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Conto Literatice XXX

Dona Martha

Ela esculhamba com os clientes, pelo telefone. Outro dia, logo cedinho, parecia estar com a corda toda e falou com alguém de maneira bem áspera que era preciso parar de acreditar “nessa Astrologia de fundo de quintal”, porque “esse negócio de dizer que Escorpião é o inferno astral de Sagitário é uma tremenda bobagem; não existe isso de inferno astral, de um signo puxar o outro para trás”. Também era particularmente esclarecedor prestar atenção quando ela falava da carta da Morte: “É um sinal de renascimento, de mudança. Você precisa jogar fora as coisas velhas. Principalmente as da sua cabeça…”

Era possível ouvir muitas das conversas de dona Martha e concluir que ela dedicava muito tempo à Astrologia e ao Tarô. Assim com maiúsculas. Ai de quem escrevesse estas palavras com caixas baixas. Dava para imaginar isso, o perigo que seria, diante de dona Martha, não dar a devida importância à Astrologia e ao Tarô. Com dona Martha, todo cuidado era pouco. Se continuasse atento, talvez fosse possível para Nico aprender muito sobre aquelas ciências. Se tomasse notas, talvez pudesse no futuro inclusive oferecer estes serviços. Seria uma coisa meio fundo de quintal, claro, e ao pensar neste detalhe ele desistia do projeto. Nico era muito bom de projetos, outros surgiriam.

Ela não morava no mesmo prédio dele, mas provavelmente em algum edifício coladinho ao do rapaz. Isso dificultava a identificação da personagem. Quer dizer, já andava muito difícil identificar as pessoas co’essa história de todo mundo usar máscara. Conhecer alguém, neste período, o período das máscaras, era um lance bem improvável. O rapaz sabia disso e se dava por satisfeito quando, todas as manhãs, ali pelas 10h, a vizinha começava uma sequência de conversas pelo telefone.

Ela falava alto, durante os atendimentos, as sessões telefônicas com os/as clientes. E isso fazia com que o vizinho se perguntasse como não tinha começado a ouvir tudo aquilo antes. Talvez porque a doença, e o consequente isolamento das pessoas em seus cubículos, tivessem dado finalmente uma chance para a humanidade treinar a audição.

Houve vezes em que Nico se perguntou se havia mais alguém, além dele, concentrado nas conversas telefônicas de todas as manhãs. “Concentrado” era o jeito de dizer. Por causa da proximidade, não dava para fugir do que falava aquela senhora. “Senhora” também era o jeito de dizer, porque isso era só uma suposição, por causa do tom da voz que invadia o conjugado. As Verdades, assim também com maiúscula, invadiam os ouvidos de Nico. Martha com certeza não era uma adolescente, ainda mais tendo aquela coragem de identificar e condenar a Astrologia de fundo de quintal. E usando tantos plurais, como ela fazia… só podia ser uma senhora. “Deve ter sido professora”, ele desenhava.

Nico não ousava pensar nela em outros termos. Tinha certeza de que o nome dela se escrevia com “h”, depois do “t”. E era “dona”, sim, e não se falava mais naquilo. Pela regularidade com que as conversas vinham acontecendo, e sem que antes pudessem ser percebidas, talvez fosse uma vizinha nova. Mal podia esperar para que a pandemia passasse para descobrir de onde saíam todas aquelas frases tão certeiras. Tanta firmeza não se via em qualquer conversa… Estava com vontade de pedir a ela que fizesse o seu mapa astral. Ou que lhe desse a oportunidade de consultar o Tarô.

A dúvida era se deveria fazer isso pessoalmente ou tratar de agendar uma consulta por telefone. Era preciso ter o cuidado de não ser identificado pela vizinhança. Já bastava nas reuniões de condomínio ser “o maconheiro”, “o maluco” e “o artista”. Contava com dona Martha para esclarecer pontos importantes da vida. Por que as coisas andavam travadas no trabalho? Por que a carreira de artista não decolava? Por que Paula tinha ido embora? Por quê? Por quê?

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Comportamento Crônica Literatice Umbigada

A máscara nossa de cada dia

Havia antes o desejo de que caíssem as máscaras. Agora, há a necessidade de que elas sejam usadas. E isso está sendo bom, porque além de proteger ela pode revelar. Claro. Novos tempos. As máscaras dizem muito sobre o sujeito. O cara ali nas Laranjeiras com aquele lenço (tomara que tenha um filtro de café por dentro da dobra) com a estampa da caveira-símbolo dos Misfits, por exemplo… E o outro, com uma amarelinha toda arrematada com detalhes azuis, no que parece ser uma alusão clara à camisa da seleção? Sim, tem máscara pra roqueiro, coxinha, hipster, esquerdopata; pra todos os gostos. Tem máscara pra proteger, pra se liberar, pra todos os propósitos.

