, quando você está em casa, concentrado em alguma tarefa muito importante para fazer o tempo passar, na esperança de afastar a preocupação com o dinheiro que está acabando. O porteiro-eletrônico, que se mistura com os de carne-e-osso de antigamente, e a vizinhança mais silenciosa são capazes de fazer a gente se perguntar: o que essa pessoa do 203 aí de frente tanto compra online, hein? E a Bruna, será que tem cascalho para gastar assim de bobeira, nestes tempos bicudos?

Este grande espetáculo oferecido a quem está disposto a prestar um pouco de atenção aos ruídos que preenchem esse mundão de meu Deus servem também de pulga. Pulga atrás da orelha. Se você está ouvindo geral, geral também está te ouvindo. Cuidado com os sons que produz. Defenda-se da fofoca old-school, aquela que mesmo em tempos de isolamento pode surgir numa calçada, numa fila de banco; é capaz de vir nas conversas telefônicas de alguém sem nome mas com língua afiada, conversando pelo celular, cedinho, em frente a uma jalena silenciosa. Viu, Bruna?

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Segunda-feira desmascarada

Chegamos a uma época em que cenas que eram corriqueiras são capazes de nos deixar assustados. Ou pensativos. Pensativos sobre se estamos mesmo assustados ou não, no mínimo. Como um restaurante cheio, agora no início de junho.

“Não era pra todos estarem em casa? Ou nós estamos mais uma vez com a cartilha errada? Quem distribuiu as cartilhas, Isadora?”

A menina, com seus 13 anos, era o que ainda se chamava de “mocinha”. Ela olha para o avô, que não tem cara de avô mas é avô, e não entende se ele está fazendo uma piada ou não.

Com o tempo, a menina vai entender que às vezes os mais velhos não se decidem sobre fazer ou não uma piada e falam mesmo assim, como se não conseguissem prender dentro deles o sofrimento que as zoações são às vezes capazes de aliviar. Era o que estava acontecendo, ali, naquele início de junho. Culpa de maio.

“Isadora, eu sei que às vezes te confundo…”

Ela riu, abraçando o velho não mais na altura da cintura, como costumava ser, mas já bem mais no alto, e isso o deixava feliz porque ele tinha a sensação de ter feito um bom trabalho de amor: a neta o abraçava sem pensar muito, deixava essa vontade vir à tona, não tinha muito aquela coisa de adolescente, de ficar envergonhada na interação com os mais velhos.

Dentro do restaurante, dava pra ver isso, claramente, as mesas estavam quase todas ocupadas. As pessoas próximas umas das outras, todo mundo sem máscara. E outra daquelas dúvidas toma o pensamento do velho malandro, ou “ex-malandro”, como o malandro gostava de dizer.

“Se pá, as pessoas não estão com máscaras porque está na hora da comida, né? Mas… Será que elas podiam estar assim já tão juntinhas?”

E aí o susto foi outro: teve aquele medo de estar pensando como um velho, de estar apegado a preocupações pesadas demais, de andar curtindo pouco a vida, uma vida que, ele sabia, estava já pra terminar, mesmo que só falasse “ex-malandro” como piada, mas sabendo que o jogo não estava mais no início… Mas não era para pensar nisso, naquele momento. A angústia por ver na rua um monte de gente sem máscaras de proteção já era tortura suficiente. E era ainda segunda-feira. Melhor empurrar alguns sofrimentos para depois. Pelo menos alguns.

“Isadora, menina, vamos comprar uma água de coco pra gente tomar em casa?” Ela sorriu e fez que sim, celebrando a proposta com um outro abraço. Era ainda uma criança.

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Velocidade

O cara leva um dia inteiro para entender que precisa colocar nas redes sociais um adesivo que o qualifique como antifascista. Veja só, um dia quase inteiro correndo o risco de ser considerado um “antifascista lento demais”. Para dizer o mínimo, porque a era da pós-verdade também é a dos julgamentos-velozes-e-furiosos. A pandemia estava aí, quem diria, também para ensinar as pessoas a serem mais rápidas. Na manhã seguinte, senso de interpretação já mais aguçado, fica fácil o cidadão da internet perceber, após ver 17 perfis exibindo um quadro completamente preto, que tem alguma coisa no ar para ser entendida/seguida/comprada.

