Categorias
Conto Literatice XXX

Chocolate

Ela chegou, sorrindo, e depois de tirar o tênis, a máscara, passar álcool pelos braços, pelas orelhas, pelo cangote e de tirar também a camiseta e o short, disse: “Trouxe uma coisa pra você.” Seguiu removendo as peças mais íntimas, aí dispensando o líquido higienizante, porque aquilo tudo estava coberto por tecidos que devem proteger de alguma maneira. “Ar fresco”, completou, uns bons minutos depois de ter começado a falar. Estava se dirigindo à plantinha, que ficava no início do corredor que não era bem um corredor mas que levava à cozinha. Tinha voltado da primeira caminhada desde o início da pandemia. E arriscou fazer aquilo, mesmo com uma dorzinha no joelho, porque precisava trazer ar fresco para dentro de casa.

As janelas andavam ficando mais fechadas do que abertas. Quando percebia isso, lembrava de uma decisão tomada logo depois que o vírus tomou conta do noticiário. Não conseguiria escrever num papel que decisão tinha sido aquela. E pensava nisso, na impossibilidade de transcrever a coisa, porque tinha tido essa vontade. Não se assustou com sua incapacidade. Mas ficou pensativa. Achava que tinha percebido a primeira pontada no joelho direito bem neste instante, o instante em que não conseguiu escrever o que tinha decidido. Naquele dia, fez um desenho que decidiu prender com fita crepe na parede do corredor que não era corredor, perto da planta a quem dava ar fresco depois de voltar daquela esplêndida primeira caminhada.

Pesquisou “joelho”. Pesquisou “dor”. Pesquisou “caminhar”. Pesquisou “pandemia”. Pesquisou “vítimas”. Pesquisou “prefeito”, mas desistiu desta e antes que o resultado aparecesse pesquisou “bdsm”. Pesquisou “mulheres dominadoras”. Pesquisou “sagitarianos”. Pesquisou “compatibilidade entre os signos”. Pesquisou “tarot” e “tarô”. Pesquisou “trabalho voluntário”. Pesquisou “mudança de carreira”. Pesquisou “solitude”. Pesquisou “Cem anos de solidão”. Pesquisou “delivery japonês botafogo”. Pesquisou “saquê”. Seguiu pesquisando, até que o interfone tocou e percebendo que já era noite colocou máscara, armou-se com o borrifador de álcool 70 e foi até a porta receber a comida e o saquê. Tinha sido dia de ar fresco. Achava que podia ser uma noite de peixe fresco.

Começou uma série. Estava disposta a maratonar. Não maratonava havia já algum tempo. Maratonar tinha perdido a graça, se é que algum dia teve graça. Sorriu satisfeita, olhando pros sashimis. E a satisfação escorria do sorriso porque o saquê era uma bebida danada de boa para contribuir com isso, com sorrisos de satisfação. Sentiu saudades de caipisaquês de lichia. Pensou nas estações do ano, achou que lembrava de ter visto lichia nas feiras em dezembro, época de natal. Mas não quis pesquisar aquilo. Enquanto colhia ar fresco, mais cedo, havia decidido só pesquisar uma vez por dia. Ficou pensando que talvez pudesse complementar aquela decisão, acrescentando um limite de horas ou assuntos para mergulhos no computador.

Foi como um insight: “Essa dor no joelho pode ser de ficar demais no computador, com a perna cruzada… Não é bom pra circulação, isso…” Sentiu-se aliviada e sorriu o melhor sorriso do dia, melhor do que quando disse à planta que lhe tinha trazido de presente ar fresco. Derramou o restinho de saquê num copo quadrado, com bordinha larga para quem quisesse colocar sal, ali, na beiradinha. Gostava de saquê com pitadinhas de sal, e se sentia uma personagem de série enquanto fazia isso. Estava de novo sem roupa e pensou em quanta gente gostaria de vê-la daquele jeito.

Lembrou dos chocolates que namorava de vez em quando e que mantinha guardados no armário da cozinha, quase escondidos. Do lado de fora, deixava as barrinhas de cereais. Pensou em pesquisar sobre calorias, fazendo rapidamente um cálculo importante, pro qual o resultado era que gastaria menos tempo ligando o computador do que tentando ler o que estava escrito no rótulo de cada embalagem. Lembrou-se da decisão tomada naquele dia. Nada de pesquisas. Não havia decidido nada ainda sobre o consumo de chocolates. E mesmo sem digitar ou ler nada achou que comer um docinho ajudaria a curar o joelho. Desejou ter mais saquê.