Não é de hoje que a máscara tem espaço nas nossas fantasias. Quatro, cinco décadas atrás, no subúrbio carioca, mães mais preocupadas avisavam que não era bom ir na direção duma muvuca encapuzada. Se você visse alguém de Clóvis (ou Bate-Bola), então, nem precisava ser uma aglomeração; era bom passar longe. No carnaval, diziam, as máscaras protegiam e emprestavam salvo-conduto a criminosos, ou no mínimo baderneiros: gente que queria aproveitar o período de folia para fazer o mal, para pôr em prática algum plano de vingança.  Antes da internet, quem sempre tinha razão era a mãe.

Nos cultos afro-brasileiros, que no mínimo pela batucada trazem alguma relação com o Reinado de Momo, a máscara também merece um “capítulo” especial. Diz  que, se o macumbeiro está de máscara, será abandonado por seus protetores. Isso, os Exus — N.R.: Laroyê! — não garantem a segurança de quem esconde o rosto. Parece que há uma maneira de driblar isso, mas para quem quer a companhia destas forças protetoras a “regra” básica é não cobrir a cara.

Noutros casos, o apetrecho parece dar mais poder ao usuário. Ou à usuária. Veja a Mulher-Gato. Que chicote, o daquela moça, hein!? Então, de máscara (e, claro, de macacãozinho de couro ou vinil bem colado ao corpo, botas e tal), ela pode te pedir o que for que você, mermão, vai fazer. Ai de você se não fizer… Slapt!

Máscara virou ícone de um momento que, muita gente aposta, será de “transformação” na humanidade. Tempos atrás, podíamos achar exótico quando um japonês usava isso, por causa do pólen que, em alguns deles, provocava alergia. Era assim que conseguiam percorrer com tranquilidade vizinhanças repletas de árvores floridas.  Parecia coisa de país rico, como quase tudo que aparecia em revistas de moda.

Por falar em moda: algum tempo atrás, você parava e folheava numa banca de Ipanema uma revista inglesa sobre estilo pra ver o que copiar e, ali, podia encontrar o registro de gente “comum” usando máscara como se fosse acessório. Coisa de inglês. Hoje, quando estamos todos às voltas com a pandemia, ir ao mercado, OK, mas só se for com a devida proteção.  Pra desgosto dos “descolados”, não é só mais uma questão de sintonia com a tiração de onda dos primos ricos. Tem também a história de as máscaras darem aos homens uma chance de aproximação com o universo feminino. Por causa do que elas, ou pelo menos muitas delas, sempre protagonizaram com suas calcinhas: aquele ritual de lavar a peça durante o banho, pra deixar depois pendurada como um estandarte em algum lugar do banheiro. Homens, ou pelo menos muitos deles, não tinham essa mania com a cueca. Era colocar na máquina de lavar e pronto. Agora, com as máscaras, a gente chega da rua e, pra ser civilizado/essencialmente-não-minion, pega aquela coisinha delicada, passa um sabãozinho, com cuidado, pro troço não desmontar todo nem ficar desmilinguido, e lava com calma. Muita calma, porque é uma peça importante…

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Comportamento Crônica Literatice

Arquivo Perigoso Pro Relacionamento

Quando a gente saía de casa para trabalhar, em vez de se trancar em casa, foi muito importante tomar conhecimento e levar em conta o significado da sigla NSFW. Not Safe For Work. Quer dizer: não abra o troço ou, se fizer isso, vá com cuidado porque pode ser barulhento e/ou pornográfico e, mesmo se não for nenhuma das duas coisas, talvez não pegue bem num ambiente profissional, ainda mais se você ganha a vida num pico em que é preciso colocar a camisa pra dentro da calça. Enquanto seguimos aguardando via WApp a volta dos arquivos pornográficos, devemos agora ficar ligadíssimos a qualquer coisa que venha com NSFQ.

No início desta história de quarentena, houve quem apostasse que daqui a uns dez ou onze meses teríamos uma explosão de nascimentos de bebês. Dá pra imaginar o novo rótulo, nas revistas de comportamento: depois dos Baby Boomers, de décadas atrás, os Quarantine Boomers. Imagine hospitais lotados de grávidas, com os médicos que restassem pós-pandemia suando o jaleco nos partos pros quais seriam convocados. Mas… Uma semana depois do início da reclusão, já dá pra perceber que não será bem assim. De repente, vai ser bom é pros advogados…

Seja como for, é possível que NSFQ — Not Safe For Quarantine — seja a sigla-salvação pras nossas peles (pra não dizer “relacionamentos” ou “vidas”). Se no trabalho o caldo podia engrossar/entornar por conta de um arquivo aberto na hora errada… imagina isso em casa, onde talvez não haja disponíveis tantos terminais de computador, já que uns equipamentos com certeza serão tomados pela(s) criança(s).

Visualize uma niteroiense virginiana ainda com menos de 30 anos indo de Hattori Hanzo em punho na direção do otário, digo, marido que deixou escapar um gemido do Mac. Ou o banguense que chama a esposa de “patroa”, já cabreiro porque “ela se arruma demais” para participar das vídeo-conferências, passar sem querer querendo no instante em que a coitada está rindo de uma piada que envolve chifre. Sim, chifre. Em Bangu, ao contrário do Planalto, tal adereço não é coisa bem vista/aceita.