É hora de pintar tudo de preto, não de pensar em música e em cores? Teve uma artista plástica, muito engajada, por sinal, que parece que sem querer querendo furou isso. Não que ela discorde da #blackouttuesday, mas é que o trabalho que vinha sendo elaborado há semanas por acaso é bem bem bem colorido e no impulso ela publicou aquela imagem. Deve ter acordado cedo demais, antes do início da onda de quadros pretos. Ou foi dormir tarde, ontem. Teve um feedback positivo, talvez por ter mais tarde pedido desculpas, o que prova que as pessoas, isto é, algumas pessoas, são capazes de apertar o botão do preto e o botão das cores, nas horas certas, sem que isso se transforme num problema. Outra lição da pandemia: manter a concentração e o esforço para conversar.

Claro que não é sempre que dá para levar um lero. Já deu tempo de ver em ação quem tentasse conduzir essa pauta do preto nas telas com uma argumentação, digamos, técnica. Um papinho de que “preto é ausência de cor” e “branco é a soma de todas as cores”. Pouca coisa é mais irritante do que ver alma sebosa tentando se dar bem no palco. Se isso já é chato em dias “normais”, imagine num período de exceção…

Essa história de blecaute também pode levar a gente a pensar em sons. Tem as esquisitices eletrônicas — no bom sentido — de sempre. Mas essa onda toda de violência, que às vezes pelo menos em pensamento é capaz de nos levar ao século passado, quase ainda ao retrasado, pode nos fazer também revisitar clássicos. Como “Paint it, black”, dos Stones. Se for para voltar ao passado, vendo as fascistices do Poder ferrarem a cabeça da gente, com medo da polícia de um lado e do web-tribunal de outro, façamos uma viagem que ao menos tenha trilha sonora.

Por mais mainstream que seja, Stones merecem uma chance de nos embalar/ajudar aí. Richards e Jagger erraram e acertaram muitas vezes. “Paint it, black”, com certeza, é um dos acertos. E se o engajamento no protesto pode, de alguma modo, valer-se da oportunidade para promover algo, digamos, poético/colorido, que a música — sim! — entre em cena. Né? Que ela seja ouvida e sentida. E que os corpos e almas que estão sendo baleados e sufocados tenham uma chance de vibrar sob versos e acordes inspiradores — para eles e para os que ainda estão vivos.

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Polegar-pra-cima ou coraçãozinho?

Tem essa coisa do setor cultural precisando de amparo. Mas… Dois tipos de “espetáculo” que sempre estiveram firmes e em alta na internet seguem pipocando durante a pandemia e não parecem necessitar de sequer um tostão para continuar em cartaz. Primeiro, os playbas piadistas, que fazem graça com assuntos sérios: nem se dão ao trabalho de escrever seus próprios “ha-ha-has” e aguardam incansáveis uma nova oportunidade para serem desagradáveis. De outro lado, os sofredores, pobres-desamparados que se abrem para o público, compartilham seus fracassos e fantasmas, jogam luz sobre uma “grande dor” pela qual parecem ser consumidos.

Mundinho de extremos. Nele, os primeiros querem aplausos e um emprego de roteirista. Os segundos, carinho e atenção. Mas se você clicar no coraçãozinho ou no polegar-pra-cima, já vão ficar muito satisfeitos. Porque a internet, afinal, é um mundo de oportunidades e o quintal de grandes empreendedores. Gente movida a joinha. Então, um clique a mais pode sempre ser a migalha que falta para o “artista” diligente fazer o seu próprio sonho-americano virar realidade.

Às vezes, falta ao showman alguma originalidade. A rede mundial de computadores é um poço sem fundo. É cheia de lixo, mas exigente. Uma gracinha é sugada para o web-inferno em questão de segundos. Google é tipo um Saturno: faz tudo envelhecer. Precisa o humorista ter preparo físico, isto é, muita disposição para renovar as bobagens que digita. Na era do “E daí?”, o engraçadinho que cita um exemplo qualquer de área em crise e improvisa a musiquinha-dancinha dos caixões está sendo muito… muito… sem-gracinha.

É mais fácil ter paciência com a galera da tristeza? É? Às vezes, parece que sim. O que pode nos levar para aquele lugar dos bonitinhos ordinários, da solidariedade que mostra a cara somente na hora do câncer. Os dois fenômenos só podem existir porque há público. Para ambos, a única resposta parece ser um polegar-pra-cima. A gente precisa tomar algum cuidado para que, com o tempo, esta não passe a ser também para nós a única possibilidade de resposta.