Além da vulnerabilidade provocada pelos arquivos, em casa, gente, não tem o pessoal do help-desk. Muito cuidado com o lugar em que você passa o mouse. Você não achou esse mouse no lixo! Se for clicar, mais cuidado ainda porque daqui a uns meses pode ter algo estranho na sua máquina ou um bom dinheiro faltando na sua conta. Qualquer uma das duas possibilidades será descoberta pela pessoa com quem você morava. Morava, no passado mesmo, porque a casa periga cair logo depois deste episódio. Ainda dá para lembrar que, uma semana atrás, houve quem apostasse neste período como algo positivo. Enxergaram uma chance para os seres humanos redescobrirem os belos laços que (n)os unem. Hoje, quando ficamos desesperados e com vontade de correr pra longe de quem espirra, os arquivos de computador aparecem em segundo lugar no ranking de paranoias em potencial. São capazes de entrar na sua casa sem você perceber. E, quando se der conta, pode ser já tarde demais: a M está feita.

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Crônica Literatice Umbigada

Quase madrugada de carnaval

Mal passou uma semana e já começaram a falar em produtividade. Em desengavetar “projetos fantásticos”. Mas, gente, a “mensagem” do Universo não era justamente um “convite” para repensarmos todos essa história de produzir-vender-comprar-produzir-vender-comprar? Ah, sim, depende sempre do tradutor usado para entender as palavras que vêm do Além. O pessoal que trabalha ali no mercado da São Salvador, por exemplo, deve estar ligado na versão festiva, oferecida gratuitamente pela direção da empresa. Teríamos assim uma explicação para o clima carnavalesco que tomava conta da filial, por volta das 13h desta terça-feira-chove-não-chove.

Compras feitas, incluindo uma caixinha de Bis Black, qualquer um pode dar o expediente como já encerrado. E partir para o Whats App, o grande território das verdades que duram cinco minutos. Há coisas fofas acontecendo lá. O amigo de um amigo diz que testemunhou o momento em que quatro intelectuais pré-deprimidos combinavam fazer um fanzine. Segundo relatos, um deles declarou que “ainda é terça-feira,  mas já deu pra bater a meta da semana”. Quer dizer, é mesmo hora de você rever seus conceitos sobre produtividade e meta ou procurar novos amigos porque, assim, o vírus que vai ficar no organismo depois disso tudo será só o da vagabundagem. E vagabundos deprimidos não dão certo.

Ainda no mundo virtual, percebe-se uma redução drástica na quantidade de fotos e vídeos de mulher pelada. O pessoal que produzia isso, semanas atrás, ou está todo no hospital ou embarcou no trem da revisão dos conceitos.

Pode ser uma época boa para se apaixonar. Virtualmente. Porque na rua — tirando os sem-teto-e-sem-álcool-gel — só tem mesmo o pessoal do Zona Sul. Animadíssimos, eles. Devem saber de alguma coisa que o restante da população ignora. Quando vai chegar o arroz, por exemplo. Os amores, ao que tudo indica, serão mais prováveis e possíveis com um bom plano de dados da sua operadora favorita porque, claro (ou vivo, ou tim), está difícil marcar alguma coisa na rua ou em algum boteco. Até dona Marlene deu um tempo no trabalho, pra comer a farofinha de linguiça com que sonhava há meses.

Ainda falando de relações: são dias para japonês nenhum botar defeito. Japonês: aquele povo que cria bonecas infláveis de dar inveja em qualquer Ridley Scott ou candidato a replicante. O purista que se horrorizada com aparelhinhos/interfaces ligados ao computador, para obter sensações diversas no corpo… Bom, é hora de tudo mundo ir se acostumando com a ideia. Agora, parece ser a grande chance da humanidade para se lambuzar num gel que não seja com álcool…

O bloco do pessoal do supermercado e as referências cinematográficas não param por aí. Quer experimentar hoje mesmo um momento Mad Max? Fácil, fácil: pegue aquela lata de atum que comprou semana passada, esquente o arroz de anteontem e pronto. Vai se sentir bem o Mel Gibson na hora em que ele pega comida de cachorro e, em vez de dar ali pro seu melhor amigo, faz daquilo a própria refeição. Talvez o grande inimigo das paixões e da produtividade seja a dilatação dos prazos. Hoje, já se fala em colégios fechados por 90 dias. Como será possível sobreviver ou comer alguém cuidando durante tanto tempo de crianças? “Ah, esta é uma outra mensagem do universo: reformular os relacionamentos, rever o mapa dos afetos…”, dirão os, vá lá, mais místico-otimistas. Tudo é especulação. Ou motivo pra zoar, como parecem acreditar os caras do Zona Sul.

(Esta é do início da pandemia, ficou aqui guardada em algum lugar e agora… Bom, agora que a gente continua sem saber o que vai acontecer, é o caso de publicar em algum lugar…)